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O espetáculo religioso, como todo espetáculo, possui algumas dimensões – estética, lúdica e dramática – que o integram e o caracterizam. Nesta tese nos propomos a abordar cada uma dessas dimensões separadamente por questão meramente metodológica, uma vez que o programa “Fala que eu te escuto” é aqui percebido como um fato social total nos termos como essa categoria de análise foi definida por Mauss (2003).

A estrutura ritual do programa não estabelece uma separação entre os pastores apresentadores do programa e os telespectadores, a ideia é exatamente o contrário, o programa procura fazer com que o telespectador pense, veja e sinta como se o Pastor estivesse direcionando sua fala diretamente a ele, já que o público do programa pode ser caracterizado como um dos mais heterogêneos, tanto em seus interesses quanto em suas expectativas. Tomemos como exemplo os telespectadores do programa intitulado “Ratos de academia”, em seus 25 minutos dedicados a participação dos telespectadores, estes se mostraram em grande maioria contra as pessoas que tentavam vencer suas frustrações íntimas através do uso exagerado da malhação. Outros se mostravam confusos, ao mesmo tempo em que concordava que o excesso era danoso, defendiam a ideia de que hoje precisamos nos exercitar, como forma de mantermos uma boa saúde. Esses relatos mostram a diversidade e heterogeneidade de opiniões sobre o tema, reflexo da própria diversidade dos que assistem e participam do programa.

A linguagem ritual do programa configura um espetáculo cênico no sentido de que algo é exibido a um público. Sendo assim, o espetacular será sempre definido a partir de um determinado olhar. Os olhares que cruzam o programa elegem diferentes objetos de contemplação, o espetacular pode ser associado às reportagens, aos hinos de louvor, aos testemunhos dos telespectadores, ao

momento de oração com o copo d’água ou música. As três dimensões – a religiosa,

a lúdica e a estética – integram a totalidade do programa, mas o olhar fragmentado

ao interesse do momento, que pode ser religioso, emocional, espetacular ou lúdico. Para o segmento religioso do programa, o espetáculo oferecido tem a ver com

o regozijo religioso, com a reflexão de práticas e comportamentos sociais

considerados inadequados, com a captação ou arregimentação de novos fieis, já para o segmento leigo ele pode de uma forma simplista mexer com os valores arraigados dos indivíduos, causar certo tipo de reflexão sobre seus hábitos cotidianos, causar impactos naqueles que por algum motivo se “desviaram” da palavra de Deus.

Tomando como parâmetro a classificação dos ritos proposta por Durkheim

(1989), o programa “religioso” “Fala que eu te escuto” da IURD poderia ser

considerado como um rito representativo ou comemorativo. O autor estabelece uma linha de parentesco entre esse tipo de rito e as representações dramáticas. A aproximação é por ele justificada pelo fato de os ritos representativos não só utilizarem os mesmos procedimentos do drama, como também perseguirem objetivos do mesmo gênero.

Dentre eles está o de assumir aspecto exterior de entretenimento para os indivíduos, proporcionando-lhes o alívio das tensões cotidianas, distraindo-lhes o

espírito cansado pela rotina do trabalho, apresentando-lhes um “outro mundo”

diferente do mundo real, permitindo-lhes a liberação da imaginação e da criatividade. O uso da metáfora do parentesco para marcar as relações entre o drama e os ritos representativos ou comemorativos é intencional, seu objetivo é estabelecer uma equivalência e não uma relação direta entre ambos:

Com efeito, ainda que, como definimos, o pensamento religioso seja algo completamente diferente de um sistema de ficções, as realidades às quais ele corresponde só chegam, no entanto, a se exprimirem religiosamente se a imaginação as transfigura (Durkheim, 1989, p. 454).

A matéria-prima utilizada na construção do mundo sagrado é encontrada na vida social, porém ela é interpretada, elaborada, transformada pela criatividade humana. Nesse sentido, o mundo das coisas religiosas é um mundo parcialmente imaginário, apenas no seu aspecto exterior e por essa razão ele favorece mais facilmente as “livres criações do espírito” (Durkheim, 1989, p. 454).

produzem não são meras imagens que não correspondem a nada na realidade, que evocamos sem nenhuma finalidade, apenas pela satisfação de vê-las aparecerem e se combinarem sob nossos olhos. O ritual, ao contrário do jogo, faz parte da vida séria, contudo o elemento irreal e imaginário, mesmo não sendo essencial, tem sua importância. Ele promove o sentimento de reconforto que o fiel recebe do rito realizado, a recreação é uma das formas de renovação moral sendo esse o objetivo principal do culto positivo.

A principal função do rito religioso não é o de proporcionar a pura diversão e sim, o de manter, por meio da representação, a vitalidade das crenças necessárias ao bom funcionamento da vida moral do grupo.

Segundo Durkheim (1989), as forças coletivas que dão origem ao mundo das coisas sagradas são as mesmas encontradas na origem das obras de arte e dos jogos. O estado de efervescência coletiva que se verifica no culto religioso desencadeia manifestações semelhantes às que se dão no jogo: movimentos aleatórios, gestos, gritos, cantos, danças, saltos etc.

Desta forma observamos que o programa “Fala que eu te escuto” é considerado um tipo de culto, já que cumpre funções recreativas, mas não se confunde com o próprio jogo. O elemento lúdico é responsável pelo sentimento de alívio e de conforto experimentado pelo fiel durante o programa, representando, igualmente, uma importante fonte de renovação moral. Após o cumprimento dos seus deveres rituais, os fiéis voltam à vida profana de ânimo renovado. Este fato é visível

Não somente porque nos colocamos em contato com uma fonte superior de energia, mas também porque as nossas forças se refizeram vivendo, por alguns instantes, de forma menos tensa, mais cômoda e mais livre. Por isso, a religião tem fascínio que não é dos seus menores atrativos. (Durkheim, 1989, p. 456).

O elemento estético da vida religiosa, como faz ver o autor, é facilmente identificável nos ritos representativos, mas, de um modo geral, não existe rito que, em menor ou maior grau, não o apresente:

A arte não é apenas ornamento exterior com que o culto se revestiria para dissimular o que pode ter de muito austero e de muito rude; mas, por si mesmo, o culto tem algo de estético. Por causa das relações bastante conhecidas que a mitologia mantém com a poesia,

pretendeu-se, por vezes, deixar a primeira fora da religião; a verdade é que existe uma poesia inerente a toda religião. (Durkheim, 1989, p. 455).

O elemento estético no caso do programa “Fala que eu te escuto” é expresso na elaboração das reportagens, na escolha dos temas e do cenário, no uso de hinos religiosos e elementos visuais. Essas criações contribuem, ao seu modo, para efetuar a passagem do indivíduo do mundo profano para o mundo sagrado. Diferentemente da obra de arte, o elemento estético do culto não visa satisfazer os sentidos e sim, agir sobre os espíritos através de representações que visam garantir a coesão social. Em outro texto, Durkheim (1990, p.167) chama atenção para o “valor demonstrativo” das experiências religiosas, ou seja, o culto constitui, para o fiel, uma prova experimental de suas crenças:

O culto não é simplesmente um sistema de símbolos pelos quais a fé se traduz exteriormente, é a coleção de meios pelos quais ela se cria e se recria periodicamente. Consistindo em operações materiais ou mentais, ele é sempre eficaz.

Durkheim (1990) acredita que a análise dos elementos lúdico e estético, característicos dos ritos representativos ou comemorativos, permite-nos compreender melhor a natureza da cerimônia religiosa. Os ritos negativos estabelecem regras de evitação ou de contato com o sagrado, quando não, prescrevem os comportamentos que preparam os indivíduos para ingressar nesse domínio. Os ritos positivos, por sua vez, promovem atitudes rituais positivas, ou seja, atitudes que colocam os indivíduos em contato com as divindades e com as coisas sagradas, daí as ideias de celebração e comunhão a eles associadas.

Não podemos esquecer que a mídia alimenta-se da religião, todavia ela se alimenta igualmente de outras fontes. Sobre esse aspecto observa Langer (1980, p. 418) que do ponto de vista religioso, o luxo é um valor estético presente em toda religião, crenças e práticas que não visam a fins estritamente utilitários: “esse luxo é indispensável à vida religiosa; ele diz respeito á sua própria essência” (Durkheim, 1990, p.152).