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O ESPAÇO NA ESTRUTURA DO TEXTO ARTÍSTICO

3 O ESPAÇO DO ROMANCE

3.2 O ESPAÇO NA ESTRUTURA DO TEXTO ARTÍSTICO

Iuri Lotman (1922-1993), em sua obra A estrutura do texto artístico (1970), afirma que “sendo espacialmente limitada, a obra de arte representa o modelo de um mundo ilimitado”.62 A lei geral da arte é representar um modelo finito de um mundo infinito, sendo a reprodução de uma realidade em outra, isto é, uma tradução. A arte modeliza a realidade que é um objeto ilimitado pelos meios de um texto finito. Cada texto modeliza simultaneamente um objeto particular e um objeto universal.

Para muitas pessoas o conceito de universalidade tem um caráter espacial. A estrutura do texto torna-se “um modelo da estrutura do espaço do universo e a sintagmática interna dos elementos interiores ao texto, a linguagem da modelização

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BAKTIN, M. Op. cit. p. 112.

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espacial”.63 Os modelos do mundo encontram-se providos de características espaciais. De acordo com Lotman, os modelos históricos e nacionais-lingüísticos do espaço tornam-se a base organizadora da construção de uma imagem do mundo. Em alguns textos, o modelo espacial do mundo pode transformar-se no elemento organizador em torno do qual se constroem também as suas características não espaciais. Além disso, em certas obras, os desvios em relação ao sistema caracterizado de relações espaciais que organiza o texto, tornam-se particularmente significantes.

Um traço essencial que organiza a estrutura espacial do texto é a oposição fechado/aberto. O espaço fechado é interpretado no texto sob a forma de diferentes imagens, como casa, cidade, pátria, com características opostas ao espaço exterior. Assim, a fronteira torna-se um traço topológico muito importante, por dividir o espaço em duas partes (a estrutura de cada subespaço deve ser diferente). Lotman cita como exemplo o espaço do conto maravilhoso, que se divide em floresta/casa: “Os heróis da floresta não podem penetrar na casa – eles permanecem fixos atrás de um determinado espaço”.64 Uma personagem pode pertencer ao espaço fechado ou ao espaço aberto. Em A Sibila, por exemplo, encontram-se pares de espaços contrastantes, como a casa/a rua, o campo/a cidade. Algumas personagens mantêm-se fixas em determinados espaços, não conseguindo adaptar-se a outros, como é o caso de Narcisa Soqueira que, mesmo tendo a oportunidade, não consegue viver longe do meio rural.

Há casos mais complexos em que diversos heróis não só pertencem a vários espaços, mas também estão ligados a tipos diferentes, por vezes, incompatíveis da fragmentação do espaço. O mesmo mundo do texto encontra-se fragmentado de maneira diferente consoante os vários heróis. Ele surge como uma polifonia do espaço, um jogo pelas suas diversas formas de fragmentação. Em alguns romances, o choque entre as diferentes personagens é simultaneamente um choque entre as suas idéias acerca da estrutura do mundo. Observando-se isso, a personagem Quina, de A Sibila, é bastante complexa, pois além de dominar o espaço doméstico da casa da Vessada, transita com sucesso no espaço público (normalmente exclusivo dos homens), angariando o reconhecimento da população do povoado.

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LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Trad. Maria do Carmo Vieira Raposo e Alberto Raposo. Lisboa: Estampa, 1978. p. 349.

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Mas quando visita seus irmãos, na cidade grande, sente-se deslocada. O choque entre os espaços rural e urbano reforça a divergência de idéias acerca da vida e do mundo que existe entre Quina e seus irmãos.

Ao problema da estrutura do espaço artístico, estão ligados o assunto e o ponto de vista: “O lugar das ações não é somente as descrições da paisagem ou do fundo decorativo”.65 Todo o continuum espacial do texto, em que se representa o mundo do objeto, ordena-se segundo um certo plano, o qual é provido de objectalidade, na medida em que o espaço apresenta-se ao homem sob a forma de objetos concretos que o preenchem. Nas obras, o espaço pode aproximar-se ou afastar-se da realidade do autor. Sabendo-se que Agustina Bessa-Luís nasceu em Vila Meã, Amarante (região do Douro), em uma família de raízes rurais e estudou na cidade do Porto (espaço urbano muito citado no romance), para onde se mudou definitivamente, em 1950, pode-se concluir que os espaços da obra provêm da realidade e da experiência da escritora.

Por detrás da representação das coisas e objetos, no ambiente onde agem as personagens, aparece um sistema de relações espaciais, uma estrutura do plano que pressupõe um princípio de organização e disposição das personagens no

continuum artístico e intervêm, enquanto linguagem, na expressão de outras

relações não espaciais do texto. O espaço artístico do texto tem um papel modelizante particular ligado ao conceito de tema.

A base do conceito de tema é a idéia de acontecimento, entendido como a menor unidade indissolúvel da construção do tema (motivo), posta em correlação com o plano exterior. Possui uma essência, ao mesmo tempo, única e dupla; expressão verbal e conteúdo ideológico usual. Uma mesma realidade, entretanto, pode adquirir ou não o caráter de acontecimento, em textos diversos. Em A Sibila, o andamento do tema é dado, especialmente, pelas personagens femininas, divididas em três gerações. A primeira composta por Maria e Estina, não chega a superar o seu campo semântico inicial, já que ambas permanecem na esfera doméstica, sem desafiar o comando exercido pelos homens. A segunda, representada por Quina, avança em direção à conquista de novos espaços e papéis sociais, através do ganho do próprio sustento e da renúncia ao casamento. A terceira, simbolizada por Germa, traz a perspectiva da mulher do século XX, que não aceita o jugo masculino.

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Junto à passagem das gerações, nota-se a evolução do pensamento e comportamento femininos e o desenvolvimento de uma nova sociedade. As mudanças e os acontecimentos são provocados pelas mulheres.

A personagem representa uma intersecção de funções estruturais. É também o ponto de partida do movimento do tema, estabelecendo uma relação de diferença e liberdade recíproca entre o herói actante e o campo semântico que o envolve. Se o herói coincide com o ambiente e não se destaca dele, o desenvolvimento do tema é impossível, o actante não pode efetuar a ação: “O tipo de imagem do mundo, o tipo de tema e o tipo de personagem condicionam-se mutuamente”.66 O caráter da personagem é um paradigma que consiste na “reunião de todas as oposições binárias, dadas no texto, às outras personagens (...) uma reunião de traços diferenciais”.67 Por isso, as oposições entre algumas personagens, de A Sibila, são de grande importância para a compreensão de suas personalidades. De um modo geral, a grande oposição do texto ocorre entre as personagens femininas e as masculinas, em que as segundas, por sua fraqueza de caráter, reforçam as características de força moral e perseverança das primeiras. Porém, há outras oposições significativas, como, por exemplo, entre as personagens Maria e Estina, em contraste com Quina e Germa. As primeiras não evoluem no decorrer da narrativa, submetendo-se ao mando masculino, mesmo quando podem superá-lo. Perpetuam o sistema patriarcal. As segundas rejeitam o matrimônio, tornam-se mulheres sem par, alterando o modelo social vigente. As personagens artísticas são construídas como realização de um esquema cultural determinado e como um sistema de desvios em relação a esse.

Em alguns textos, o “eu” não é um elemento do mundo, mas o mundo, o espaço para os acontecimentos interiores. Em relação ao ponto de vista, o modelo artístico reproduz uma imagem do mundo por uma dada consciência. Em certas obras, não há só um ponto de vista, mas vários. O ponto de vista do herói, normalmente, é construído com os pontos de vista do autor e das personagens. Em

A Sibila, em alguns momentos da narrativa, o narrador onisciente conta a história a

partir da visão de uma das personagens, por meio de uma memória individual.

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LOTMAN, I. Op. cit. p. 375.

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Idem. Ibidem. p. 394.

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Devido ao importante papel do espaço artístico nos alicerces do texto, o ponto de vista recebe uma encarnação espacial: “O ponto de vista intervém como

orientação do espaço artístico”.68 Por exemplo, em um texto onde se encontra a oposição espaço interior/espaço exterior, o ponto de vista da narração coincidirá com um deles. Outro aspecto importante em relação ao espaço é o fato de as personagens serem regidas por normas de conduta não só de acordo com o seu caráter, mas também por normas de conduta dos espaços, ou seja, as normas gerais dos lugares regulam a conduta do herói.

As idéias de Lotman fundamentam a análise do espaço artístico, em A Sibila. Considera-se também a relação que o autor estabelece entre o espaço e a personagem e suas ações (tema). O mundo recebe uma encarnação espacial e divide-se em espaços opostos, em que circulam as personagens. Há personagens imóveis, presas a determinados espaços, e personagens móveis que transitam entre um espaço e outro. Quando uma personagem transgride o espaço que lhe é concedido, ultrapassando as fronteiras, tem-se um acontecimento que movimenta o tema.