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Espaços e aprendizagens vivenciadas na Freguesia de São Gonçalo

Nos diversos níveis de relações sociais, existem as relações intergeracionais, que têm sua importância na interface entre grupos etários distintos e na troca estabelecida entre eles. É nas relações entre as gerações infantil e adulta que a experiência educativa da criança se constrói pela referência geracional dos adultos que a cerca, em meio às redes sociais estabelecidas. Nesse sentido, a aproximação das diferentes gerações deve levar em conta não só a cronologia, mas considerar os estilos de vida e valores das distintas gerações.

Para entender a racionalização das atitudes e a produção de expectativas sobre o lugar do futuro adulto que Firmo Rodrigues se tornaria, parece pertinente situar o referido sujeito no familiar e no ciclo de relações sociais estabelecida em sua infância.

O primeiro espaço educativo vivenciado por ele foi o da família. Quando Firmo José Rodrigues nasceu, em 1° de junho de 1871, seus pais residiam na Rua Couto Magalhães, nas proximidades da Igreja de São Gonçalo de Pedro II87. Posteriormente, mudaram-se88 para outra casa, na Rua Barão de Melgaço, cujo imóvel era composto por um quintal e dois cômodos89.

Ao que parece, a casa da Família Rodrigues era muito semelhante aos domicílios de grande parte da população da cidade. Isso porque, as construções residenciais de Cuiabá, no século XIX, em geral, eram casas térreas simples. Segundo Volpato (1993, p. 30), até as residências dos mais abastados eram casas de adobe e taipa, coberta de telha, composta de um só pavimento, composto por sala, alcova, varanda e cozinha.

Os quintais das casas térreas das duas freguesias urbanas de Cuiabá, geralmente, eram espaçosos e repletos de plantas frutíferas. De acordo com o viajante Florence (1977, p. 137),

87

Conforme relato, Firmo nasceu na rua que, então, se chamava Couto Magalhães, hoje, Avenida D. Aquino (RODRIGUES, 1959, p. 7).

88 Essa mudança, possivelmente, ocorreu na década de 1870, pois nos documentos da Família é passível de verificar uma escritura de compra e venda (datada de 20 de maio de 1873), de um prédio situo na Rua Barão de Melgaço, 2º Distrito de Cuiabá.

89 Conforme guia de recolhimento do imposto da décima predial, relativo ao ano de 1886, o imóvel da Rua Barão de Melgaço era composto por um quintal e dois pequenos cômodos.

85 os quintais da cidade eram extensos e seus os fundos iam até a outra rua. Na casa da família Rodrigues, havia uma pequena plantação de ateiras,90 a qual Firmo passava revista quase todas as manhãs (RODRIGUES, 1959, p. 7).

Firmo Rodrigues residia na Freguesia de São Gonçalo, juntamente com seus pais e irmãos: Alfredo José Rodrigues; Josephina Alves Rodrigues, que nasceu em 1877; Gonçalo José Rodrigues, em 1879; Izabel Alves Rodrigues, em 1882; Deolinda Alves Rodrigues, em 1884; Carminda Alves Rodrigues, em 1887 e Armando José Rodrigues, em 188991.

Com a morte92 do irmão mais velho, Firmo Rodrigues logo assumiu o lugar de primogênito da família, tendo atribuições de ajudar a mãe nos afazeres da casa e no cuidado com os irmãos, que tinham uma diferença de idade significativa em relação a dele93.

No espaço doméstico da família da Rodrigues, o quintal do domicílio era um lugar no qual o brincar era permitido à criança. Firmo recorda-se que, em sua infância, brincava

sozinho no quintal e “[...] muito raramente ia brincar em casa de algum vizinho”94

. Se, por um lado, a diferença entre Firmo e seus irmãos contribuiu para que os momentos de brincadeiras com os irmãos não ficassem registrados em seus relatos, por outro, a lembrança de outras crianças de sua época é marcada nas memórias do autor.

Conforme Rodrigues (1959, p. 8-9), nas imediações da casa de seus pais residia uma

família, a qual classificou de “rica”. Segundo ele, com inveja, contemplava os meninos dessa família cada vez que exibiam um brinquedo caro, enquanto ele brincava com “ossos de boi que ajuntava no quintal”, os quais eram transformados em “soldados”, pela força de seu

imaginário infantil. Afirmou, ainda, que as crianças da família abastada, que conheceu na infância, pareciam-lhe “[...] muito felizes porque podiam comprar velocípedes e outros

brinquedos de elevado custo” e também pelo fato da “[...] senhora mãe destes meninos, só

passeava em cadeirinha, conduzida por dois possantes negros, e, os meninos, carregados nos

braços das negras”. Contudo, com um tom nostálgico, declara que apesar de sua “pobreza”,

seus dias de vida lhe pareciam alegres (RODRIGUES, 1959, p. 7). Nesse relato, além do autor apresentar indícios da heterogeneidade social e econômica da Freguesia de São Gonçalo, no período de sua infância, ele se auto-referia como criança pobre.

90 Pé de fruta-do-conde.

91As datas de nascimento desses sujeitos foram estimadas com base no campo “idade” do no quadro nominativo da população de São Gonçalo de 1890.

92 O filho primogênito da família, Alfredo José Rodrigues, faleceu quando Firmo tinha aproximadamente 4 anos de idade.

93 A irmã mais velha de Firmo nasceu quanto ele estava como 6 anos de idade e demais irmãos nasceram num intervalo de 2 em 2 anos, aproximadamente.

94 Essa lembrança de brincar sozinho pode está relacionada à significativa diferença de idade entre Firmo Rodrigues e seus irmãos.

É difícil definir os conceitos de ser pobre e abastado no século XIX, uma vez que os modos de vida dos sujeitos eram próximos. No caso de Firmo, cabe ressaltar que se por um lado, o pai (mestre de serralheiro) e a mãe (costureira e dona de casa) não puderam proporcionar aos filhos regalias e brinquedos caros, uma vez que não possuíam grandes posses e escravos95. Por outro, as atividades profissionais e sociais do casal Rodrigues garantiu aos filhos, inclusive a Firmo, condições de vida que os afastaram do trabalho infantil96, oportunizando-lhes acesso a vários espaços sociais e culturais da época, inclusive, o escolar.

No que diz respeito aos espaços sociais mais amplos que Firmo Rodrigues vivenciou na infância, destacam-se as festas cívicas e religiosas da igreja católica que reunião traços da cultura sacra e dos costumes militares da época.

No século XIX, grande parte da população de Cuiabá, dentre ela a família de Firmo Rodrigues, professava o catolicismo97. Segundo Rodrigues (1959, p. 13), uma de suas diversões na infância era acompanhar o sacerdote, que saia da igreja do Porto para levar a extrema-unção aos enfermos. Para esse ato, os sinos eram tocados de um modo especial, quando:

Afluía muita gente e era um verdadeiro cortejo atrás do viático, acompanhado de um canto soturno, que dava a impressão perfeita de uma procissão fúnebre. À frente, um menino seguia, badalando uma campainha. Quando esse séqüito passava pela frente de algum quartel, de sua guarda se destacava duas praças armadas para acompanhar o viático (RODRIGUES, 1959, p. 13).

Nessa narrativa é possível notar a participação das crianças nas atividades católicas, com destaque às procissões. Muitas delas acompanhavam o cortejo na figura de fieis soldados, outras tomavam parte do ato, na figura de autoridades no ato solene.

Embora pouco brincasse com vizinhos, Firmo Rodrigues estabelecia relações sociais com outros meninos da Freguesia de São Gonçalo. Ele relata que sempre conversava com

filho do Sr. Carvalho, um português, dono de uma “venda”98

. O autor relembra que, de vez

95

Possuir escravos no século XIX representava prestígio social e melhor condição financeira. Ao que parece, a família Rodrigues não possuía escravos, uma vez que nas memórias de Firmo não há menção a escravos da família. Ademais, a descrição do domicílio da família Rodrigues, no quadro nominativo da população urbana de São Gonçalo apresenta apenas o casal e os filhos, sem a presença de qualquer agregado ou criado.

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No século XIX, era comum crianças pobres exercerem atividades profissionais, para auxílio no sustento da família.

97 Os dados obtidos pelo recenseamento de 1980, nas freguesias de São Gonçalo e Sé, em Cuiabá, indicam que uma maior incidência de católicos. Na freguesia de São Gonçalo, os católicos totalizavam 1.765 indivíduos (PERARO, 2005).

98Em Cuiabá, no mesmo período, “venda”, “taverna” ou “bulixo” eram designações atribuídas aos pequenos estabelecimentos comerciais.

87 enquanto, às 5h00 da manhã, ia ao açougue comprar carne e costumava parar na venda, onde conversava com o colega (RODRIGUES, 1959, p. 8). Possivelmente, esse colega era Cândido Joaquim de Carvalho, filho mais velho do taberneiro português Francisco José de Carvalho, identificado no quadro da população de São Gonçalo no censo de 189099.

Durante o século XIX, a maioria dos pequenos comerciantes da cidade era composta por estrangeiros. O comércio nas lojas era feito “sem ruído e sem pressa”, sendo comercializados artigos de ferro, de limpeza, manufatura, brinquedos e tudo que se relacionava com as necessidades domésticas (STEINEN, 1942).

A venda do português Carvalho, provavelmente, era bastante frequentada por adultos e crianças, uma vez que comercializava gêneros alimentícios. Firmo Rodrigues, assim como outras crianças de sua época, iam a essa venda comprar pimenta, sal, pão doce, rapadura e outros produtos de uso doméstico (RODRIGUES, 1959, p. 7-8).

A construção da relação entre riqueza e pobreza na infância, bem como seus primeiros aprendizados sobre valores monetários, são indicados pelo memorialista, por meio de um episódio vivenciado na venda do Português Carvalho:

Nessa época [meados da década de 1870], 20 reis era dinheiro; com essa importância comprava-se uma boa tora de rapadura.

Um dia, em frente à casa de minha residência, achei uma cédula de 500 reis. Pulei de contentamento e, como já soubesse escrever, gravei na nota estes

dizeres: “O Firmo está rico”.

Mas a riqueza esgotou-se no mesmo dia: comprei tudo em pão doce de 40 reis, na venda do mesmo Carvalho (RODRIGUES, 1959, p. 7-8).

Além desse evento, o comércio do lusitano fazia parte de outras recordações. No espaço venda ou em sua redondeza, o menino Firmo, possivelmente, convivia com sujeitos de vários pertencimentos étnico-sociais que frequentavam esse estabelecimento comercial. Entretanto, em suas memórias constam apenas episódios do período de sua infância que envolvia negros, tanto na condição de escravos como na condição de livres. Eram os escravos que supriam de água a população de Cuiabá, no século XIX, uma vez que não havia água encanada na Capital. Em geral, eles a extraíam do rio ou das bicas existentes na cidade para fornecer aos seus senhores ou vendê-la em barris, entregando ao seu proprietário ou patrão, o produto da venda (RODRIGUES, 1959, p. 8).

99 Ao pesquisar os quadros nominativos da população urbana de Cuiabá, em 1890, é possível encontrar apenas um português com o sobrenome “Carvalho”, no prédio nº 156, da Freguesia de São Gonçalo, sendo assim caracterizado: 56 anos, taverneiro, branco, casado, católico, português e sem defeito físico. Nesse domicílio consta, também, os dados da esposa e dos 5 filhos do casal. O primeiro filho, Francisco José de Carvalho, é assim caracterizado: 14 anos, branco, solteiro, católico, brasileiro, sabia ler e frequentava a escola.

Firmo Rodrigues relata dois episódios de sua infância que retratam as relações sociais estabelecidas com negros (livres e escravos) e não negros, entre senhores e escravos. O primeiro tem como cenário a venda do português Carvalho:

[...] habitualmente, passava um negro espadaúdo, vestido de calças e sem camisa, levando uma lata de ferro, para conduzir água do rio. Invariavelmente, ao chegar à venda, o negro entrava nela e bebia meio copo de cachaça. Ao vê-lo entornar na goela o meio copo de pinga, eu tinha a impressão de que ele estava bebendo um ótimo chocolate, tal o prazer com que estalava a língua e lambia os beiços, ao virar o último gole (RODRIGUES, 1959, p. 8).

Além desse episódio, que aponta tanto o trabalho prestado pelo negro, como também a associação infantil entre cachaça e chocolate pelo prazer provocado, Firmo também ressalta o envolvimento entre sua mãe e uma negra escrava, vendedora de jornal.

Inúmeras vezes, assistiu sua mãe, Benedicta Alves Rodrigues, “[...] dar dinheiro a uma

negra, afim de que ela completasse a importância necessária para entregar ao senhorio”. Isso

porque, diariamente, muitos escravos eram obrigados a entregar ao seu proprietário, um valor que variava de $800 a 1$200 reis, pela venda dos jornais e, caso não trouxessem o lucro do

jornal, no fim do dia, “entrava em palmatoadas” (RODRIGUES, 1959, p. 8). Nesse relato, é

possível observar que, apesar de indicar ação da mãe, o autor não deixava claro que laços sociais ou pessoais existiam entre sua mãe – mulher na condição de livre, classificada como parda – e a negra escrava, bem como não indicava que sentimentos a levaram a agir de forma solidária com a escrava.

Nessa escrita autobiográfica, o autor rememora uma prática de solidariedade em relação à escrava (narrada como sistemática), possivelmente, indicando uma recusa ou insatisfação com a escravidão, por parte da mãe. Diante do relato, é possível indagar: até que ponto, tal evento constitui registro do vivido? Ou trata de reconstrução de um passado à luz do presente que rejeitava a escravidão? Mais do que esclarecer o que foi narrado como de fato ocorreu, tal registro permite-nos refletir sobre o cuidado no uso das fontes autobiográficas.

Apesar da Freguesia de São Gonçalo ser habitada por indivíduos de diferentes pertencimentos étnico-raciais, inclusive com a presença de muitos índios da etnia Guaná, que viviam nas proximidades do Porto do rio Cuiabá e que exerciam atividades de pesca, trabalhando na venda de peixes e artesanato pelas ruas da cidade. Nos registros memorialísticos de Firmo constam episódios envolvendo apenas o segmento negro, tanto na condição de livres como na de escravo.Cabe ressaltar que, apesar dos índios serem ausentes

89 nos escritos de Firmo Rodrigues, esses sujeitos são frequentemente relatados nas memórias dos viajantes que estiveram em Mato Grosso, no século XIX.

Esta tensão entre a ausência de registros sobre a população de origem indígena nos relatos de Rodrigues e sua onipresença nos dos viajantes, remete à singularidade das fontes. Sob o olhar do estrangeiro, o texto buscava fornecer ao leitor (também estrangeiro) um retrato da diferença entre sua cultura de origem e a da sociedade observada, com a presença dos indígenas. Já no texto autobiográfico, caracteristicamente mediado pelos mecanismos de reconstrução da memória, tal presença é apagada ou considerada inadequada no registro idealizado do passado.

Cabe ressaltar que o documento memorialístico de Firmo José Rodrigues não fornece dados sobre sua identidade racial em Cuiabá por ocasião100 do Censo de 1890. Apesar disso, as informações do quadro da população urbana de São Gonçalo possibilitam pensar que Firmo

Rodrigues era classificado como “pardo”, uma vez seus pais e irmãos foram caracterizados

como pertencentes a essa categoria racial.

Embora a classificação “parda” indicasse as cores dos sujeitos, a caracterização dessa

categoria estatística, no Censo 1872, apontava que o pai fora criado por uma senhora no Rio de Janeiro, bem como os relatores sobre o contato que ele e mãe estabeleceram com negros leva a pensar que a família Rodrigues era descendente de negros livres ou libertos, ou ainda, que a condição de pobre livre levavam os membros da família a estabelecer laços de solidariedade com forros e escravos. Isso porque, a descrição do evento envolvendo a mãe de Firmo e a escrava possibilita pensar nos laços de solidariedade que aproximavam a população pobre livre e liberta na cidade. No entanto, se tomar a classificação de pardo como foi apropriado pelo censo de Cuiabá, pode-se também inferi uma ascendência indígena.

Para Volpato (1993, p. 210), o fato de Cuiabá ser uma cidade pequena, com ligação pouco profunda com o mercado externo e onde os plantéis de escravos não eram numerosos, contribuíam para que as condições materiais de vida dos sujeitos livres e escravos fossem muito próximas.

Para ampliar o entendimento da experiência de Firmo José Rodrigues na sociedade estratificada do século XIX, parece pertinente buscar mais indícios das relações sociais construídas por ele, na Freguesia da Sé, no período de sua meninice.

100 Na ocasião do Censo de 1890, Firmo Rodrigues já residia no Rio de Janeiro para continuar seu processo de escolarização e concluir o ensino superior.