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INTERFACES POÉTICAS

No documento Editorial do n. 50-A (páginas 82-86)

ESPAÇO E MEMÓRIA EM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE SPACE AND MEMORY IN CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

2. INTERFACES POÉTICAS

Em Alguma poesia (Andrade, 1930), obra de estreia em livro sob o signo modernista, encontramos um dos poemas com viés sobre o espaço memorial do estado de Minas Gerais concebido a partir do recorte da cidade do Rio de Janeiro, por meio do “vento de Minas”. Assim os versos

Foi no Rio.

Eu passeava na Avenida quase meia-noite. Havia a promessa do mar

E bondes tilitavam, Abafando o calor Que soprava com o vento E o vento vinha de Minas. (Andrade, 1930, p. 104).

estabelecem campos semânticos que configuram interfaces entre os dois espaços representativos para o sujeito lírico em um tempo definido pelo presente vivido na cidade do Rio de Janeiro, notadamente na descrição de uma “Avenida quase meia-noite”. O sujeito lírico mesmo apresentando alguns contratempos em relação ao calor, revive o “vento de Minas” que soprava em outro lugar, na cidade do Rio de Janeiro, e, desse modo, traz tranquilidade e harmonia. Logo em seguida, há um distanciamento do espaço de Minas Gerais, destacado pelo elemento “vento”, que dá ideia de movimento e transitoriedade. Nesse contexto, o crítico brasileiro, Antonio Candido nos chama a atenção como sendo um dos paradoxos da obra de Drummond: a “obsessão simultânea de passado e presente, individual e coletivo, igualitarismo e aristocracia. Sem o conhecimento do passado ele não se situa no presente; a família define e explica o seu modo de ser.” (Candido, 1970, p. 85)

O conflito simultâneo entre passado e presente verifica-se como um confronto do “eu” no mundo do presente com o passado tendo em vista a sua origem e reforça que pertenceu a uma família tradicional, mineira, aristocrata.

3. Essa crônica encontra-se publicada no livro Fala, amendoeira, que reuniu crônicas escritas para o jornal Correio da manhã, no período de 1954 a 1957, data da primeira edição. Antes, foi publicada na coluna Imagens escrita para o jornal Correio da Manhã (RJ), em 17/04/1956.

Meus paralíticos sonhos desgosto de viver (a vida para mim é vontade de morrer)

Faziam para mim homem realejo imperturbavelmente

Na Galeria Cruzeiro quente quente e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro,

Nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso. (Andrade, 1983, p. 104).

O elaborado uso de imagens poéticas e recursos linguísticos permite à voz lírica transitar em espaços por meio de paradoxos, como no verso “Meus paralíticos sonhos desgosto de viver” (Andrade, 1983, p.104). O léxico selecionado gera atmosfera de não realização do sujeito lírico, que vê na vida a vontade de morrer. O poeta vale-se de recursos sensoriais para descrever os espaços de memória evidenciados pela presença do “vento de Minas”. A sinestesia provocada pelo contraste entre o “calor” e o “vento” cria uma simbologia que intensifica a vontade do poeta em exprimir-se em contradições evidenciadas em sua consciência de ser um poeta “gauche”. Continua, o vento abafava o calor da Galeria do Cruzeiro,4 que era “quente quente”, enquanto em meio à multidão do centro comercial “não conhecia ninguém a não ser o vento mineiro”. A percepção do “doce vento mineiro” aparece para acalmar o poeta, que se vê abafado no meio de um espaço de numerosas casas comerciais, bares e restaurantes, como a citada galeria.

Nesses versos, mais do que reviver por meio da poesia, o espaço da memória guarda o passado e estabelece uma relação decisiva para a aceitação do espaço vivido no presente. O poeta, já mais velho, não deixa de revisitar a terra natal e pensa as “inquietudes” do mundo tendo em vista um “eu todo retorcido pelo mundo” (Andrade, 1983, p.56). Atualiza o presente, utilizando a imagem de tranquilidade provocada pelo “vento que vinha de Minas” (Andrade, 1983, p. 104). Já a imagem da cidade urbana é recriada pelo bonde que tilitava, pelo calor que interrompe a linguagem e declara repentinamente: “nenhuma vontade de beber, eu disse: acabemos com isso” (Ibid, p.104).

Para Hugo Friedrich (1991) em sua obra Estrutura de lírica moderna a desromantização desconstrói a lírica moderna que reflete não somente o lado confessional, mas também uma tentativa de ajuste de um “eu todo retorcido” (Andrade, 1983). Há ainda uma conciliação com a cidade no verso deste mesmo poema: “O mar batia em meu peito, já não batia no cais.” E assim ratifica sua declaração amorosa, nos

4. A Galeria Cruzeiro era a parte comercial localizada na área térrea do Hotel Avenida, que foi inaugurado em 1910, tornando-se um dos espaços mais importantes da antiga Avenida Central,

últimos versos do poema: “a cidade sou eu/sou eu a cidade/meu amor”. O poeta se personifica pelo reconhecimento amoroso à cidade, demonstrando amor aos dois espaços que o acolheram, estabelecendo um jogo amoroso dialético entre Minas Gerais e o Rio de Janeiro:

Mas tremia na cidade uma fascinação casas compridas Autos abertos correndo caminho do mar

Voluptuosidade errante do calor

Mil presentes da vida aos homens indiferentes, Que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis Choraram.

O mar batia em meu peito, já não batia no cais. A rua acabou, quede as árvores? A cidade sou eu a cidade sou eu

sou eu a cidade meu amor. (Andrade, 1930, p. 104).

O poeta, ao rememorar o “vento de Minas”, tão importante em sua vida, expressa a lembrança e a saudade de espaços fundamentais, os quais Bachelard denomina “espaços amados”, porque transportam facilmente para outros lugares, para outros tempos, para planos diferentes de sonhos e lembranças (Bachelard, 1979, p. 232). A exposição de Bachelard considera o imaginário para se referenciar aos lugares de nossa lembrança, tais lugares não são propriamente espaços físicos, mas espaços da imaginação que nos fazem refletir sobre a nossa condição do presente por meio da memória destes espaços de acolhimento.

Nesse sentido, passemos para os versos de abertura do poema Prece de mineiro

no Rio. O tom de dedicatória amorosa aparece explícito pela conotação religiosa, que

pressupõe o ato religioso de expressar um pedido ou súplica por meio da repetição de texto específico. O poema, já no título, apresenta esta forma de oração, que traduz as experiências do sujeito lírico, determinadas pelos dois espaços geograficamente distintos. Os sentimentos que evocam tanto Minas Gerais quanto Rio de Janeiro são marcados por voz lírica que, ao relembrar do “espírito de Minas”, consegue se acalmar na cidade em alvoroço. O deslocamento estabelecido entre os dois espaços representa para o poeta sentimentos antagônicos de ordem na desordem. Ao lembrar da quietude das cidades mineiras na agitação da cidade do Rio de Janeiro, Drummond transita entre estes espaços, e os torna recorrentes em sua obra:

Espírito de Minas, me visita, e sobre a confusão desta cidade, onde voz e buzina se confundem, lança teu claro raio ordenador. conserva em mim ao menos a metade do que fui de nascença e a vida esgarça: não quero ser um móvel no imóvel, quero firme e discreto meu amor, meu gesto sempre natural,

mesmo brusco ou pesado, e só me punja a saudade da pátria imaginária.

(Andrade, 1983, p. 46).

Desse modo, é como se pudesse mostrar uma fusão dos espaços por meio dos sentimentos, materializados pelo discurso com elementos semelhantes ao de uma oração. Agora, já não são os ventos que ressignificam Minas Gerais, mas sim o “Espírito de Minas”, que revisita este espaço importante para a compreensão da memória na obra de Drummond. A metáfora do “claro raio ordenador” em detrimento da “confusão desta cidade” parece alimentar o poeta, que “não quer ser um móvel no imóvel” e que declara o seu amor por meio de um gesto natural de “saudade da pátria imaginária”.

A “pátria imaginária” estará presente, sob diferentes perspectivas, na raiz da poesia feita em Minas Gerais em junção com o seu contexto atual, urbano, representado pela cidade carioca. O poeta, herdeiro de uma tradição cultural patriarcal, rural e católica, se vê em oposição crescente aos anseios da cidade moderna do Rio de Janeiro. Ao reverenciar a herança mineira, ora a refuta em nome de apego aos valores locais, ora vive o drama dos exilados na própria terra, dividido entre dois territórios, duas culturas, duas formas de pensar a própria identidade. Instância similar pode ser observada em “Na roça penso no elevador, no elevador penso na roça”, do poema Explicação, de

Alguma Poesia, onde o poeta dramatiza duas experiências que, delimitadas por espaços

antagônicos, se encontram nas imagens recriadas para estabelecer outro espaço imaginário, além das considerações geográficas.

Na continuação do poema Prece de mineiro no Rio:

Espírito mineiro circunspecto talvez, mas encerrando uma partícula de fogo embriagador, que lavra súbito, e, se cabe, a ser doidos nos inclinas:

não me fujas no Rio de Janeiro,

como a nuvem se afasta e a ave se alonga, mas abre um portulano ante seus olhos que a teu profundo mar conduza, Minas, Minas além do som. Minas Gerais. (Andrade, 1983, p. 47).

O “Espírito mineiro circunspecto” realiza-se após se manifestar de forma diferente no espaço do Rio, haja vista que é lá (presente) a sua morada, e a cidade bate em seu coração, não mais no distanciada. Incorporando finalmente as características deste local e encontrando o lugar onde ele se resolve, o poeta finaliza o poema declarando seu amor à cidade (grande, urbana), diferentemente da cidade pequena, interiorana. Assim sendo, esta acaba por se tornar uma evidência da obra de Carlos Drummond de Andrade.

Observa Silviano Santiago que “a memória branca do menino nunca esquecerá as cantigas de ninar separadas pelo vento e pela voz da preta velha e que lhe chegavam em harmonia com o gostoso café preto.” (Santiago, 2002). Para continuar a reconstrução de si mesmo, o poeta conta com o auxílio das lembranças de Itabira ressignificadas pelo “vento de Minas”, que não o deixam se afastar da própria origem. Estas lembranças permitem-lhe constituir a tradição, revelando as características da terra, dos conterrâneos e, por conseguinte, de si próprio. O poeta precisa abstrair-se dos sentimentos de dor e de sofrimento para deixar a memória fluir livremente, tornando o presente claro e sinônimo de tranquilidade.

Contudo, apesar de ter confessado a sua procedência itabirana, mineira, assumindo, pois, as suas raízes, o eu poético consegue alcançar um objetivo, mesmo ainda se encontrando fragmentado pelo presente. A partir do momento em que o sujeito poético abandona os sentimentos da dor do perdido, consegue resgatar o passado, lançando-lhe um novo olhar e saboreando o presente, sem ser perturbado pela angústia provocada pela urbanidade. O prazer pode ser atingido quando o poeta, ao se reencontrar com o cenário da fazenda de Itabira e com o homem rural que tinha grande ligação com a natureza, aceita o presente retratado pela cidade do Rio de Janeiro.

No documento Editorial do n. 50-A (páginas 82-86)