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Tradicionalmente, o curso de Medicina é o mais procurado em todos os concursos vestibulares na UFS, configurando-se como um curso de alto prestígio social, não só no interior da comunidade acadêmica como na sociedade sergipana e no Brasil, em geral. Em 2012, a UFS foi avaliada como a 32ª melhor instituição do país e, o curso de Medicina, foi avaliado como o 6º melhor, tendo obtido conceito 5, nota máxima na última avaliação do ENADE, em 2010. Sem dúvida, um curso respeitado e tido como referência nacional. O curso oferecido no Campus Saúde, situado em Aracaju, alvo desta pesquisa, configura-se em uma estrutura tradicional27, ou seja, o processo didático está centrado na transmissão do saber teórico-prático dos professores para os alunos.

No Vestibular da UFS, o contingente de aprovados antes das cotas concentrava-se em duas ou três escolas particulares, enquanto o percentual de alunos da rede pública que ingressavam no curso era ínfimo. Mas, na história do curso, não foi sempre assim. Nos primeiros anos do curso de Medicina, por volta da década de 1960, ingressavam alunos do Colégio Atheneu Sergipense, tido como uma das melhores escolas do Estado à época. Portanto, considerar a qualidade da escola pública como um contraponto no debate das cotas foi algo muito presente nos depoimentos de egressos dessas primeiras turmas, que hoje são professores catedátricos do curso.

Comparativamente aos demais cursos, o curso de Medicina pode ser considerado um dos mais elitizados. A impressão durante o processo de coleta de dados era a de uma universidade “à parte”, dentro da própria universidade. O modo de pensar o processo pedagógico é diferente, a competitividade é flagrante.

Dentre os pesquisados, foi possível perceber que quem é contra, odeia as cotas e quem é a favor, apenas expressa uma opinião sem defendê-las com a mesma veemência daqueles que a combatem. O processo de coleta evidenciou indícios de ódio inter-racial, preconceito entre as classes e uma competitividade sem precedentes. Mas essa constatação pode ser

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Diferentemente do Campus Lagarto que adota o método PBL/ABP (Ensino Baseado em Problemas), que enfatiza o estudo autodirigido, centrado no aluno.

explicada: os estudantes acabam sendo “treinados” para isso. Essa mentalidade é formada na família, na escolaridade e na própria sociedade. Há alunos que se odeiam, convivendo em uma mesma sala de aula e há os que confessaram ter passado por maus tratos por serem cotistas, por isso justificaram sua recusa em participar desta pesquisa.

A comunidade não pareceu devidamente amadurecida para discutir a temática das ações afirmativas sem tomar as dores, os prazeres, o jogo de vaidades e interesses, as paixões e inclinações políticas como balizadores na disputa por “um lugar ao sol” na academia. O debate torna-se acalorado, porém ao final pode resultar infrutífero, pois parece que no fundo é o status quo vigente em nossa sociedade que deve prevalecer: cada um permanecendo em seu respectivo lugar, ou seja, aos negros é permitido o ofício de pescador, mas somente aos brancos o ofício de médico.

Dan Segal28 discutiu as maneiras pelas quais o racismo é empregado explicitamente na cultura dos cursos de medicina como forma de enraizar ainda mais a posição superior dos médicos sobre o resto da população. E esse comportamento pode afetar o exercício da profissão do médico. (MARTIN, 2006, p. 240).

Nas entrelinhas dos depoimentos colhidos durante a pesquisa de campo, emergiu a questão da cor da pele e contato físico com os corpos. Subjacente a estas questões, está o nojo. Ele é historicamente construído nas pessoas, como poderemos desconstruí-lo? Não adianta ter médicos negros com consultórios vazios, porque as pessoas simplesmente não confiam na sua capacidade intelectual, ou porque acreditam que sua formação é mesmo deficitária, ou simplesmente porque foram “educados/as” para ter nojo deles.

Durante o período da coleta de dados, com a reforma da UFS, tudo estava fora de lugar, alguns setores funcionando em salas improvisadas e provisórias (até o término da reforma). O andar inferior, onde funcionam os laboratórios, estava com um cheiro fétido de estrume. Tudo muito empoeirado e absolutamente fora do lugar. Passar todas as vezes pelo laboratório de morfologia foi uma experiência inesquecível. O cheiro de formol e a exposição dos cadáveres inteiros e em partes, a portas abertas, ficaram marcadas por vários dias em minha mente.

O contato com essa realidade me fez pensar sobre a dimensão do “humano”. Até que ponto o componente ético estaria embutido nessa formação técnica para a atuação médica?

28 SEGAL, Daniel A. 'The European': Allegories of Racial Purity. Anthropology Today, Vol. 7, No. 5 (Out., 1991), pp. 7-9 doi:10.2307/3032780.

Aqueles estudantes tão novos estariam preparados para lidar com essa etapa de sua formação em todas as suas dimensões e implicações? Diante daquelas cenas, e apesar de já ter acumulado uma relativa experiência de vida, fiquei nauseada e impressionada por vários dias. Fiquei imaginando o que passava na cabeça de estudantes tão jovens e ainda com tão pouca maturidade. Quais poderiam ser seus sentimentos diante de algo tão forte como a transitoriedade da vida. Para estes estudantes, de onde nasceria o respeito pelo humano? Se afinal o corpo que eles exploram e dissecam é o dos “indigentes”. Enfim, são questões que demandariam outra pesquisa, sobre o caráter ético-humanístico da profissão, que não constitui o escopo desta pesquisa, muito embora possa ser útil para contextualizar a formação discente via processos pedagógicos desenrolados na instituição.

É fato que políticas públicas de democratização do acesso interferem nos espaços anteriormente ocupados por estudantes rigorosamente selecionados dentre as “melhores escolas”, e anteriormente às cotas, predominantemente oriundos das classes mais abastadas. Portanto, não são propostas consensualmente bem recebidas por integrantes de um curso que, em sua essência, encerra aspectos tradicionais, elitizantes e altamente competitivos.

Esses aspectos, problemáticos, e ao mesmo tempo instigantes motivaram-me a tomar o curso de Medicina como um caso típico, um exemplar para se pensar o impacto das políticas de ações afirmativas sobre a prática pedagógica na universidade.