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O(S) ESPAÇO(S) DA MEMÓRIA

No documento Editorial do n. 50-A (páginas 89-95)

ESPAÇO E MEMÓRIA EM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE SPACE AND MEMORY IN CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

4. O(S) ESPAÇO(S) DA MEMÓRIA

Nos três textos apresentados, bem como em alguns outros poemas, como

Boitempo, Confidências de Itabirano e Evocação Mariana comentados a seguir,

funcionam como um contraponto à monotonia e ao primitivismo de “cidadezinha qualquer” e reafirma a intenção do poeta, em repetir o paradoxo entre a província e a cidade grande.

ou, tomando emprestadas as palavras de Jorge Luís Borges (1994), se “transpõe o fenômeno da cor local”, termo empregado pelo escritor argentino para definir o estado reducionista a que pode chegar o localismo de um escritor. Apesar de retratar espaços específicos por onde passou uma parte de sua trajetória de vida, Drummond transpõe esses espaços e os coloca em uma atmosfera de imensidão e nostalgia que podem ser representadas pelo apreço a outros lugares existentes.

Os textos propostos para análise neste trabalho apresentam-se além dos limites culturais e geográficos dos espaços ora apresentados. Seja por meio da imagem do vento, seja da personificação do espírito de Minas, seja pela praia do Arpoador, o sujeito manifesta sua memória relacionando-a com o espaço vivido por ele. Portanto, não se trata de um espaço geograficamente específico, mas de espaços importantes guardados na memória.

A partir dos caminhos de leitura enunciados anteriormente, constata-se que Drummond se vale de uma tradição da memória da pequena cidade do interior de Minas e lhe imprime valor fundamental. Para Antonio Candido (2003) no citado ensaio, “Itabira assume, em sua poética, um papel mítico, a representar um corpo de valores tradicionais, que impregnam o caráter brasileiro, que traduzem em modos de ser típicos e traços peculiares da fisionomia de sua gente, ou seja, do outro e dele próprio”. Na tentativa de buscar a si mesmo, Carlos Drummond de Andrade vai ao encontro de suas raízes mineiras, que permanecem vivas em sua memória, mesmo nos momentos de esquecimento, vez que, segundo poeta, “o esquecimento ainda é memória” (Drummond, 1983, p. 288).

A memória assume diferentes configurações na obra de Drummond, e o crítico expõe esta relação da poesia com o espaço. No entanto, afirma que a figura paterna ou a cidade natal são presenças constantes na produção lírica do poeta. O poeta utilizou um neologismo para nomear seus poemas memorialísticos: boitempo. Desse modo, a análise desta mesma obra, abordada por Candido, que destaca a importância da contribuição de Boitempo para a compreensão da literatura realizada por Drummond. O autor reserva grande parte desta obra para propor leituras desses poemas, que intensificam o espaço da memória.

Trata-se do livro de recordações poéticas de um menino em sua infância demarcada pelo espaço do interior de Minas Gerais. O símbolo do boi, um animal calmo, que rumina lentamente os alimentos, compara a condição de uma memória que não consegue digerir as recordações. Nas três obras que receberam o nome de

Boitempo, Drummond reúne um conjunto de memórias de espaços marcados pela

infância e que tratam, sobretudo, do tempo. O autor realizou esta reunião de poemas, uma vez que tratam da mesma sequência de tempo, existindo nos três livros a temática

da infância e da adolescência. Dessa forma, Drummond retratou momentos felizes de um meio semirrural, bem como alguns costumes relacionados a este tipo de vida.

O poema homônimo da obra Boitempo estabelece a representação de um espaço específico, demarcado pelo imaginário da roça:

Entardece na roça de modo diferente. A sombra vem nos cascos, no mugido da vaca separada da cria. O gado é que anoitece e na luz que a vidraça da casa fazendeira derrama no curral surge multiplicada sua estátua de sal, escultura da noite. (Andrade, 1983, p. 107).

A exploração de imagens e da visualidade de espaços vividos nos poemas é motivo de destaque na obra de Drummond. Os poemas de Boitempo trazem à tona as experiências dos espaços vividos, à medida que estão vinculadas às memórias que o eu lírico recupera, e sua vivência está intimamente relacionada à rememoração de acontecimentos marcados pela memória.

Assim, buscando reconstituir e comunicar a sua própria história, Drummond canta a sua cidade natal, confessando as suas origens:

Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas Oitenta por cento de ferro nas almas.

E esse alheamento do que na vida é porosidade e co- municação.

(Andrade, 1983, p. 36).

A leitura do poema Confidência do itabirano proporciona ainda a sensação de que – citando Costa Lima (1968), no ensaio O princípio da corrosão em Drummond, ao

afirmar “quando diz que Itabira “dói” como quadro na parede – o poeta promove a transferência da cidade do espaço para a memória, conferindo-lhe contornos de corrosão do tempo em tons expressionistas. Talvez Drummond tenha confessado a sua origem e descrito a sua terra natal e a si próprio de acordo com os sentimentos que aquela “fotografia na parede” lhe despertara, sentimentos de um eu fragmentado que procura se reconstituir por meio de um processo rememorativo.

Como exemplo dos espaços utilizados, por representarem uma tradição da memória, temos também o poema de Carlos Drummond de Andrade intitulado

Evocação Mariana, que se encontra em sua Antologia poética (Andrade, 1983), na parte

intitulada pelo próprio poeta, responsável por tal seleção, “Uma província: esta”. Percebe-se então a preocupação em abordar nas suas produções poéticas a temática referencial da província, no caso, o interior de Minas Gerais. Este poema canta a cidade mineira nomeada em seu título sob uma atmosfera de religiosidade cristã, o que pode ser comprovado pelas imagens “igreja”, “altares” e “fiéis”, assim como pela presença das figuras do “Padre cansado... de reza”, do “coro” e dos “incensos”. O ambiente descrito pelo poeta é excessivamente envolvido por uma adjetivação constante das imagens sugeridas, para esboçar valores e juízos sobre a cidade: “Igreja grande e pobre”, “altares humildes”.

A igreja era grande e pobre. Os altares, humildes. Havia poucas flores. Eram flores de horta. Sob a luz fraca, na sombra esculpida (quais as imagens e quais os fiéis?) ficávamos.

(Andrade, 1983, p. 37).

Diante das questões expostas e dos demais textos literários apresentados, comprova-se a intenção de Drummond de dar continuidade a uma tradição de representação dos espaços por meio da memória e, por conseguinte, estabelece uma recorrência da referência espacial de Minas Gerais presentificada no espaço do Rio de Janeiro. Para Octavio Paz “Entende-se por tradição a transmissão de notícias, lendas, histórias, crenças, costumes, formas literárias e artísticas, ideias e estilos de uma geração para outra” (Paz, 1983, p. 37).

Para suscitar a discussão sobre tradição e memória, ou melhor, a tradição da memória, como afirma o historiador contemporâneo Pierre Nora, um dos principais estudiosos associados a história nova. Para o autor, é necessário entender a tradição como costume da repetição do ancestral, que caracteriza a volta ao passado pelo exercício da memória. Na literatura, o recurso do uso da memória é imprescindível,

porque é necessária às vivências e experiências, que criam repertórios para que existam enredos, personagens, cenários, marcação temporal etc. Toda uma série de elementos literários que se presentificam com o recurso da memória na vida contemporânea.

Tendo em vista alguns pontos de discussão sobre tradição, espaço e memória estabelecidos por Pierre Nora, vale ressaltar que “o sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais da memória porque não há mais meios da memória.” (Nora, 1993, p. 7). Nesse sentido, o estudo do espaço literário cumpriria o papel de estabelecer um local para os resíduos da memória na civilização contemporânea.

Houve um tempo em que, através da história e em torno na nação, uma tradição da memória parecia ter achado a sua cristalização. História, memória, nação mantiveram, então mais do que uma circulação natural: uma circularidade complementar, uma simbiose em todos os níveis, científico e pedagógico, teórico e prático. A definição nacional do presente chamava imperiosamente sua justificativa pela iluminação do passado. (Nora, 1993, p. 11).

É interessante ressaltar que a memória relaciona-se com a origem, com o meio onde nasce e vive uma pessoa. Nota-se uma memória preenchida por uma variedade de acontecimentos de uma cidade do interior, no campo. No campo, podemos perceber a repetição do cotidiano, e o homem do ambiente rural tem a impressão muito forte de que tudo se repete no mundo. E este sentimento rural acompanha o poeta por toda a sua vida. Assim, questiona-se, então, na incidência da referência do espaço de Minas, Itabira, de Belo Horizonte e até do Rio de Janeiro para a compreensão da obra de Drummond.

Diante do exposto, verifica-se a necessidade de manter acesa a chama que caracteriza a memória como elemento fundador de uma tradição. Ao falar do fim da tradição da memória, Pierre Nora afirma que “os lugares da memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa” (NORA, 1981, p.11). Ainda de acordo com o autor, os lugares da memória são espaços como “museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados, processos verbais, monumentos, santuários, associações, são marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões da eternidade.” (Ibid, p.12). A estes marcos pode-se acrescer a literatura, pois é preciso preservar os lugares da memória, e se estes estão ameaçados, cabe à literatura, como agente presentificador do passado, manter eterna a chama da memória pela tradição de se contar história ou de se representar os espaços, seja pela prosa, seja pela poesia.

5. REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de (1930). Alguma poesia. Belo Horizonte: Edições Pindorama.

______ (1983). Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio.

______ (2001). Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Record.

______ (2012). Fala, amendoeira. São Paulo: Companhia das Letras.

BACHELARD, Gaston (1979). A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.

BORGES, Jorge Luis (1994). Discussão. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

CANDIDO, Antonio (1970). Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades.

FRIEDRICH, Hugo (1991). Estrutura da lírica moderna. Trad. Marise M. Curioni e Dora F. da Silva. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades.

LIMA. Luiz Costa (1968). “O princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond de Andrade”. In: Lira e

antilira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

NORA, Pierre (1981). Projeto história 10, São Paulo.

PAZ, Octavio (1984). Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

SANTIAGO, Silviano (2002). Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.

SUSSEKIND, Flora (1993). Papéis colados. Rio de Janeiro: UFRJ.

VILLAÇA, Alcides (2006). Poética da memória. In: ___ Passos de Drummond. São Paulo: Duas cidades.

Recebido: 31 de maio de 2015.

ESPAÇO LITEROLINGUÍSTICO EM DOM CASMURRO DE MACHADO DE ASSIS

No documento Editorial do n. 50-A (páginas 89-95)