• Nenhum resultado encontrado

Espaços-cidades no neorregionalismo brasileiro

4 O ESPAÇO NO NEORREGIONALISMO BRASILEIRO

4.1 Espaços-cidades no neorregionalismo brasileiro

Mais do que uma datação histórica em que as obras regionalistas se apresentam situadas dentro de um cenário rural, convergindo com os aspectos sociais da nação que, na década de 30, era predominantemente rural, as abordagens dos cenários dos escritores neorregionalistas na mesma linha de convergência têm o espaço urbano como elemento, acompanhando a estrutura espacial brasileira em que a urbanidade é hegemônica.

Exemplificamos inicialmente com o espaço do cais em Beira Rio Beira Vida, de Assis Brasil. É um lugar à margem da vida social da cidade, cuja localização demonstra: quanto mais ao centro, mais abastada e tradicional é a família e, ao contrário, quanto mais distante, mais marginalizada. Assim, as vidas de Cremilda, Luíza e Mundoca são marcadas não só pela marginalização social, mas pela inferiorização do espaço, que se situa na periferia da cidade, reduzindo-as a sujeitos ignorados pela comunidade. E quando tentam romper essa dificuldade acabam sendo coagidas a voltarem para um único espaço onde pessoas pobres têm lugar, como podemos mostrar nesta passagem da obra em que Cremilda, depois de leiloado o seu armazém para pagamento de dívidas, tenta comprar uma casa no centro da cidade de Parnaíba:

Na praça da Graça tinha um bando de chofer que ficou olhando, “errou o caminho de casa, Cremilda? “Ela me puxava pela mão, “não olhe pra trás”, ia apressada e foi direto numa casa de escada branca, toda cheia de quadro.

– Onde está o embrulho que lhe dei?

Levantou minha saia, eu fiquei na escada – o calor do sol estava ainda na minha cabeça, sentia qualquer coisa na minha barriga. Ela demorou tanto, eu olhava o sol lá no calçamento, ouvia as buzinas dos carros. Nunca me senti tão ruim, Mundoca. A demora dela, as coisas esquisitas que estavam acontecendo, o sol, o barulho da praça, aquele chão frio onde eu estava sentada – depois já não ouvia nada, a praça deserta, era como um sonho doido.

De repente ela saiu da sala: – Vamo, Luíza.

Ainda não se dirigiu pro cais, caminhamos por outras ruas. Ela estava de cara fechada, pensativa, caminhava mais ligeiro, quase me arrastando.

– Eles disseram que meu dinheiro não dá. – Pra quê?

– Pra comprar uma casa aqui na cidade. Sei que é mentira, eles não querem é me vender. Um ainda disse: “Mesmo a senhora não pode se mudar pra cidade”. Foi o que um deles disse, Luíza, e os outros acharam graça.

Tua avó, naqueles instantes, estava mais pensativa e mais velha, Mundoca. Mas insistiu, foi noutros escritórios, em todos os escritórios onde poderia comprar uma casa, e não conseguiu nada. Eu só via a cara dela, só sentia o sol na minha cabeça, o calor, já com as pernas bambas.

– Mãe, estou com sede. – Vamos só mais ali.

E assim corremos toda a cidade – bem entendido – toda a cidade onde já tem calçamento, porque o resto não é cidade pra ninguém (2008, p. 40-41).

Como fica evidente nesse trecho da obra, o espaço urbano não permite a inserção de novos sujeitos de maneira mais apaziguadora, tanto quanto a zona rural. Há as divisões, os locais em que cada segmento social deve habitar, não cabendo ao diferente a liberdade de espaço. Mesmo em condições financeiras favoráveis, Cremilda não conseguiu inserir-se no espaço central da cidade a ela negada. Deveria restringir-se ao que lhe cabia à margem, distante e esquecida por todos.

Também o espaço urbano que caracteriza alguns dos elementos de composição do neorregionalismo brasileiro incide nos aspectos internos de uma casa. Conforme diz Bachelard (1993, p. 26), “a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos”. Acrescentando às ideias de Bachelard, podemos dizer que a casa não só abriga como também configura e reflete os seres que nela habitam, como se pode perceber na obra Pacamão,

de Assis Brasil (2008, p. 360), em que o símbolo máximo da família residia na casa, denominada de Palacete:

O grande prazer de dona Zuleica era conservar os azulejos da frente do Palacete, a única casa de Parnaíba enfeitada assim. Às vezes dizia, quando alguém sugeria tirar os azulejos para dar uma pintura em toda a fachada, “esta é a única casa aristocrática de Parnaíba, não me desfaço não dos meus azulejos”.

Talvez se lembrasse dos primeiros tempos, a casa toda iluminada, o marido com duas fazendas produzindo cera de carnaúba para os navios estrangeiros levarem [...].

Em outros momentos da abordagem, dentro da ideia do espaço urbano como um dos elementos de composição das obras neorregionalistas, temos também nas cidades a questão do imigrante. O sentimento de chegada do sujeito que sai de uma determinada região e passa a habitar outro local marca bem a transição do espaço rural das obras regionalistas para o espaço urbano dentro do Neorregionalismo. Podemos atestar isso em obras como as de Francisco Dantas, especialmente em Coivara da Memória.

O enredo da obra paira sobre as reminiscências e angústias do narrador-personagem, que espera o seu julgamento pela provável morte de Tucão, um dos sujeitos que exercia forte poder político na região. As suas reminiscências remontam desde sua infância no engenho Murituba até a sua vida adulta enquanto escrivão na cidade Rio-das-Paridas. No engenho, o narrador-personagem tinha na figura do seu avô materno não só a representação do pai, mas toda a proteção e dedicação para com ele. E isso causava inquietações entre todos da família, que se sentiam inseguros diante de tanto amor pelo neto, fruto muito mais de uma decepção da família. Mas o que estava em jogo não era a questão de afeto e sim de herança. Isto se comprova no episódio da morte do avô, quando o narrador-personagem é enviado para um colégio interno. Depois ressurge não mais habitando o engenho, mas como escrivão, assim como seu pai, na cidade próxima, Rio- das-Paridas. No entanto, as lembranças do engenho ficaram cravadas no seu ser, simbolizando suas incertezas e angústias:

[...] a velha paineira do Engenho Murituba, onde buscava conforto contra as estrias de angústia que me rebentavam. Esfregando o corpo no cheiro dessa paisagem, ainda hoje fecundava a vozes e apelos que vêm se desenrolando de muito longe, eu me embrulhava em tiras de lembranças [...]

É corrido pelo desejo adoidado de passar a limpo o borrão de toda a infância que volto agora ao pé desta paineira onde tenho enterrado o umbigo e o primeiro dente de leite. Chego para escutar esta velha barriguda em cujos galhos me dependurava de cabeça para baixo, a camisa caindo pela cara para me ver cegar os olhos, e as pernas entrançadas lá em cima (DANTAS, 2001, p. 19-20).

Interessante é, em relação aos espaços, que o narrador converge com o pensamento de Bachelard, que afirma: “As verdadeiras casas da lembrança, as casas aonde os nossos sonhos nos conduzem, as casas ricas de um fiel onirismo, rejeitam qualquer descrição” (1993, p. 32). Neste sentido, o narrador utiliza a memória como evasão de sobrevivência para as angústias da espera do julgamento e também da superação do trabalho burocrático. É nesse trabalho de reconstrução da sua vida no engenho que ele começa a ter melhor compreensão de si e dos seus laços familiares. Começa a entender o que de fato aconteceu ao longo da vida dele, do pai e da mãe e as possíveis explicações para tamanha devoção do avô para com ele. Percebemos, então, que as lembranças constituem nosso habitat, nosso referencial; e a construção pelo fio da memória dos espaços não se pauta em apenas situacionalizar os sujeitos no sentido de oferecer apenas um espaço geográfico para a narrativa, mas sim em entender as influências exercidas por cada lugar em determinado tempo.

São esses mesmos espaços-lembranças que vemos em outras obras neorregionalistas, a exemplo de Dois Irmãos, de Milton Hatoum (2006, p. 32), quando o narrador menciona a lembrança do padre Bolislau conversando com Yaqub, um dos gêmeos:

Yaqub vinha ruminado a mudança para São Paulo. Foi o que padre Bolislau quem o aconselhou a partir. “Vá embora de Manaus”, disse o professor de matemática. “Se ficares aqui, serás derrotado pela província e devorado pelo teu irmão”.

Observamos, nessa passagem, o quanto os espaços-cidades, espaços- casas, espaços-lugares, espaços-lembranças são compositivos no

desenvolvimento dos personagens, exercendo sobre eles fortes diálogos invisíveis, mas que os orientam e os conduzem nas trajetórias.

4.2 O espaço e o lugar como elementos de transição no neorregionalismo