• Nenhum resultado encontrado

6. COMPLIANCE E SUA POSSÍVEL RELAÇÃO COM A CULPABILIDADE

6.5 Espanha

A Lei Orgânica 5/2010, que alterou o Código Penal espanhol, previu expressamente, a responsabilidade penal da pessoa jurídica, em seu artigo 31 bis. Optou a regulação pelo princípio da excepcionalidade, no sentido de que a responsabilidade penal desses entes coletivos só poderá se dar em relação a um determinado catálogo de delitos587.

584

Id. Ibid., p. 152-153.

585Id. Ibid., p. 153. 586Id. Ibid., p. 150.

587Observa DÍEZ RIPOLLÉS que nesse catálogo de delitos predominam aqueles relacionados a bens jurídicos

sócio-econômicos, bem como à delinquência organizada, apesar da inclusão de outros crimes de caráter patrimonial ou assemelhados. Ressalta, contudo, que para os demais delitos, não previstos neste específico rol, é possível a aplicação de consequências acessórias, consoante o artigo 129 do Código Penal Espanhol, devendo-se observar, contudo, que, com a reforma de 2010, tais consequências só poderão ser aplicadas a

Pode-se dizer que o artigo 31 bis 1 traz duas modalidades de responsabilização da pessoa jurídica. Em primeiro lugar, há a previsão de que tais entes serão penalmente responsáveis pelos delitos cometidos por seus representantes legais ou administradores de fato ou de direito, exigindo-se que tais delitos tenham sido praticados em nome ou por conta da pessoa jurídica, e em seu proveito. De outro lado, o mesmo articulado prevê, em seu segundo parágrafo, que tais entes também serão penalmente responsáveis pelos delitos cometidos, no exercício de atividades sociais e por conta e em proveito destas pessoas jurídicas, por aqueles que, estando submetidos à autoridade das pessoas físicas mencionadas no parágrafo anterior (ou seja, representantes legais e administradores), puderam realizar conduta criminosa por não ter havido o exercício, sobre eles, do devido controle.

Consigne-se, desde logo, que o aludido artigo é fonte de inúmeras divergências interpretativas na doutrina espanhola, o que já se inicia pela própria definição do modelo de responsabilidade penal adotado588. Para alguns autores, o legislador da reforma de 2010 optou por implantar um modelo de transferência de responsabilidade ou vicarial, na medida em que há a imputação, para a pessoa jurídica, de fato injusto praticado por seus administradores, representantes ou empregados589. Ainda que haja outras exigências conjuntas para a verificação dessa responsabilização, como o fato da ação ter sido realizada em nome ou por conta da pessoa jurídica e em seu proveito, certo é que essa responsabilização dependeria da verificação do injusto na pessoa física, ainda que não se exija a identificação desta (consoante dispõe o artigo 31 bis 2 do Código Penal espanhol590). Teria havido a admissão legal, então, de uma responsabilidade penal da pessoa jurídica por fato injusto alheio591.

entes sem personalidade, o que gera certa disfuncionalidade. Critica o autor, ademias, a escassa previsão, nesse rol, de modalidades delitivas de comissão imprudente, o que demonstra nítido contraste com a realidade criminológica. DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. La responsabilidad penal de las personas jurídicas. Regulación española. InDret, n.1, p. 13-14, jan. 2012.

588

Como afirma DEL ROSAL BLASCO: “Efectivamente, no parece que los autores se logren poner de acuerdo sobre cuál es, exatamente, de los modelos que antes hemos expuesto, el elegido por el legislador de la Reforma de 2010.” DEL ROSAL BLASCO, Bernardo. Responsabilidad penal de empresas y códigos de buena conducta corporativa. Diario La Ley, ano XXXI, n. 7670, Sección Doctrina, p. 6, 11 jul. 2011. Disponível em: <http://www.laley.com.br>. Acesso em: 06 jun. 2013.

589Nesse sentido: DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. La responsabilidad penal..., p. 14. ZUÑIGA RODRÍGUEZ,

Laura. Responsabilidad penal de las personas jurídicas y criminalidade organizada. Consideraciones de urgência sobre la reforma al CP de 2010. In: MUÑOZ CONDE, Francisco. et al. (dir.). Un derecho penal comprometido. Valencia: Tirant lo blanch, 2011, p. 1171-1172.

590Segundo o referido articulado: “La responsabilidade penal de las personas jurídicas será exigible siempre

que se constate la comisión de un delito que haya tenido que cometerse por quien ostente los cargos o funciones aludidas en el apartado anterior, aun cuando la concreta persona física responsable no haya

Há, contudo, relevante setor da doutrina que vislumbra nessa previsão legal a introdução de um modelo de autorresponsabilidade da pessoa jurídica592. Reconhece-se a imputação de injusto culpável próprio da pessoa jurídica, apoiado na ideia de “defeito de organização”. Para tal conclusão, fala-se que a exigência do “devido controle”, contida expressamente no segundo parágrafo do artigo 31 bis 1, apesar de relacionada à prática delitiva pelos empregados da pessoa jurídica, deve ser projetado como requisito também no primeiro parágrafo, ou seja, para a atuação dos administradores e representantes da sociedade593. Afirma-se tal extensão sob o argumento de que a observância de princípios constitucionais e jurídico-penais, como a exclusão da responsabilidade por fato alheio, imputação subjetiva e culpabilidade, impediriam orientação diversa594.

Reafirmam tal modelo, ademais, com base no fato do legislador ter previsto a responsabilidade da pessoa jurídica de forma independente da identificação da pessoa física, consoante o já mencionado artigo 31 bis 2.

sido individualizada o no haya sido posible dirigir el procedimento contra ella.[...]” (grifo nosso).

591

É oportuno consignar, no entanto, que tal interpretação não implica no necessário reconhecimento de uma culpabilidade e punibilidade transferidas da pessoa física para a jurídica. Neste sentido, aliás, DÍEZ RIPOLLÉS, reconhecendo o modelo como de responsabilidade transferida, assevera que a culpabilidade e a punibilidade são próprias da pessoa jurídica. Deixa claro, no entanto, que a culpabilidade é imputada estritamente a partir do fato injusto transferido à pessoa jurídica, consistindo, portanto, num juízo desvalorativo de caráter geral, reprovando a sociedade pelo comportamento antojurídico praticado em seu bojo, sem que haja a possibilidade de matização ou exclusão dessa reprovação. Diante de tal constatação, vislumbra em tal culpabilidade certa semelhança como o conceito de culpabilidade próprio da concepção normativa pura de WELZEL, uma vez que a pessoa jurídica, como criação do direito, seria exigível uma estrutura e atividade confome ao direito. DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. La responsabilidad penal..., p. 16. Este raciocínio parece confirmar a hipótese anteriormente aventada no presente trabalho (capítulo quarto, item 4.3) de que os modelos de responsabilidade, entendidos como modelos de imputação, não estão necessariamente relacionados a um modelo de culpabilidade (transferida ou própria).

592

Cf. ZULGADÍA ESPINAR, José Miguel. Societas delinquere potest. Análisis de la reforma operada en el Código Penal español por la LP 5/2010, de 22 de junio. La Ley Penal: Revista de Derecho Penal, Procesal y Penitenciario, n. 76, p. 2, nov. 2010.

593

Neste sentido, ROSO CAÑADILA, apesar de reconhecer duas fontes de imputação na responsabilidade penal da pessoa jurídica contida no CP espanhol, quais sejam, o proveito (relacionado ao primeiro parágrafo do artigo 31 bis 1) e a falta de controle (relacionado ao segundo parágrafo), chega a conclusão de que “el requisito indispensable en amabas fuentes es la falta de una organización eficiente y adecuada en el seno de la persona jurídica que evite gestiones dolosas o imprudentes por parte de su equipo directivo. Se impone la era del control eficiente como barrera de contención de los riesgos delictivos.”. ROSO CAÑADILLAS, Raquel. Las fuentes de imputación de la responsabilidad penal corporativa. La Ley Penal: Revista de Derecho Penal, procesal y penitenciário, n. 81, p. 57-59, abr. 2011.

594

Id. Ibid., p. 18. Esta é a interpretação adotada por ORTIZ DE URBINA GIMENO: “Así pues, pareciera que, paraa el caso de los sujetos individuales con poder de dirección, el legislador habría optado por el modelo de la imputación directa. Sin embargo, y como se explico en el apartado anteriroo, este modelo no es aceptable, dado que no garantiza en todos los casos el respeto del principio de responsabilidad subjetiva. Así pues, no queda otra alternativa que entender que, a pesar de que no se haga una referencia expresa a tal circunstancia, el artículo ha de ser interpretado conforme a la Constituición en el sentido de requerir la infracción del deber de cuidado por parte de la empresa.”. ORTIZ DE URBINA GIMENO, Iñigo. Responsabilidad penal..., p. 123.

Agora, o que nos importa mais especialmente, ou seja, em relação à eventual previsão dos efeitos dos programas de compliance nessa responsabilidade penal da pessoa jurídica, deve-se dizer que nesse campo também não há consenso doutrinário. Note-se, em primeiro lugar, que o artigo 31 bis 4 prevê, indubitavelmente, uma circunstância atenuante da pena relacionada ao estabelecimento de medidas eficazes para prevenir e descobrir os delitos que no futuro possam ser cometidos com os meios ou no bojo da pessoa jurídica. Essa atenuante tem, contudo, uma caracterísitica temporal muito específica, pois a implementação dessas medidas deve se dar após a prática de um delito na empresa e antes do começo do “juízo oral”.

Pelas características das medidas, tal como descritas no articulado em análise, não se pode deixar de reconhecê-las como englobadas pelo conceito de programa de

compliance. Contudo, foram limitadas ao caráter reativo em face de um comportamento

delitivo prévio, identificando-se, portanto, com uma função “preventiva a posteriore”, por assim dizer, no sentido de que (a despeito da contradição dos termos) a prevenção objetiva a não reiteração de uma prática criminosa já verificada.

Não haveria, portanto, na legislação espanhola, o reconhecimento dos programas de compliance como causas de exoneração ou isenção da responsabilidade penal595? Nesse aspecto é que as divergências doutrinárias saltam aos olhos. Há uma significativa corrente interpretativa que sustenta que o “devido controle”, cuja ausência é exigida no artigo 31 bis 1, segunda parte, do Código Penal espanhol, como requisito para a verificação da responsabilidade penal da pessoa jurídica (aqui sem adentrarmos na discussão sobre ser esse requisito exigível nos dois critérios de imputação previstos no aludido articulado), teria seu conteúdo preenchido pelos programas de compliance. Desse modo, o exercício do devido controle se verificaria com a existência de uma estrutura organizativa capaz de desenvolver a atividade empresarial em conformidade com as exigências legais, além de requerer a prévia identificação de riscos596.

595

Usa-se, aqui, termos gerais como exoneração ou isenção, porque é variada a interpretação que se pode dar sobre os efeitos da adoção de programas de compliance efetivos sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, dada a inexistência de expressa pevisão legal. Assim, pode ser vista como causa de atipicidade, pela própria inexistência de configuração do tipo subjetivo, já que a empresa não infringe seu dever de cuidado; como também pode ser interpretada como eximente de responsabilidade. Sobre isso, ver: Id, Ibid., p. 130.

596Cf. BACHMAIER WINTER, Lorena. Responsabilidad penal de las personas jurídicas: definición y

elementos de un programa de compliance. Diario La Ley, n. 7398, Sección Tribuna, p. 1, 5 oct. 2012. Disponível em: <http://www.diariolaley.laley.es>. Acesso em: 05 jun. 2013.

Para se alcançar um contorno mínimo desses programas de compliance, ante a inexistência de definição legal, os autores têm recorrido às experiências legais estrangeiras (em especial, ao modelo das Sentencing Guidelines, além da UK Bribery Act de 2010 e das leis italiana e chilena sobre o tema), como também a algumas legislações internas setoriais espanholas597, para tentar traçar um conteúdo essencial desses programas.

O que importa, portanto, é que, a despeito da inexistência de expressa previsão legal, existe na doutrina espanhola a intepretação de que a adoção de programas de

compliance pode fazer com que a pessoa jurídica não seja responsabilizada pela

comentimento de um delito em seu bojo, demonstrando, assim, a busca por relacionar o devido controle com a ideia de uma estrutura organizativa eficiente para a prevenção e detecção de delitos, voltando-se ao objetivo de fomentar uma autorregulação empresarial598. O reconhecimento da circunstância atenuante inscrita no artigo 31 bis 4 remanesceria para os casos em que as empresas não possuem planos de redução de riscos antes da prática delitiva e depois de tal ocorrência vieram a adotá-los, e não para aquelas que os incorporaram de forma prévia599.

Não se pode olvidar, é bem verdade, de interpretação diversa, no sentido de que o “devido controle” seria uma exigência não voltada à empresa, mas aos administradores, de forma que, como exigência pessoal, não se satisfaria com a adoção de programas de compliance600. Nesse contexto, seria inviável interpretar a implementação de

tais programas antes da prática delitiva como forma de isentar a pessoa jurídica de responsabilidade.

Deve-se observar, contudo, que há Projeto de Lei de reforma do Código Penal espanhol que, dentre diversos aspectos de modificação, pretende alterar o artigo 31 bis, ou

597

Como a Lei 10/2010, que trata da prevenção da lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo; o Código Unificado de Bom Governo de Sociedades por Cotas; além da Lei 24/1998, do Mercado de Valores. Sobre isso, ver: VELÁZQUEZ VIOQUE, David. Responsabilidad penal de las empresas. ¿Cómo probar el debido control? Diario La Ley, n. 7794, Sección Tribuna, p. 2, 9 fev. 2012. Disponível em: <http://www.diariolaley.laley.es>. Acesso em: 06 jun. 2013.

598Sobre isso, ver: BACHMAIER WINTER, Lorena. Responsabilidad penal..., p. 2. ORTIZ DE URBINA

GIMENO, Iñigo. Responsabilidad penal..., p. 126-131. VELÁZQUEZ VIOQUE, David. Responsabilidad penal..., p. 1.

599

Cf. ORTIZ DE URBINA GIMENO, Iñigo. Responsabilidad penal...,p. 129-130.

600Assim afirma DEL ROSAL BLASCO: “Ni siquiera en el caso del supuesto de la falta de debido control de los

administradores o de los representantes legales sobre los empleados, que ha permitido la comisión de delitos por parte de éstos, determinado la responsabilidad de la persona jurídica (art. 31 bis, núm 1, segundo párrafo) hay base legal suficiente para poder decir que esse debido control se satisface teniendo estabelecidos en la empresa códigos de buena conducta corporativa o compliance programs, porque el debido control es una exigência persona a los administradores o a los representantes legales, no a la organización como tal.”. DEL ROSAL BLASCO, Bernardo. Responsabilidad penal..., p. 9.

seja, a regulação existente em relação à responsabilidade penal da pessoa jurídica601. Nesse sentido, mantendo a previsão de duas modalidades de responsabilização (com apenas algumas modificações redacionais), o aludido projeto inova ao prever expressamente a adoção de programas de compliance como causa de isenção de responsabilidade da pessoa jurídica, a ser aplicada em ambos os casos, ou seja, tanto para os delitos cometidos por pessoas ocupantes de posição hierárquica superior na empresa, como para os subordinados. Para tanto, descreve com certo detalhamento os requisitos mínimos dos modelos de organização e gestão, modelos esses que devem ser adotados e executados com eficácia antes da prática delitiva; incluir medida de vigilância e controle voltadas para a prevenção delitiv;, além do que devem ser supervisionados por um órgão da pessoa jurídica.

Interessante observar, ademais, que nos casos em que os requisitos de tais modelos não puderem ser verificados em sua integralidade, ou seja, em que houver uma acreditação parcial dos programas de compliance, estes podem ser valorados como circunstância atenuante da pena602.

Diante desse projeto, é possível observar uma tendência ao reconhecimento da adoção de programas de compliance como causa de isenção da responsabilidade penal da pessoa jurídica, concedendo, ao que parece, maior incentivo à autorregulação.