• Nenhum resultado encontrado

2.2 O Teatro Documental

2.2.1 O Teatro do Momento Presente

O grupo Rimini Protokoll deu uma nova dinâmica ao Teatro Documental através dos seus trabalhos. A linha estética do grupo é conhecida como o Teatro do Momento Presente, ou Theater der Zeit, em alemão, também tido como um movimento dentro do Teatro Documental. O grupo se debruça sobre o momento presente dentro do palco, pois sua base documental encontra-se em plenas funções de protagonismo em cena. Ao invés de colocar em cena um ator para representar uma determinada realidade, embasado pelo texto e pela atmosfera cênica criadas em função do material documentado a respeito do tema, o grupo coloca o próprio agente da realidade retratada, para que ele próprio apresente seu contexto da maneira que sabe fazê-lo. Ainda que não seja um ator profissional, este não-ator é um representante direto de um determinado contexto e que, portanto, teria embasamento para apresentar tal contexto veridicamente e autenticamente em cena. Por isso que estes não-atores são chamados de “Especialistas do Cotidiano”: embora não sejam especialistas na arte de representar, são especialistas nas atividades que apresentam em cena dentro do contexto geral criado pelo grupo para cada espetáculo.

Mesmo quando o “especialista do cotidiano” se refere em cena a algo que aconteceu no passado, ele geralmente o faz acompanhado de uma demonstração. Ou seja, ele faz a referência e, ao mesmo tempo (ou em um momento posterior no espetáculo), é sempre demonstrado no momento presente aquilo a que ele se referiu. A referência ao passado é sempre trazida para o presente em cena, mediante algum artifício, mas geralmente é através da execução direta da atividade em questão pelo próprio não-ator. O próprio público pode trazer para o momento presente, em cena, alguma referência anterior ao espetáculo. O maior exemplo disto é a série de espetáculos 100%..., que já foi apresentada em várias cidades. Por exemplo, em 100%

Berlim, o primeiro da série, o público berlinense foi convidado a dar vida em palco aos

dados estatísticos sobre a cidade, que foram coletados pelo Berlin Brandenburg Statistics Office. O espetáculo começa com apenas uma pessoa em palco, que se coloca na área relativa à uma determinada categoria na qual se encaixa. Entretanto, antes de se encaminhar para o seu respectivo local, esta pessoa pergunta ao microfone, por exemplo, se há entre o público jovens entre 10-25 anos. Se sim, tais jovens podem se encaminhar para o palco, para o respectivo local reservado, mas antes também chamam no microfone outras pessoas que pertençam à outra categoria do relatório estatístico

feito pela instituição berlinense anteriormente citada. Ao longo do espetáculo, há mudanças nas dinâmicas de encaminhamentos para as zonas no palco que representam cada dado estatístico, até que no final haja em palco 100 berlinenses que dão vida e que representam naquele momento as categorias mencionadas.

100% Berlim foi produzido em 2008, no âmbito das comemorações do

centenário do Teatro Hebbel am Ufer (HAU) de Berlim, do qual Wetzel, Haug e Kaegi são artistas residentes desde 2004. Depois disto, o espetáculo foi apresentado em Viena (2010), Karlsruhe (2011), Colônia (2011), Melbourne (2012) e Londres (2012). Os participantes do espetáculo sempre são o público local presente no momento, assim como a dinâmica em cena sempre se baseia nos dados estatísticos coletados por instituições locais.

O segundo ponto no qual o Teatro Documental sofre um redirecionamento através do trabalho do grupo Rimini Protokoll é o que diz respeito ao engajamento sociopolítico. Como já foi visto, o Teatro Documental tem uma ligação íntima com o contexto que representa, justamente porque suas bases são materiais documentados fidedignamente ligados ao tema escolhido. Os trabalhos do grupo Rimini Protokoll também apresentam íntima relação com o contexto que apresentam em cena, porque utilizam em função de protagonismo o próprio Ator-em-documento, ou seja, os “especialistas do cotidiano” que ao mesmo tempo representam em cena o próprio documento fidedigno à realidade e apresentam sua história movimentando-se no espetáculo de acordo com a atmosfera criada pelos diretores. O conceito de Ator-em- documento será mais trabalhado na seção subsequente. O que interessa para já é que, sendo o “especialista do cotidiano” o documento vivo do contexto apresentado (Ator- em-documento), o espetáculo gira em torno do discurso deste agente e não em torno da opinião do diretor, que compõe seu discurso a partir da combinação de elementos factíveis que inspirem a concordância do público. Ainda que os diretores do grupo Rimini Protokoll possam ter uma opinião particular a respeito do assunto abordado no espetáculo e tentar criar uma atmosfera que influencie o público a corroborar com a sua opinião particular, eles colocam como protagonistas, isto é, como próprios expositores principais do discurso, um elemento que confere uma notável imprevisibilidade ao processo: um não-ator que não tem experiência na arte de representar e que, portanto, não tem experiência em decorar textos, em obedecer a marcações e se integrar de maneira adequada aos outros elementos cênicos. Este não-ator pode ensaiar uma dinâmica e, na hora do espetáculo, esquecer o que fez nos ensaios e fazer algo

completamente diferente em cena. Isto traz uma imprevisibilidade que interfere diretamente em qualquer tentativa de fazer com que o não-ator se integre em uníssono com os outros elementos em cena em função de um discurso político que reflita as opiniões pessoais do diretor.

Tendo esta ideia como base, pode-se dizer que o grupo Rimini Protokoll faz um teatro político, ao invés de fazer política através do teatro. Faz um teatro político porque apresenta em cena a própria atividade humana, ou porque algumas vezes seu espaço de apresentação é uma pólis na qual o não-ator tem a possibilidade de dar a conhecer a sua realidade. Entretanto, utiliza o teatro como instrumento político porque não utiliza o Teatro Documental para criar um didatismo orquestrado pelo diretor para convencer o espectador ou para ganhar sua adesão à causa específica trabalhada em cena. É evidente que a atmosfera criada e a atuação do não-ator pode levar o público ao convencimento ou à adesão, mas isto está mais em função do discurso do não-ator no momento presente do que na criação e na sistematização prévia do espetáculo.

O elemento da imprevisibilidade, inclusive, é uma marca registrada dos espetáculos do grupo. Isto é incentivado a partir do seu próprio processo de criação, que muitas vezes possui poucos ou até mesmo nenhum ensaio com os não-atores. Diante disto, um espetáculo nunca é apresentado de maneira perfeita, sem que haja, por exemplo, erros de marcações, esquecimento de falas ou quebras de ritmo por parte do não-ator. Isto gera muitas vezes uma relação curiosa com o público. Há vezes em que todo o momento cênico é preparado para que o não-ator realize alguma atividade, o foco de luz está em cima do não-ator para denotar que neste exato momento é a sua vez de falar ou de fazer algo, e ele não faz, ou faz depois de um certo momento. O público fica na expectativa e, às vezes, até sabe que naquele momento era suposto que o não-ator fizesse algo. Ou seja, esta imprevisibilidade cria uma relação diferente entre não-ator e público, que pode gerar como resultado momentos espontâneos de humor ou cinco longos segundos de constrangimento geral. E o grupo Rimini Protokoll nem se alegra, nem se constrange.

Isto ressalta a ideia do Teatro do Momento Presente, fazendo com que cada apresentação tenha acontecimentos únicos, ainda que o mesmo espetáculo com o mesmo grupo se apresente várias vezes. A partir do que foi exposto percebe-se que a maneira de apresentar uma realidade e a relação sociopolítica do espetáculo com o contexto ganharam um novo direcionamento a partir da influência dos trabalhos do

grupo Rimini Protokoll, fazendo com que o Teatro Documental tenha uma relação ainda mais íntima com o principal agente de qualquer contexto, que é o ser humano, com suas qualidades, defeitos e imprevisibilidades.