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Por outro lado, curiosamente, não acidentalmente, mas quase que ironicamente, vemos no Candomblé uma constituição familiar, matrilinear, chamar-se por Nações. Para falar em território, por compromisso geográfico com Milton Santos, imergimos na concepção de acumulação desigual de espaçotempos na paisagem, o descontínuo presente no jogo de forças sociopolíticoeconômicas que forjam a ocupação e a valoração dos terrenos. A terra possui sua parcela física e sua quirela social.

No contexto das diásporas forçadas às terra de Pindorama, nos encontramos em um contexto de colonização, de interesses internacionais e centros de decisões externos impositivos à autonomia das comunidades que reexistem em outras lógicas

consideradas adversas e marginalizadas.

A aliança entre a aristocracia colonial e a burguesia reinstaurativa do pacto de sujeição no final do período imperial português conciliou a lei de terras (transferência de título aos colonos/coronéis) em contrapartida da abolição (formação de massa

consumidora).

Sem qualquer perspectiva de reparação, a população até então escravizada passa a ser um desconforto, constituíndo-se como negra mestiça (filhos da exploração de colonos sobre a mulher escravizada).

“Em 1681, um administrador de São Domingos assinalou que 4 mil brancos, contra 400 brancas, viviam nesta colônia. (…) o que deixava os rapazes na desordem por concubinagem pública com as negras e mulatas. (…) Do direito de dominação do branco decorria um sistema de castas que interditava os casamentos mistos. Por isso, no contexto colonial a mestiçagem é também vista como uma nova categoria ameaçadora do sistema maniqueísta branco/negro (…).”109

O fim do sistema escravagista, em 1888, coloca aos pensadores brasileiros uma questão até então não crucial: a construção de uma nação e de uma identidade nacional. Ora, esta se configura problemática, tendo em vista a nova categoria de cidadãos: os ex-escravizados negros. Como transformá-los em elementos constituintes

da nacionalidade e da identidade brasileira quando a estrutura mental herdada do passado, que os considerava apenas como coisas e força animal de trabalho, ainda não mudou? Toda a preocupação da elite, apoiada nas teorias racistas da época, diz

respeito à influência negativa que poderia resultar da herança inferior do negro nesse processo de formação da identidade étnica brasileira.

Procuravam, salvo algumas exceções, favorecer a mestiçagem como mecanismo de progressivamente estabelecer a predominância biológica e cultural branca e o desaparecimento dos elementos não brancos.110

Ao considerarmos as formas inspiradas pelas matrizes africanas de ser e estar em comunidade, encontramos a noção de Ubuntu, chamado assim em África do Sul, de origem do povo zulu, é conhecido por outras expressões linguísticas e vividas por outros povos em todo o continente. Uma expressão vivida de uma filosofia coletiva ética entre os povos sul-africanos há séculos.

O que Nelson Mandela Madiba afirma ser um sistema de valores praticados como ideologia, Ubuntu é atribuída à filosofa Lia Diskin, mas que, no entanto, contém um grande ensinamento para que nós ocidentais, inseridos no mundo do consumismo e da competição, reflitamos a respeito. Define o humano, enquanto ser, conforme sua interação com outras pessoas, propondo assim uma irmandade comunalógica. Premeado com o Prêmio Nobel da Paz (…) o pastor Desmond Tutu, uma das figuras mais importantes na luta contra o Apartheid ao lado de Nelson Mandela, em seu livro No Future Without Forgiveness111 (Não há futuro sem perdão), diz: "Ubuntu é muito difícil de traduzir para uma língua ocidental... Quer dizer: ‘Minha humanidade está presa, está indissoluvelmente ligada, no que é seu."

Compõem um sistema de crenças, uma epistemologia, uma ética coletiva e uma filosofia humanista espiritual do sul da África, em suma, “uma forma ética de conhecer e de ser em comunidade”.112

Em uma entrevista para Revista IHU Online, Dalene Swanson afirma que Ubuntu, é

110 MUNANGA, 2006: 54-6. 111 DOUBLEDAY, 1999.

112 Conforme a opinião de Dalene Swanson, nascida na África do Sul e hoje residente no Canadá, professora

adjunta da University of British Columbia, em Vancouver, e de Alberta, em Edmonton, ambas no Canadá. http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?

uma “alternativa ecopolítica” à globalização econômica neoliberal, em uma espécie de comunitarismo ancestral.

Apresenta-se como “uma das normas culturais mais poderosas e universais que vinculam as pessoas em todo o continente e transcende línguas, tribos e locais como uma ética humana coletiva.” Entende o conceito, nascido na filosofia em que a força da comunidade vem do apoio comunitário e de que a dignidade e a identidade são alcançadas por meio do mutualismo, da empatia, da generosidade e do compromisso comunitário. O ditame “é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança” é o emblema de maior sentido do espírito e a intenção de Ubuntu. Dalene analisa a estrutura colonial-capitalista como ameaça a esse modo de ser africano tradicional –

“embora, em alguns casos, ele ironicamente o fortaleceu ao galvanizar o apoio coletivo e ao criar solidariedade entre os oprimidos –, da mesma forma a industrialização, a urbanização e a globalização crescentes ameaçam fazer o mesmo”113.

Imagem de mulheres compartilhando a mesma cumbuca114, rituais de recriação dos significados

ancestrais.

113 SWANSON, 2007.

114 Do quimbundo kumbi, corresponde ao umbundo ebumbi, sol. Símbolo de lume, fogo. Também significa

A Nação chamada Angola, predomina a cultura herdada da matriz linguística Bantu, marcadamente do quimbundo e quicongo. Que ao terem sido trazidos para o Brasil no início do tráfico colonial, cultuavam os ancestres conhecidos por Inquices, foram os que mais aproximaram dos cultos ameríndios e fundindo-se em uma amalgama de irmandade e comunidade envolvida, relacionada e incorporada pelos elementos da Mãe Terra, Pacha Mama, Aruanda, deram origem aos primeiros caboclo(a)s,

encantado(a)s, mestres, da Jurema à Umbanda, da cabana, do terreiro, do barracão ao quintal da roça ou a sala da casa. Esta matriz é hoje a maior influente das religiões e cultos, ritos religiosos realizados nas famílias afro-ameríndias.

A Nação chamada Nàgó/Nagô é constituída marcadamente pelo tronco linguístico Yoruba. Estes foram trazidos mais destacavelmente em um segundo momento quando o Porto do Novo, no Benin passa a ser o maior exportador povos escravizados das colônias. Dali vieram também outras etnias de diferentes troncos familiares como os Haussas (muçulmanos) e os Ewe, de língua Fon. Estes últimos, do Daomé, na região do rio Níger, já próximo ao litoral, eram chamados de jeje pelos yorubá, que por sua vez eram chamados de nago pelos de língua fon...

Na verdade, pela variabilidade do que é chamado Nagô também é uma generalização. Por exemplo, Candomblé de Keto, o Xangô de Recife, conhecidas civilizações

yorubanas; os caboclos feitos nos preceitos ensinados pelos Orixás. Os Jeje (jeje-mahi, jeje-mina, jeje-nago), de língua Fon, são de origem Ewe, do Daomé. Domínios de povos ligados à terra em seu mais amplo sentido, os Voduns, são ancestres de Terra seca, molhada, fecundada, precisamente rica. O povo do Daomé guarda grandes segredos em seu culto, são misteriosos por etnicidade, já os da nação de ketu são conhecidos por serem mais extrovertidos.

Os ancestrais coletivos afroameríndios são manifestações de uma Força Vital, se referem à uma pertinência comum, de um tronco familiar, se destacaram por seu trabalho junto à frente das comunidades nas quais estão vinculados e não

necessariamente originárias de lógica da família estendida115. Nações integradas

interligadas por situações-limite simultâneas, laços de colaboração – caboclagem,

115 Utilizamos Kátia Mattoso para nos referir à condição de família agregadora por laços co-sanguíneos,

malungagem – do Candomblé, os Inkices, Orixás e Voduns, ancetrais primordiais da natureza e antepassados estruturantes da moral e da ética negra das diásporas africanas; e de Encantado(a)s, Mestres, Caboclo(a)s, Legbaras, Preto(a)s Véio(a)s, Ybejis, intermediários espaço-temporalmente entre nós, os seres vivos, e os Orixás. Estes componentes irmanam na complexidade do culto à Ancestralidade africana, ameríndia e, não deixando de mencionar a existência também da linhagem moura- mediterrânea (como as falanges de ciganos, as linhas arábicas e as do oriente).

Na lógica guarani, a noção de que a terra é de todas as pessoas, parentes, e ao mesmo tempo não pertence a ninguém. Sociedades descentralizadas e retirantes (em busca da Terra Sem Males). Um aldeiamento, tekohá, é composto pelo núcleo de moradia e os caminhos que levam à aldeia; uma opy (casa de rezas); e os caminhos que ligam a outros aldeamentos. Assim, seu espaçotempo reúne o campo da pessoa (pessoal), o campo das moradias (grupo familiar), o campo espiritual (plano de orações e contato com ancestralidade) e os caminhos adjacentes que delineiam os elos étnicos à grupos societários que se encontram periodicamente em ritos sazonais relacionados à mitos de criação e ciclos da natureza. Um Ñande Rekó – preservar o modo de vida

ancestral.116

116 Como nos propõe FERREIRA-SANTOS em suas regências do curso “Educação e Cultura Afro-