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2.2 O Teatro Documental

2.2.2 Especialistas do Cotidiano: Ator-em-documento

Esta seção contém comentários a respeito da espécie de não-ator que geralmente participa dos processos criativos do grupo Rimini Protokoll. Eles são chamados pelo próprio grupo de “Especialistas do Cotidiano”, ou simplesmente “Especialistas”. Este estudo também o chama de Ator-em-documento, para destacar aquilo que ele representa em cena, como sendo o próprio vetor da história contada, abordada (em relação ao passado ou de maneira indireta) ou até mesmo construída em cena. Neste caso, o não- ator seria ao mesmo tempo agente e registro da história, e é isto que o termo Ator-em- documento procura ressaltar. A atenção a este aspecto pode levar qualquer ator a uma melhor compreensão daquilo que ele representa quando participa de um processo criativo que contém elementos de Teatro Documental, possibilitando assim que a sua participação ocorra com maior desenvoltura. Ao longo deste estudo o não-ator com o qual o grupo trabalha será chamado ou de especialista ou de Ator-em-documento, dependendo da característica que se deseja ressaltar (especialidade ou representatividade).

O termo “Especialistas do Cotidiano”, como inclusive já vimos ao longo das seções anteriores, tem a ver com o fato de que os não-atores que trabalham com o grupo Rimini Protokoll serem escolhidos porque, a despeito de não serem atores profissionais, são especialistas nas suas experiências e nas suas atividades em relação ao contexto que o grupo pretende trabalhar em cena. É um conceito criado para ressaltar as características do não-ator que chamaram a atenção dos diretores para que fizessem parte do processo de criação, ao invés de ressaltar o amadorismo em relação à profissão de ator. Ou seja, é um termo que carrega em si o conceito de valorizar as potencialidades, fazendo com que, consequentemente, o próprio espetáculo e o próprio método de criação do grupo Rimini Protokoll sejam valorizados e se tornem objetos de atração por parte de diferentes agentes do contexto artístico, sejam eles acadêmicos, profissionais das artes do espetáculo ou público.

Esta categoria de não-ator apresenta as mesmas três características básicas que o Spect-ator também possui: não é um ator profissional, possui pouca ou nenhuma

experiência no ato de interpretar e é um agente importante do contexto sob o qual a criação teatral se debruça. A diferença está em como o “especialista” integra o processo de criação e realiza seu papel de protagonismo em cena.

Uma vez que o especialista é reconhecido como símbolo de um determinado contexto, o próximo passo para que o grupo o convide para integrar o processo de criação é a consideração do seu aspecto físico. Há um grande interesse pela visualística em cena, portanto, o tipo físico do não-ator é um aspecto que pode oferecer (ou não) diferentes recursos para a dinâmica do espetáculo, de forma que este é o aspecto que atrai a atenção inicial do grupo. No espetáculo Outdoors, por exemplo, havia dentre os treze não-atores uma pessoa que tinha dificuldades de locomoção e que se deslocava em cadeira de rodas. Ou seja, o que a princípio pode ser uma limitante, muitas vezes é entendido pelo grupo de maneira oposta. O grupo, além de estabelecer um ritmo diferente para ela durante o espetáculo, explorou seu ângulo de visão diferenciado dos outros não-atores e sua relação com a cidade de Aberystwyth enquanto alguém que necessita de uma estrutura especial para se locomover. Ou seja, para o grupo Rimini Protokoll, qualquer particularidade física pode ser trabalhada para que a composição cênica seja influenciada por diferentes ritmos, ângulos e pontos de vista.

Além do tipo físico, particularidades referentes à profissão, ao cotidiano ou aos hobbies do não-ator podem ser atrativos para o grupo. O Ator-em-documento, uma vez que está apresentando um contexto do qual ele próprio é uma representação no momento presente, geralmente executa em cena aquilo que faz em seu trabalho ou em outros momentos da sua vida. Por isto certas atividades pessoais podem ser reproduzidas em cena, assim como qualquer ação e comportamento rotineiro pode ser trabalhado pelo grupo e ser devidamente contextualizado, por mais que a princípio não apresentem consonância com o discurso geral que está sendo criado.

Apesar de muitas vezes o grupo se interessar por particularidades diversas do não-ator, outras vezes os criadores não possuem nenhum filtro específico e simplesmente escolhem os que primeiro aparecem pelo fato de terem alguma afinidade com o tema a ser trabalhado. Neste caso, não há critérios físicos ou alguma particularidade especial em relação ao contexto que os não-atores devam possuir para fazer parte do espetáculo. Eles simplesmente participam mediante qualquer afinidade, espontânea ou consciente - neste caso, a partir do contato prévio com as ideias que serão trabalhadas em cena e a posterior concordância. O já mencionado espetáculo 100%

participa da ação a partir da sua afinidade com qualquer categoria estatística mencionada em palco, os diretores não fazem nenhuma seleção prévia baseada em critérios específicos que o participante deva possuir. Qualquer um que estiver no momento e fizer parte da categoria estatística em questão pode participar do espetáculo e, devido a isso, cada espetáculo possui diferentes participantes.

Vê-se, portanto, que a escolha dos especialistas ora se dá pelo fato de apresentarem características específicas, ora por simplesmente sentirem afinidade com o tema para que concordem em participar. Mas no fundo, para o grupo, o mais importante é que o não-ator seja capaz de contar a sua própria história em cena. Uma vez que esteja dentro do processo teatral, ele deve simplesmente deixar fluir a história que reside nele, seja através da fala ou da atividade propriamente dita.

Tendo como base a maneira pela qual o não-ator pode integrar o processo teatral do grupo Rimini Protokoll, assim como tendo ideia daquilo que no final o grupo espera dele, pode-se realizar uma pequena comparação entre o Spect-ator e o Ator-em- documento, para que suas semelhanças - ou seja, as características básicas do não-ator analisado neste estudo - e suas diferenças sejam claramente visualizadas.

2.2.2.1 Semelhanças e diferenças entre o Spect-ator e o Ator-em-documento

Além das três características comuns ao tipo de não-ator aqui analisado, estas duas tipologias (Spect-ator e Ator-em-documento) apresentam uma outra semelhança que é importante detalhar: ambos podem participar do espetáculo mediante uma afinidade com o tema abordado. Ou seja, em ambos pode haver uma relação de afinidade ou de empatia que os conectam à obra teatral, e tal relação pode transitar em uma via de mão- dupla: ou o diretor se interessa pela afinidade que o não-ator apresenta em relação a um determinado contexto (portanto convida-o para integrar a criação teatral), ou o não-ator sente-se atraído pelo discurso-geral abordado pelo espetáculo e concorda em integrar o processo de criação ou em participar espontaneamente no decorrer do espetáculo.

É importante verificar que esta característica comum aos dois tipos de não-atores é ligeiramente diferente da já mencionada terceira característica comum aos tipos de não-atores analisados neste estudo, que é a de que o não-ator é um agente importante do contexto abordado em cena. O não-ator pode ser relevante para o contexto que a criação teatral pretende trabalhar, mas pode não apresentar afinidade com a maneira pela qual o contexto é exposto no espetáculo. Por exemplo, se em um espetáculo pretende-se trabalhar um contexto qualquer de guerra, através da ênfase no ponto de vista do

derrotado (como inclusive fez Ésquilo n'Os Persas), pode-se incluir um Ator-em- documento que represente o lado vencedor pelo fato de ter tido atuação relevante na vitória, mas este não-ator pode não apresentar afinidade ou empatia com a ênfase dada ao tema. Neste caso, quem apresenta afinidade normalmente também apresenta relevância, mas um não-ator pode ser relevante e não apresentar afinidade.

A afinidade com o contexto apresentado em cena, apesar de ser um traço de semelhança, ocorre em diferentes graus nas duas formas teatrais em questão: no Teatro do Oprimido, este é um aspecto fundamental de aproximação, enquanto que no Teatro Documental praticado pelo grupo Rimini Protokoll esta é uma entre várias possibilidades. A afinidade é importante mesmo para o Spect-ator que interage somente no momento da apresentação. Se não há uma relação empática com o que ocorre em cena, o indivíduo não participa adequadamente, ainda que toda a atmosfera da apresentação conspire para esta participação. No caso do grupo Rimini Protokoll, como já se viu, a afinidade com o objeto artístico em questão é apenas uma possibilidade de integração entre o não-ator e o espetáculo. Inclusive ocorre muitas vezes que uma pessoa participa do espetáculo mesmo sem sentir nenhuma relação empática com o que pode experimentar em cena. O não-ator participa simplesmente por curiosidade, ou porque quer entreter-se participando ativamente da apresentação, ou por qualquer outro motivo espontâneo.

A principal diferença entre os dois tipos de não-atores é aquilo que eles representam enquanto sujeitos do discurso-geral do espetáculo. Para o Teatro do Oprimido, os Spect-atores representam o próprio elemento de denúncia, um agente que é incentivado a mudar o contexto abordado a partir de ações propositivas. No Teatro Documental do grupo Rimini Protokoll, ou no Teatro do Momento Presente, o Ator-em- documento representa um elemento que confere ênfase à maneira pela qual o contexto é abordado no espetáculo, uma realidade personificada a partir da sua própria história. Isto porque o grupo se interessa em mostrar ou retratar histórias específicas, e não em se debruçar sobre o sistema em geral, ou sobre uma determinada dinâmica societal e seus diferentes aspectos. Este último ponto é mais consonante com os propósitos do Teatro do Oprimido, no qual o Spect-ator é um elemento que, a partir da sua interação com o contexto e da sua ação em grupo, contribui para uma possível mudança de uma realidade de opressão existente no sistema. No caso do grupo Rimini Protokoll, a intenção é mais a de mostrar, de dar a conhecer aquele que se dispõe a estar em cena e dizer ou fazer algo para o público, do que de suscitar qualquer tipo de julgamento a

respeito do que é mostrado, ou até mesmo a respeito de quem o mostra. É claro que o contato que o público tem com aquilo que o grupo mostra em cena como um todo, ou com certas ideias defendidas pelo não-ator durante seu discurso em específico, pode levá-lo a pensar em consonância com o que é exposto. O público pode ter diferentes tipos de opiniões, julgamentos, ou simplesmente apenas ver e ouvir aquilo que é mostrado. Entretanto, não se espera nenhuma reação específica do público. Diferentemente do Teatro do Oprimido, que espera uma participação ativa no espetáculo, ou que o público julgue a causa apresentada como válida e a mudança como necessária.

Estas são as semelhanças e diferenças que se destacam entre os dois tipos de não-ator, baseadas nas metodologias distintas que cada realidade teatral mencionada possui. Há outras diferenças e semelhanças, que ainda serão destacadas mais adiante, à medida que se continua desenvolvendo este contato com os contextos teatrais que são objetos deste estudo, e aquilo que o não-ator representa para cada um destes.