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3 O ESPAÇO DO ROMANCE

3.4 O ESPAÇO E A PERSONAGEM NO ROMANCE

Ian Watt, em sua obra A ascensão do romance, afirma que o romance diferencia-se dos outros gêneros e de formas anteriores de ficção pelo grau de atenção que dedica à individualização das personagens e à detalhada apresentação de seu ambiente. Depois de Descartes ter conferido importância aos processos de pensamento do indivíduo, filósofos e romancistas passaram a se preocupar com a

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BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca, s/d. p. 49.

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abordagem particularizante da identidade pessoal do sujeito e da personagem, respectivamente. Locke definiu a identidade pessoal como uma identidade de consciência ao longo de um período de tempo e Hume atribuiu à memória o papel de formar uma cadeia de causas e efeitos, através das lembranças, que constitui o nosso self.

O tempo e o espaço são categorias relacionáveis, por isso as personagens do romance só podem ser individualizadas, quando situadas em tempo e local particularizados. O romance é o gênero que reflete o pensamento moderno de que o tempo é uma dimensão crucial do mundo físico e uma força que molda a história individual e coletiva do homem. O enredo do romance distingue-se da maior parte da ficção porque desenvolve suas personagens no curso do tempo, evidenciando a experiência passada como causa da ação presente e fornecendo-lhe uma estrutura mais coesa.

O tempo da narrativa, em A Sibila, não é o cronológico, mas o tempo da memória, isto é, com idas e vindas, volteios e desvios, ora no presente, ora no passado, ora em um passado ainda mais remoto, predomina a anacronia temporal. O narrador onisciente, conhecendo o presente, o passado e o futuro das personagens, joga com os tempos. Prevê fatos, assim, como volta a acontecimentos passados: “Morreria muito velha e, com a idade, a mente havia de se debilitar, provocando-lhe (...) atropeladas recordações, esse viver retrospectivo cheio de visões passadas” (p. 19). Conhece as lembranças de cada uma das personagens e, igualmente, a memória coletiva da comunidade. A memória dita o desenrolar da história, dando à estrutura narrativa uma impressão confusa. Algumas marcas temporais presentes fornecem pistas para o leitor que, pouco a pouco, consegue montar o “quebra-cabeça”. Uma marca de tempo muito importante é a data do incêndio na casa da Vessada, 1870. Sabendo que esse evento ocorreu algumas semanas depois de Maria da Encarnação ter casado com Francisco e se mudado para lá, tendo vinte anos de idade e ele quarenta, sendo que se conheceram quando ela tinha nove anos e tiveram a segunda filha, Quina, sete anos depois do casamento, fica fácil calcular as datas dos acontecimentos e a idade das personagens, no decorrer da trama.

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A noção de inseparabilidade entre espaço e tempo pressupõe o espaço como correlativo do tempo. A idéia de tempo está normalmente misturada à idéia de espaço. Na memória, não se consegue visualizar um momento passado sem se reportar ao seu contexto espacial. Nas primeiras narrativas, tanto o tempo quanto o espaço eram vagos.

As convenções de tempo e espaço, do romance, exigem menos do público do que a maioria das convenções literárias e isso explica “por que a maioria dos leitores dos últimos dois séculos tem encontrado no romance a forma literária que melhor satisfaz seus anseios de uma estreita correspondência entre a vida e a arte”.72 Outro motivo consiste na identificação mais profunda e convincente entre o leitor e as personagens que o romance proporcionou, oferecendo um cenário muito completo e um relato detalhado de idéias e sentimentos que “faz parecer verdade literal”.73

Helena Carvalhão Buescu, em seu ensaio “George Sand e Júlio Dinis: questões de espaço no romance rústico francês e português”, afirma que o espaço no romance pode ser entendido como “representação de um lugar físico em que se manifestam, entrecruzam e problematizam as relações humanas e sociais”.74 Tal maneira de pensar o espaço implica em articulá-lo com a temporalidade, comprovando que “toda a reflexão sobre o espaço do romance postula a inclusão de certos elementos temporais”75, concordando com o que Paul Ricoeur designa de “mundo do texto”, isto é, um conjunto, ao mesmo tempo, heterogêneo e coerente.

O romance rústico, conforme a teórica portuguesa, consiste em lugar narrativo privilegiado para a análise do espaço, em suas duas dimensões: a primeira, geográfica, admitida como natural do ponto de vista do narrador e das personagens; a segunda, cultural e ideológica, já que o espaço é investido de sentido e de valores. A rusticidade do espaço representa um fator de construção de um mundo cultural. Em A Sibila, a rusticidade está presente não só na descrição das personagens, em sua indumentária, em seus costumes, em suas tarefas diárias relacionadas à agricultura e à pecuária, mas também em sua mentalidade, na maneira de compreender a vida. A rusticidade caracteriza o seu ambiente, o seu mundo exterior e interior: “Desesperava-se para voltar para o seu preguiceiro

72

WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 32.

73

Idem. Ibidem. p. 178.

74

BUESCU, Helena Carvalhão. Georg Sand e Júlio Dinis: questões de espaço no romance rústico francês e português. In: A lua, a literatura e o mundo. Lisboa: Cosmos, 1995. p. 51.

carcomido de velhice, escolhendo os pulgões das couves e a ouvir o estrugir do unto que respingava dos potes de ferro sobre o lume” (p. 47).

O espaço é, portanto, elemento que contribui para a composição das personagens, da intriga e da visão de mundo proposta pelo texto. Nos romances, normalmente, o cotidiano do homem está relacionado à natureza e as atividades na terra regulam a sua vida. Destacando-se também, em certas obras, a “oposição funcional de lugares”76, ou seja, espaços que podem ser divididos em pares contrastantes como, por exemplo, interior/exterior, casa/natureza, campo/cidade, como é o caso de A Sibila.

Buescu propõe que, no romance rústico, o espaço deve ser entendido como mediador em integração funcional com o sujeito, deixando de ser considerado mero cenário ou pano de fundo para a ação. O sujeito “aprende a viver, a amar ou a morrer num espaço que apresenta sempre com a sua vida”77, em relações integrativas, de ordem metafórica e metonímica. Além disso, o projeto de mundo proposto pela narrativa passa, necessariamente, pela forma como o espaço é concebido.

Dino del Pino, em Espaço e textualidade: quatro estudos quase-semióticos, afirma que a estrutura básica do texto viabiliza identificar nele três níveis espaciais, do exterior para o interior: espaço textual, espaço discursivo e espaço representativo. Somente no último a língua realiza-se em seus componentes psíquicos, ou seja, elementos e relações envolvendo conceitos, imagens, afetividades, estados de espírito, sentimentos, entre outros.

Esses elementos embora dependam do signo lingüístico, também envolvem representações de “coisas”, das quais o leitor já possui representações parciais em nível cognitivo, antes de ingressar no espaço textual. O papel do signo é evocar tais “coisas”, através do recurso de referência e, muitas vezes, propor um novo sentido para elas. Para tanto, o leitor precisa utilizar não só a sua competência lingüística, mas também códigos provenientes de sua experiência, vigentes no que Pino designa de “macro-espaço semiocultural”.78

75

BUESCU, H. C. Op. cit. p. 51.

76

Idem. Ibidem. p. 55.

77

Idem. Ibidem. p. 57.

78

PINO, Dino del. Espaço e textualidade: quatro estudos quase-semióticos. Porto Alegre: Mercado Aberto; São Leopoldo: UNISINOS, 1998. p. 93.

O autor divide o espaço representativo em espaço simbólico e espaço diegético, em que o primeiro consiste no interior “onde se dispõem e organizam os elementos pré-constituídos no discurso”79, mais ligado à lírica, enquanto o segundo é o espaço representativo da narrativa, entendido como “território espaço-temporal em que a história se desenvolve”.80

As diferentes propostas que cada teórico apresenta para o estudo da narrativa, leva à mesma conclusão de que o espaço e o tempo não consistem em mero cenário ou pano de fundo para o desenrolar das ações das personagens, mas se configuram como elementos de alicerce do texto, desempenhando papel fundamental na construção das personagens, do tema e do ponto de vista da narração.