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Preliminarmente, cabe à delimitação conceitual da terminologia ‘governança’ ou “public governance”, a qual possui plurissignificações e admite interpretações também variadas cujo teor não está adstrito exclusivamente à área do Direito. Dessa maneira, é interessante atentar para o uso correto do vocábulo, a depender do contexto e da área de abrangência, a fim de evitar entendimentos errôneos e/ou abusivos.

Convém destacar, ainda, que a sua ideia é recente e não é completamente fechada, ou seja, trata-se de uma noção em construção e moldável em virtude dos contornos sociais em construção. Nesse trabalho, o seu conteúdo está voltado para a compreensão da ciência jurídica e das dimensões políticas, buscando um entendimento pleno sobre a sua essencialidade para a construção das smart cities e o âmbito jurídico.

Segundo Eli Diniz, a terminologia “governance” surgiu, em geral, a partir de reflexões oriundas do Banco Mundial, haja vista a importância em aprofundar o conhecimento das condições que asseguram um Estado eficiente. O autor aduz que essa preocupação mudou o foco estritamente econômico para outro diversamente mais amplo, pautado em uma visão estatal mais abrangente, envolvendo dimensões sociais e afetas à políticas de gestão pública58. Conforme já mencionado em linhas anteriores, o Brasil – assim como algumas outras nações – passa por um processo de crise multifacetária, com ênfase nos escândalos de corrupção, na acentuada disparidade social e na precariedade de segmentos como o da saúde e da segurança pública, os quais alimentam a descrença na gestão administrativa e na possibilidade de melhorias de origem política. Prova disto está em um censo realizado pela organização GfK Verein, que apurou a existência de reduzida credibilidade política no globo. No Japão, há o apoio de apenas 12% na sociedade, contra 16% na Coréia do Sul e 48% na Índia,

por exemplo59. No cenário nacional, ainda de acordo com esse estudo, concebeu-se que o povo

58 DINIZ, Eli. Governabilidade, democracia e forma de estado: os desafios da construção de uma nova ordem no Brasil nos anos 90. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, volume 38, nº 3, 1995. p. 385-415, p. 17. 59 Para fins de esclarecimento, a GfK Verein foi fundada em 1934, na Alemanha, se intitula como uma organização sem fins lucrativos que atua realizando pesquisas de mercado. CHADE, Jamil. Brasileiro é quem menos confia em político, diz pesquisa mundial. O Estado de São Paulo, São Paulo, 11 maio 2016. Disponível em:

brasileiro – empatando com os franceses e os espanhóis no ranking – é aquele com menor confiança nos políticos, totalizando um percentual mínimo de 6% os que, de fato, acreditam na atividade política e na ação desses agentes60.

Corroborando com esses dados sobre a desesperança da população na atuação política, há a catalogação do elevado índice de abstenção nos últimos pleitos eleitorais, conforme demonstrado nos gráficos a seguir61, tanto em relação às eleições federais e estaduais, quanto sobre às municipais.

Figura 3: Abstenção nas eleições federais e estaduais no Brasil, primeiro e segundo turno, dados percentuais

(1989-2010). Fonte: TSE (2012; 2014).

<http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,brasileiro-e-quem-menos-confia-em-politico--diz-pesquisa- mundial,10000050380>. Acesso em: 14 mar. 2018.

60 Idem.

61 PASE, Hemerson Luiz; SILVA, Luis Gustavo Teixeira da; SANTOS, Everton Rodrigo. Cultura política e abstenção eleitoral. E-legis - Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação do CEFOR, Brasília, n. 21, p. 127-143, set./dez., 2016, p. 132. Destaca-se, de acordo com o contexto analisado, o conceito de abstenção, segundo o qual um potencial eleitor decide não exercer o seu direito ao voto.

Figura 4: Abstenção nas eleições municipais, primeiro turno, dados percentuais (1992-2012). Fonte: TSE

(2012).

Essa demonstração gráfica foi apontada nessa dissertação com o fito de comprovar o descrédito da população nacional frente à política e a confiabilidade no processo de mudanças por intermédio de vias políticas e representativas. A crise democrática, especialmente àquela evidenciada pela abstenção dos votos, é tão notória que, com o índice de 15% à 20% de abstenção registrado nas eleições ocorridas entre 1998 e 2014, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), à época, Ministro Marco Aurélio Mello, promoveu uma campanha nacional de estímulo à participação eleitoral ativa62 denominada “#VotaBrasil”63. Em conclusão às provas acerca da crise democrática, segue ilustração64:

62 Esclarece-se a capacidade eleitoral ativa, pois, a análise dos gráficos inclusos nesse trabalho levou em consideração apenas a participação eletiva dos cidadãos enquanto eleitores, no exercício regular do sufrágio, e não enquanto candidatos susceptíveis de serem eleitos (capacidade eleitoral passiva).

63 Idem. 64 Idem.

Figura 5: Apresenta, em percentuais, os dados da pesquisa realizada no Brasil sobre a percepção quanto a

(des)confiança nos partidos políticos e no Congresso Nacional e a insatisfação com a democracia entre os anos de 1996-2015. Fonte: Latinobarômetro (1996-2015).

Com efeito, o fator da desesperança política por parte dos cidadãos aliado a aspectos como a complexização das economias, o crescimento da burocracia para os trâmites em geral e a intensificação da demanda por serviços culminaram no processo de inclusão do cidadão como agente participante ativo. Esses aspectos, somados, incitaram uma reordenação no sistema democrático vigente, tendo em vista a necessidade de torná-lo mais eficiente e resolutivo65 antes as precisões de ordem socioeconômica.

Diante dessa conjuntura, a descrença com o exercício da atividade pública conferida aos agentes políticos, notadamente, trouxe reflexões acerca do relacionamento entre administrando e administrados. Passou-se a discutir, ademais, que a capacidade governativa não seria avaliada pelo resultado das políticas governamentais tão somente, mas, pelo modo com o qual o político exerce o seu poder no exercício de sua atividade66.

Sobre o conceito real do termo ‘governança’, aludiu o Banco Mundial, em seu documento “Governance e development”, em 1992: “é o exercício da autoridade, controle administração, poder de governo”, e, completa, “é a maneira pela qual o poder é exercido na

65 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 6. ed.. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1986, p. 39-41.

66 GONÇALVES, Alcindo. O conceito de governança. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/XIVCongresso/078.pdf.>. Acesso em: 14 mar. 2018.

administração dos recursos sociais e econômicos de um país visando o desenvolvimento”, implicando, por fim, “a capacidade dos governos de planejar, formular e implementar políticas e cumprir funções”67.

Merece destaque, nesse cerne, a diferenciação entre governabilidade e governança e a exposição de um norte sobre seus aspectos, os quais, apesar da imprecisão conceitual, admitem uma delimitação aproximada das respectivas ideias. A governabilidade está mais atrelada à dimensão estatal do exercício do poder e, na visão de Maria Helena de Casto Santos68, diz respeito às “condições sistêmicas e institucionais sob as quais se dá o exercício do poder, tais como as características do sistema político, a forma de governo, as relações entre os Poderes, o sistema de intermediação de interesses”.

Em apertada síntese, a governabilidade está associada à arquitetura institucional, ao passo que a governança, basicamente ligada ao comportamento dos atores e sua capacidade no

exercício da autoridade política69. A governança, por sua vez, possui um espectro mais amplo,

sendo descrita por Marcus André B.C. de Melo70 como sendo algo que “refere-se ao modus

operandi das políticas governamentais – que inclui, dentre outras, questões ligadas ao formato político institucional do processo decisório, à definição do mix apropriado de financiamento de políticas e o alcance geral dos programas”.

Em outros termos e à luz do entendimento de Maria Helena de Castro Santos71, o significado do termo ‘governança’ não se resume aos aspectos gerenciais e administrativos do Estado, tampouco ao funcionamento eficaz do aparelho estatal. Isso revela, na ótica da autora, que a governança, em si, está voltada para um campo muito mais amplo, a saber, para a articulação e a cooperação entre os atores sociais e políticos, além dos arranjos institucionais que coordenam e regulam as transações dentro e, inclusive, através das fronteiras do sistema econômico.

Tecer comentários acerca de governança e da governabilidade incita a menção sobre a relação existente com a temática da globalização, na medida em que a intensificação das interações globalizantes, não exclusivamente econômicas, trouxe uma mudança na função

67 Idem.

68 SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade, governança e democracia: criação de capacidade governativa e relações executivo-legislativo no Brasil pós-constituinte. Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, volume 40, nº 3, 1997, p. 335-376, p. 9.

69 MARTINS, Luciano apud SANTOS, Maria Helena de Castro. op. cit., p.9. 70 MELO, Marcus André B. C. apud SANTOS, Maria Helena de Castro. op. cit., p.6. 71 SANTOS, Maria Helena de Castro, op. cit., p. 341.

essencial do Estado nacional, cuja atuação fora reconfigurada, em especial, no tocante às relações internacionais72. Complementa essa conexão Pierik Roland73, afirmando que a globalização é um fenômeno multidimensional, capaz de conectar a mudança da atividade humana e o deslocamento do poder de uma orientação local e nacional para uma abrangência em nível global.

Ainda conforme Pierik74, a diminuição dos poderes soberanos nacionais, a partir, por

exemplo, da emergência de organização supranacionais, além da presença de Organizações Não Governamentais Internacionais (ONG´s) e empresas multinacionais, o balanço do poder e o conceito de poder político alterou-se de forma significativa. Essa confluência de fatores, com efeito, estaria, segundo o autor, há um tempo, configurando um processo de mudança, qual seja, de governo para governança global. Em suma, a intensificação das relações internacionais permitiu a flexibilização dos moldes de exercer a governabilidade.

Em um país marcado por um cenário de descontentamento popular e consequente crise democrática, torna-se importante citar, ainda que suscintamente, o conceito da accountability. A última década vem mostrando a fragilidade da democracia em alguns países, como o Brasil, sobretudo, por meio de manifestações, greves, ocupações de espaços públicos, mobilizações presenciais, aumento da violência urbana, entre outras formas de expressão popular de descontentamento75.

Isto posto, a accountability, a título de exemplificação, é um mecanismo desenvolvido com o intuito de melhorar as experiências democráticas e baseia-se no aprimoramento progressivo das noções de fiscalização e transparência pública, haja vista o intento em estreitar o relacionamento entre o povo e seus representantes, eliminando, desse modo, todo e qualquer obstáculo que possivelmente impeça a existência de diálogo entre esses atores sociais76. Do ponto de vista interno, esse instituto é composto pela responsividade77, que significa a

72 GONGALVES, Alcindo. op. cit.

73 ROLAND, Pierik apud GONGALVES, Alcindo. O conceito de governança. Disponível em: < http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/XIVCongresso/078.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2018.

74 Idem.

75 LOPES, Anna Karenine Sousa. O papel de accountability na ordem constitucional brasileira. Dissertação em Direito Constitucional – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, p. 14-20. 2016.

76 SERRA, Rita de Cássia Chió, CARVALHO, João Rafael Chió, CARNEIRO, Ricardo. Accountability democrática e as ouvidorias. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. 2012. V.82. n.1. 77 ROVER, Aires José; GALINDO, Fernando, MEZZAROBA, Orides. Direito, governança e tecnologia:

pressuposição de que os governantes devem obedecer aos desejos ou às determinações dos cidadãos em consonância com as demanda existentes e a razoabilidade.

Retomando as linhas introdutórias desse ponto, a delimitação entre governabilidade e governança pública vem sendo lapidada progressivamente com o tempo, dada a necessidade de reinventar o sistema democrático e corrigir suas distorções. Para tanto, fez-se referência à accountability como um instrumento utilizado densamente pós Segunda Guerra Mundial, quando restou caracterizada de forma enfática a busca pela competente prestação de serviços

públicos78 e, ainda, como um aparato fortemente associado ao “avanço de valores

democráticos, como igualdade, dignidade humana, participação e representatividade” 79. Afinal, qual a relação existente entre a governança, as smart cities e o direito?

Em primeiro lugar, é preciso compreender que através da tutela e do monopólio dos direitos há a organização da vida pública, relacionando-se sua análise com o Direito e o Desenvolvimento (D&D)80 na atualidade, juntamente com o auxílio das inciativas pública e privada. Em outras palavras, as novas funções dos Estados como fomentadores e financiadores de projetos incitam a colaboração público-privada que acarretam riscos a ambas as partes e, igualmente, pressupõem uma boa governança, cujo alicerce está na transparência (para estimular os investimentos) e na flexibilidade da segurança jurídica81.

Em seguida, conclui-se que, para a concretização das smart cities, é imprescindível a existência de uma governança inteligente, cujo pilar deve ser a plataforma tecnológica para a automatização dos processos e o monitoramento de informações capazes de gerar a prestação qualitativa dos serviços. A governança deve ser exercida, então, em conjunto com a sociedade, via empoderamento da cidadania, havendo o regular acompanhamento e cobranças relativas aos projetos das cidades82.

Postas essas considerações desse item, tem-se a clara compreensão sobre a essencialidade da governança para as smart cities e o direito, tendo e vista o caráter primordial

78 LISOT, Altair. Os princípios da governança corporativa no processo de modernização da gestão da segurança pública no Brasil. In: Revista Ordem Pública. vol. 5. n. 1. jan-jun, 2012, p. 38-39.

79 BRITTO, Carlos Ayres. Distinção entre “controle social do poder” e “participação popular”. In: Revista de

Direito Administrativo. n. 189. Rio de Janeiro: sine editio, 1992, p. 34.

80 GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar. XAVIER, Yanko Marcius de Alencar. Smart Cities e Direito: conceitos e parâmetros de investigação da governança urbana contemporânea. Revista de Direito à Cidade. Rio de Janeiro/RJ. Vol.8, nº4, p. 1362-1380. out/dez, 2016, p. 1366.

81 SILVA, Lucas do Monte. GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar. Novos rumos do direito e desenvolvimento.

Revista de direitos humanos e democracia, v. 3, n. 5, jan./jun. 2015. p. 158-183, p. 169-170.

de acompanhar as transformações sociais e, nesse sentido, de adaptar-se à atual estrutura deficitária da democracia.

Nessa senda, mister se faz a aproximação entre o Estado e o povo, como um meio fortalecedor da administração pública, bem como a adoção de novos instrumentos capazes de assegurar o cumprimento regular dos princípios constitucionais administrativos83 e das disposições normativas contidas na CRFB/88. Passa-se, enfim, ao estudo do planejamento urbano e da construção do urbanismo sustentável como forma de compreender, mais precisamente, o fenômeno urbanístico das cidades inteligentes e os novos modelos de desenvolvimento urbano sustentável.

2.3 O PLANEJAMENTO URBANO E A CONSTRUÇÃO DO URBANISMO