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2.6 O cotidiano versus rotina

2.6.1 O espaço vivido entre crianças e adultos

Longe de invalidar a organização da rotina, que deve garantir a flexibilidade e a

plasticidade das ações dos adultos e das crianças, passamos a entendê-la conforme

crescemos, como aponta Elias, “somente ao crescer, com efeito, toda criança vai-se

familiarizando com o "tempo" como símbolo de uma instituição social cujo caráter

coercitivo ela experimenta desde cedo” (ELIAS, 1998, p. 14). As crianças são

orientadas a compartilharem das ações que fazem parte das organizações maiores,

compondo uma rede de configurações.

Após essas considerações, passamos a registrar a organização de professores,

assistentes e crianças no dia a dia no CEIM. As crianças começam a chegar por volta

das 6h40m da manhã, e às 12h50m até 13h10m. Os pais e mães ou outro responsável se

dirigem até a sala onde deixam as crianças que permanecem até a chegada da professora

na sala por volta da 7h. Após esse momento, as crianças se dirigem à sua sala

acompanhada da professora e da assistente e aguardam até o momento de tomar o café

da manhã, por volta das 7h30m. Enquanto isso, elas permanecem sentadas no tapete, ou

nas mesas quando essas estão organizadas, brincando individualmente com peças de

montar ou outros brinquedinhos, outras permanecem quietas e sonolentas, as quais são

acolhidas no colo. Algumas vezes o som é ligado com músicas infantis.

Na hora do café, as crianças são orientadas tanto pela professora quanto pela

assistente a guardarem os brinquedos e saírem em fila, o que ocorre também no turno

vespertino com as outras assistentes.

A fila parece integrar a rotina e o comportamento das crianças ao

longo do período escolar: na entrada postam-se em filas, cada qual na

sua turma e dirigem-se, sempre em fila para a classe. Na hora da

refeição [...] é a fila que permite o deslocamento para outro espaço.

Após as refeições vão, novamente em fila [...] para o banheiro. As

crianças que já terminaram ficam no final da fila esperando os outros.

(KISHIMOTO, 2000, p.8).

A fila se constitui como um mecanismo que pode conter ou disciplinar as

crianças.

Na ausência da professora, a professora substituta orienta as crianças a

recolherem os brinquedos quando retornam do café. Sentam-se à mesa e aguardam

conversando ou brincando com o colega ao lado a hora da música que é conduzida

diariamente pelas professoras. Isso ocorre também na hora do almoço, contrariamente

Figura 11 - As visitas de estudo. Fonte: FRATO, 1988.

do período vespertino que algumas vezes entoaram músicas, conduzidas pela professora

da turma do pré-escolar. Observei que logo no começo do ano as crianças observavam

atentamente a execução das músicas cantadas pelas outras crianças e quase não

cantavam ou cantavam partes da música, as que mais lhes chamavam atenção. Não

posso deixar de pontuar que as músicas entoadas eram de cunho infantil e religioso.

Logo após as músicas e oração, as crianças são servidas pelas professoras,

assistentes, estagiárias e outras funcionárias do Centro de Educação. As assistentes e

estagiárias tomam o café juntamente com elas, algumas em pé mesmo e outras sentadas.

As crianças têm liberdade de escolher se querem comer pão e tomar leite. No entanto,

quando as crianças não aceitam a alimentação, as professoras e assistentes deixam em

cima da mesa, pois as crianças vendo, as outras se alimentarem, mudam de ideia e

começam a comer. As professoras tomam café depois que as crianças voltam em fila

para a sala. No momento que as crianças já estão na sala, aguardando a professora, a

assistente geralmente senta em círculo no tapete com as crianças e cantam músicas. A

professora chega, organiza junto com a assistente, as mesas e cadeiras e convida as

crianças para cantarem (novamente). Geralmente, ela pergunta sobre quais músicas

querem cantar, porém, nem todas as vezes levam em consideração a fala da criança.

Professora: “que música nós vamos cantar hoje?”. Bruno diz rapidamente: “Pintinho

amarelinho” Professora: “Todo mundo fazendo a casinha”. E inicia-se a música.

Interessante que por algumas vezes ouvi de algumas crianças pedirem a música da

bruxa, do patati-patatá, que, na verdade, eles confundem música com histórias ou

filmes. Na execução das músicas algumas cantam, ora com entusiasmo ora

desanimadas, outras brincam com os colegas ao lado. Como podemos ver nessa

situação:

As crianças estão cantando e Marcos fala: ‘Rafael... Rafael’ (Marcos

está sentado ao lado de Rafael) e eles começam a conversar e brincar

ali mesmo. Ao terminar a música a professora fala: ‘Marcos e Rafael,

eles vão cantar sozinho, né? A hora que todo mundo tá cantando, tá

brincando.’ Marcos (num tom de voz bravo): ‘não quer canta!’

(acenando negativamente com o dedo da mão e cruzando os braços

em cima da mesa). Professora: ‘não quer cantar, então você pára de

bater no Rafael e fica quietinho. ’ (Marcos não está batendo no Rafael,

eles estão brincando). (Diário de campo, 28/02/11).

Algumas músicas chamam mais atenção, principalmente as músicas que

evidenciam o nome das crianças, por exemplo, “João pegou pão La na casa do... (nome

da criança). Eu vi um sapo, na beira do rio, de barriga verde, sentindo frio, não era sapo,

nem perereca, era o (a) (nome da criança), só de calcinha (só de cueca).” Logo depois

de cantar, a professora faz a leitura do calendário e do tempo com a participação das

crianças. Vale lembrar que não é uma leitura rotineira, ou seja, não é feita todos os dias.

Na ocasião, parte das crianças fica sentada de costas.

A partir desse momento, a professora aborda oralmente o conteúdo da aula para

depois fazer a “atividade”. Percebemos que para quase todo conteúdo existe uma

atividade de registro/gráfica, é como se fosse uma fixação dos conteúdos abordados. As

crianças que vão terminando as atividades são condicionadas a ficarem sentadas nos

seus lugares, caso contrário não poderão sair para o pátio. Em seguida, as crianças

geralmente saem para brincar no pátio com os brinquedos grandes (escorregadores,

gangorras, piscina de bolinhas). Depois fazem higiene nas mãos para almoçarem. Ainda

pudemos nos surpreender quando saíam da sala para irem ao pátio, nos momentos da

refeição ou quando necessitavam ocupar mesas e cadeiras. Saíam em disparada para

sentarem nas cadeiras de madeira que ficavam nas extremidades dos bancos, motivo de

briga e desentendimento entre eles como também em relação à disputa pelos pratos de

“rodinhas

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” como eles mesmos falavam. Ao colocar os talheres e passar de um lado

para o outro na borda do prato, que por não ser lisa, produzia um barulho, como pode

ser evidenciado na fala de Marcos: “O meu é de rodinha”! (cantarolando) e Bárbara: “O

meu faz ‘baruro’”! (cantarolando também) (Diário de campo, 15/04/2011). O barulho

era motivo de satisfação e diferenciação entre os demais. Com o passar dos dias, com o

objetivo de minimizar as contendas entre as crianças, as assistentes elegiam uma criança

para sentar nas ditas cadeiras.

Logo percebi que o espaço das extremidades das mesas de dentro da sala passou

ser alvo das crianças também. Elas são servidas pelos professores e assistentes. O

alimento é misturado, primeiro para esfriá-lo e depois se for servido separadamente às

crianças, elas optam por comer um determinado alimento e não comem o restante que

está no prato. Depois que estão alimentadas, tomam água, não fazem higiene bucal e se

dirigem à sala. Lá os colchonetes já estão organizados pela assistente para o sono. Todas

as crianças que permanecem no período integral dormem com o auxílio da assistente e

às vezes da professora.

Por volta das 12h40m, as crianças do período vespertino começam a chegar. São

recepcionadas pelas assistentes no pátio do refeitório que aguardam em silêncio (na

medida do possível) as outras crianças despertarem espontaneamente e seguem em

direção à mesa no refeitório.

Quanto ao momento do sono, não participei ativamente, por perceber que as

crianças ficavam muito agitadas e nessa hora elas devem estar tranquilas para poderem

dormir. Segundo a assistente Elisa, “algumas crianças, as mais agitadas demoram mais

para dormir, mas acabam dormindo” (Diário de campo 17/03/11). Apenas observei que

ao chegarem à sala, quando a assistente ainda não estava, os colchonetes eram

transformados num palco de alegrias e acrobacias, pois as crianças pulavam, rolavam e

brincavam de virar cambalhotas. Quando avistavam a assistente diziam: “A tia vem

vindo!” Rapidamente, algumas crianças se continham, outras ignoravam sua presença e

continuavam a brincar. Podemos perceber que as crianças aproveitam as oportunidades,

nesse espaço em que a professora/assistente não estava presente na sala, para poderem

se deliciar brincando nos colchonetes, mesmo correndo o risco de serem reprimidas

pelos adultos.

Entretanto, pude colher a fala de uma criança que pode demonstrar o grau de

insatisfação em relação ao sono

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. Nesse dia as crianças fizeram a experiência de utilizar

tintas e pincéis. Preocupada com a possibilidade delas se sujarem com a tinta e não ter

uma troca de roupas, disse o seguinte:

‘Elas trouxeram roupa para dormir? Para trocar? Cuidado com a roupa

Ana Clara, se não vocês vão dormir todos lambuzados... ’. Bárbara se

aproxima e diz: ‘Oh tia... Minha mãe falou para não dormir!’. Eliana:

‘falou para você não dormir?’. Bárbara responde: ‘Não. Aqui não. ’

Eliana desafiando: ‘Oxii... Aí você vai ficar acordada?’. Bárbara:

‘Vou...’ Eliana: ‘Você gosta de dormir ou ficar acordada?’. Ela não me

responde e muda o rumo da conversa saindo em direção da assistente

Maria. Eliana insiste: ‘Heim, Bárbara?’ (Bárbara fica em silêncio).

Ana Clara, que está próxima diz: ‘Dormir’, como se estivesse

desafiando Bárbara, que rapidamente responde: ‘Acordada’. Eu tento

ir além, para colher dados com mais propriedade perguntando:

‘Humm... Você gosta de ficar acordada e na hora do sono?’. Ela não

responde pega outra cor de tinta e desconversa o assunto. Não insisti

mais. (Diário de campo, 14/07/2011).

47 A hora do sono faz parte da rotina das crianças do CEIM. Entretanto, não existe uma consideração por parte dos adultos em saber se elas querem ou não dormir.

Pode ser que a presença da assistente, naquela ocasião, inibiu a fala de Bárbara.

Leite (2008, p.124-125) nos adverte sobre a necessidade de buscar informações fora dos

locais, que “por si só é carregado de valores, regras e hierarquias que as crianças logo

decodificam, e essa percepção interfere fortemente em suas respostas. [...] mais delicado

é perceber que as crianças temem dizer coisas que depois podem voltar contra elas”.

Dessa forma, questionamos o silêncio de Bárbara em responder minha pergunta como

também a resistência de algumas crianças na hora de dormir. O que as crianças querem

dizer com isso?

A hora do sono é o divisor das atividades entre o período matutino e vespertino.

O lanche, frutas ou bolacha com chá são servidos por volta das 13h30m. As

crianças que acordam após esse horário se dirigem ao refeitório e são servidas por uma

funcionária da cozinha.

As assistentes que atendem as crianças no período vespertino não possuem uma

rotina em relação às atividades. Às vezes propõem uma atividade/brincadeira na sala,

outras vezes no pátio. Somente em relação ao banho que é seguido mais ou menos um

horário, pois até o momento de servir o jantar as crianças são banhadas. Porém, elas não

tomam banho todos os dias, principalmente se a temperatura estiver mais baixa que o

habitual, ou pela falta dos produtos higiênicos. Aquelas que permanecem somente um

período não tomam banho. Com base nessa problemática, o banho é um ato educativo

que pode assumir uma dimensão pedagógica? Como ficam as crianças que são excluídas

desse cuidado, considerando que são cuidados indissociáveis ao ato de educar? Essa

situação é reveladora de uma concepção dicotômica. Para tanto, “as instituições de

educação infantil devem buscar delinear as suas especificidades, sem perder de vista

que o trabalho a ser realizado com as crianças deve assumir um caráter de

intencionalidade e de sistematização [...]” (CERISARA, 1999, p.16).

Na hora do banho elas são encaminhadas uma a uma ao banheiro. Algumas

demonstram autonomia em ir tirando suas roupas, se esfregando e lavando os cabelos,

outras, porém, necessitam da intervenção da assistente. Um fato que me chamou

atenção de ver a satisfação das crianças ao chegarem à sala e delegarem “Fulano, vai

tomar banho”. Quando a criança não a ouvia, reforçava: “Agora é você que vai tomar

banho”. É como se eles tivessem o poder de mandar em alguém, a autonomia de fazer

alguma coisa, de se sentirem úteis.

Assim, questionei a assistente Alice quanto a esse fato. Ela me disse que eles

aguardam com ansiedade esse momento. É ela (a assistente) que diz à criança qual é a

outra que irá tomar banho. Uma ação tão simples para nós adultos, porém, me deixa

inquieta: Por que tanta satisfação em delegar alguém para o banho?

Outro ponto que me chamou a atenção diz respeito ao fato da nudez, pois

quando eu acompanhava-os no banho, percebi que eles não demonstravam vergonha

pelo fato da minha presença e, principalmente porque foi a primeira vez que eu os vi

nessa condição. Eles simplesmente iam tirando suas roupas, tocavam em suas genitálias,

tanto meninos como as meninas naturalmente. Cada criança atribuía um nome diferente

aos seus órgãos genitais. Em nenhum momento, os ouvi ou as assistentes se referindo

aos órgãos íntimos com o nome científico. Sobre a questão, Elias aponta;

O sentimento de vergonha é uma exaltação específica, uma espécie de

ansiedade que automaticamente se reproduz na pessoa em certas

ocasiões, por força do hábito. Considerado superficialmente, é um

medo de degradação social ou, em termos mais gerais, de gestos de

superioridade de outras pessoas. Mas é uma forma de desagrado ou

medo que surge caracteristicamente nas ocasiões em que a pessoa que

receia cair em uma situação de inferioridade não pode evitar esse

perigo nem por meios físicos diretos nem por qualquer forma de

ataque. Essa impotência ante a superioridade dos outros, essa total

fragilidade diante deles, não surgem diretamente da ameaça de

superioridade física que as demais realmente representem - embora,

sem dúvida, tenha suas origens numa compulsão física, na

inferioridade corporal da criança frente aos pais ou mestres. (ELIAS,

1990, p.242).

Sobre a mesma discussão, recorremos a Goudsblom, que apoiado em Elias nos

diz:

[...] as crianças nascem com a capacidade para aprender a sentir

vergonha, a expressar vergonha, bem como a infringir vergonha aos

outros. Em cada um dos três casos, elas passam por um processo de

aprendizagem no curso do qual adquirem um determinado padrão de

vergonha, elas aprendem a adaptar-se ao sistema de vergonha que

prevalece no mundo social ao qual pertencem. (Goudsblom, 2009,

p.57).

É importante ressaltar que o sentimento de vergonha nos seres humanos passa

por um processo de aprendizagem. Essas crianças estão imersas neste processo de

construção de hábitos, valores, modos de comportar-se. Com o passar dos anos, vamos

sutilmente internalizando padrões de aceitação em relação ao corpo.

Entretanto, “muitas crianças sentem prazer em amolar e envergonhar outras

crianças, se deixadas a si mesmas podem ir a extremos em arreliar e humilhar alguns de

seus amiguinhos

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[...]” (GOUDSBLOM, 2009, p.57), como podemos ver na passagem

abaixo:

Quando Mariana está chorando e Renan inicia a música e as crianças o

acompanham: ‘Chora, chora, chora. Para de chorar... Bota a mão na

cabeça e outra na cintura e dá uma risadinha’. Mariana está chorando

porque pisaram na sua mão. Entretanto, o choro passa a ser motivo de

chacota, pois numa lógica adultocêntrica ele deve ser contido, e

quando não é, demonstra a fragilidade da criança em não contê-lo. A

música cantada pelo Renan e os demais colegas expõe Mariana ao

sentimento da vergonha. Nesse momento é interceptado pela

assistente. (Diário de campo, 15/06/2011).

Logo depois do banho, as crianças aguardam, na sala ou no pátio, desenvolvendo

atividades, o horário para jantar, que também será servido pelas assistentes. Não existe

um horário teto para os pais virem buscar as crianças. A partir daí observamos a

circulação dos pais. Em seguida, aguardam seus pais na sala, geralmente eles brincam

com os brinquedos da caixa ou no pátio da frente.

O CEIM deve ser o espaço onde as experiências, as vivências das crianças

devem ser materializadas em ações que as tornem mais autônomas, favorecendo a

construção de conceitos e habilidades do conhecimento físico e social. Entretanto, as

atividades de cuidado e saúde - alimentação, higiene e sono, - consideradas educativas

se forem planejadas de forma que efetive a participação das crianças, desde servir-se do

alimento, escolher aquilo que vai comer, administrar a quantidade de alimentos no

prato, participar da higiene das mãos, do corpo, bucal, como também poder escolher

entre dormir ou não no Centro de Educação.