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O feminino: entre o público e o privado

3 O ESPAÇO DO ROMANCE

3.5 O ESPAÇO DO FEMININO

3.5.1 O feminino: entre o público e o privado

Maria Lúcia Rocha-Coutinho analisa a família e o papel da mulher em sua obra Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares. Ela explicita que o confinamento da mulher à esfera doméstica, ao contrário do que comumente se pensa, só começa a se configurar a partir da ascensão da burguesia, do surgimento da sociedade industrial e do capitalismo.

O confinamento da mulher e sua redução ao papel de esposa e mãe parece estar intimamente ligado a uma nova idéia de família, que teve origem no amor romântico, fenômeno relativamente recente. A família, para ela, não é natural, mas cultural, em suas palavras, “a família é uma construção social, uma superação da família biológica (macho-fêmea-crias)”.85 Com o surgimento de um novo contrato

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NYE, A. Op. cit. p. 42.

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ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo atrás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 27.

matrimonial, marcado pelo amor, a feição da família antiga se modifica. É o que a estudiosa denomina de Revolução Sentimental do Século XVIII, que se caracteriza pelo amor conjugal, materno e pelo sentimento de intimidade que passa a permear as relações entre os membros da família.

O Romantismo torna-se um instrumento cultural que encobre a opressão que sofre a mulher. A Revolução Sentimental é decorrente das idéias propagadas pelas Luzes, como a igualdade e a felicidade individual, que incentivaram a expressão do amor em todas as suas formas, o que refletiu sobre o casamento “baseado agora no amor e na liberdade de escolha, caminha paralelamente ao nascimento da moderna família nuclear que se fecha e se volta para si mesma”.86

A mudança surte o efeito de centrar a família na figura da mulher-mãe. A mulher assume a responsabilidade pelo bem-estar dos filhos e do esposo e torna-se a intermediária entre os filhos e o mundo (pai, escola, médico, por exemplo). Devido ao conceito de amor romântico e à sua mistificação, a mulher passa a viver para amar: o marido, os filhos e a casa. Portanto, o mundo externo fica apenas ao encargo do homem.

Um paralelo entre o mito da infância e o mito da feminilidade pode ser estabelecido, pois a nova família burguesa, priorizando a criança, passou a controlar mais a mulher, principal responsável pela boa criação dos filhos. Tanto a criança como a mulher foram consideradas frágeis, delicadas e puras, necessitando da proteção masculina. Deveriam ser protegidas, inclusive, de assuntos sérios ou relacionados a sexo. Assim, consolidou-se o discurso da “natureza feminina”.

Na família antiga, anterior ao surgimento da sociedade industrializada moderna, a mulher não era considerada fraca, sensível e inadequada para o trabalho. Pelo contrário, ela trabalhava junto ao homem, participando do processo econômico, o que não a impedia de cuidar das crianças. A família, então, compreendia uma estrutura de parentesco extensa e alguns membros até não compartilhavam consangüinidade. Para a análise marxista, a família era, naquele momento, uma unidade de produção e consumo.

Com as mudanças político-econômicas, a família reduz-se e ocorre a separação da esfera doméstica da esfera do trabalho, constituindo o que hoje se chama âmbito privado e âmbito público. O privado é o espaço da afetividade,

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enquanto o público é o da racionalidade, da inteligência e da eficácia no exercício do poder. A mulher passa a relacionar-se apenas ao privado, lugar dos sentimentos e da intimidade. O homem ao público, onde se trabalha, para garantir a sobrevivência da família. A família transforma-se numa unidade somente de consumo e de reprodução biológica, social e da força de trabalho. Entretanto, o trabalho doméstico da mulher não é considerado trabalho, por situar-se em âmbito privado, não se revestindo, portanto, de prestígio social. Dessa forma, a contribuição da mulher para o bem-estar social, seu esforço que apóia e viabiliza o sistema econômico é ignorado. A dona-de-casa fica de fora dos benefícios que vão aparecendo na sociedade capitalista, como salário, férias, limite de jornada, licença, aposentadoria ou seguro social. Os espaços públicos restringem-se aos homens e as mulheres são marginalizadas socialmente e anuladas como pessoas: “Elas passam a ser e a viver para os outros e não para si mesmas e sua afirmação pessoal consiste precisamente em negar-se como pessoa”.87

O confinamento da mulher ao lar e a sentimentalização do âmbito privado outorgaram à mulher um outro tipo de poder, não menos opressivo que o desempenhado pelo homem. Enquanto o homem exercia o poder sobre os bens patrimoniais, a mulher passou a exercer o poder sobre os bens “simbólicos” dos filhos. A mulher é consagrada a “rainha do lar”, tendo autoridade sobre a casa e as crianças e, assim, tem acesso a todos os segredos e intimidades dos filhos, exercendo a vigilância materna.

Essa atenção total da esposa à família era considerada, pelos homens, uma maneira de apaziguar o lado demoníaco de toda mulher. Inclusive o erotismo da mulher estava sendo suplantado por uma passividade conjugal, resultado da separação radical entre reprodução e prazer sexual. A mulher era reprimida, através do investimento em práticas maternais cada vez mais intensas e abrangentes.

A fim de esclarecer ainda mais o mito da mulher-mãe, Rocha-Coutinho compara a formação do mesmo à passagem de Eva pecadora para a santificada Maria, de criatura diabólica para um ser doce e sensato. A maternidade é engrandecida e deve ser o grande desejo de toda mulher. O sentimento materno passa a ser visto como inato e assume um significado social.

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No século XIX, Rousseau acrescentara mais uma função à mulher: não basta gerar o filho, é preciso saber educá-lo. Incute-se a crença de que a mulher educando os filhos, está governando o mundo. Idéia que, mais tarde, será utilizada por governos ditatoriais, como o de Salazar, em Portugal. Mas, por outro lado, coloca-se pressão sobre a mulher, que passa a ser julgada virtuosa ou falha, de acordo com a educação que os filhos demonstram. Se a sociedade louva a boa mãe, castiga e pune a mãe “má”, que fracassou em sua tarefa de educadora. Essa pressão social faz com que a mulher dedique-se ainda mais intensamente aos filhos para não “ser acusada e/ou sentir-se culpada do maior dos crimes maternos: a negligência”.88 Deduz-se que esse ideal de maternidade desenvolvido no século XVIII e reforçado no século XIX, induziu as mulheres, no decorrer dos anos, a dedicaram-se a profissões como professora e enfermeira, extensões da essência de mãe.

A mulher aceitou esses papéis ditos femininos, possivelmente, por não ter consciência de sua subordinação ou por aceitá-la como algo natural. Talvez algumas mulheres tivessem lampejos de consciência, mas procuravam manter a mística da maternidade “porque se analisassem suas vidas de uma outra perspectiva, e com outros critérios, o resultado seria terrível, insuportável, e preferem não fazê-lo”.89 Para tornar o seu cotidiano mais agradável, as próprias mulheres buscaram envolver as suas atividades sob uma aura de afeto e romantismo.

O discurso da natureza feminina promoveu uma simbiose entre a feminilidade e a maternidade. Assim, foram negadas às mulheres as qualidades valorizadas para a vida pública, como perspicácia intelectual e pensamento lógico, que passaram a ser vistos como valores antifemininos. Pode-se acrescentar à percepção de Rocha- Coutinho, que também o homem se viu afastado da vida doméstica, não podendo interessar-se mais profundamente pela casa e pela família, pois isso era considerado indecente para a natureza masculina. A conclusão a que se chega é de que a “passividade” feminina não é um traço de sua natureza, mas o resultado de um longo processo histórico-social:

As diferenças biológicas entre homens e mulheres são, no entanto, significativas: os homens não podem engravidar, parir ou amamentar. Estas diferenças, contudo, só são significativas à luz de um discurso social. Parir é um fato natural, ser mãe, no entanto, é um trabalho que molda a mulher e, portanto, uma construção ideológica. Tais construções, que têm

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ROCHA-COUTINHO. Op. cit. p. 38.

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enquadrado a mulher no que denominamos ‘identidade feminina’ (...) são construções discursivas que marcaram definitivamente a psicologia feminina, tornando a mulher incompatível com a chamada ‘vida ativa’ e explicando sua ausência dos centros de poder e decisão da sociedade. (ROCHA-COUTINHO, 1994, p.45)

A identidade feminina é formulada a partir dos interesses dos homens, que compõem o grupo dominante. São eles que decidem sobre o sentido da elaboração simbólica das características atribuídas às mulheres, como sensibilidade, fragilidade, intuição, docilidade, entre outras. O patriarcalismo e a subordinação da mulher foram construídos historicamente, isto é, não podem ser considerados aspectos naturais. A tentativa de justificar essas desigualdades entre o homem e a mulher, dando isso como natural, é na verdade uma forma de encobrir o que foi produzido culturalmente.

Na sociedade patriarcal, a identidade feminina consiste numa “moldura” a que a mulher é submetida à força e que passa de mãe para filha. Porém, os reflexos dessa identidade são sentidos ainda em nossa sociedade, de várias formas. Nos livros didáticos, utilizados em muitas escolas; na indústria de brinquedos, que institui os carrinhos e as bolas para os meninos e as bonecas para as meninas; em alguns aspectos da legislação, que aos poucos vão sendo modificados; na literatura, no teatro e no cinema, com suas personagens estereotipadas; na música popular, através da exaltação às “Amélias”; na publicidade, com as “boazudas” ou as “mães/esposas perfeitas”; enfim, em toda a produção cultural e no discurso social.