• Nenhum resultado encontrado

O modelo essencialista de interpretação que ainda vigora na dogmática jurídica contemporânea: voluntas legis e voluntas legislatoris

CAP 02 A BUSCA DA SEGURANÇA PELA RACIONALIDADE SUBSUNTIVA: A SUPERAÇÃO DA NOÇÃO DE NEUTRALIDADE DO INTÉRPRETE JURÍDICO E

3. O modelo essencialista de interpretação que ainda vigora na dogmática jurídica contemporânea: voluntas legis e voluntas legislatoris

Desde a filosofia clássica, com os pré-socráticos, busca-se encontrar a essência fundamental das coisas do mundo. Tem-se o desprezo pela retórica e a exaltação da verdade, entendendo-se a dialética como saber superior, enquanto a retórica nada mais seria do que um saber sem compromisso ético.66

O saber retórico ganha, no entanto, maior prestígio com Aristóteles, que passa a considerá-lo um saber útil, quando os argumentos demonstrativos não são possíveis, ou mesmo bem vindos67. Todavia, a tradição herdada pelos modernos é a de rejeição à retórica, forjando-se uma racionalidade restrita, identificando conhecimento com demonstração científica.

Uma epistemologia baseada em evidências poderia, assim, construir um conhecimento claro, objetivo, digno de um saber científico. Daí a preocupação com a pureza do saber e a necessidade de objetividade e neutralidade do sujeito observador diante do objeto observado. É a busca pela verdade e o desprezo pela verossimilhança como característica do pensamento racional moderno.68

A postura racionalista dos modelos jurídico-positivistas da modernidade também importam a caracterização do direito como ciência. Seguindo esta linha, o ponto cerne da caracterização do conhecimento científico é o do que se chama de neutralidade axiológica, podendo ser este considerado o ponto capital da controvérsia sobre a cientificidade e pureza do conhecimento jurídico, já que envolve um problema filosófico altamente relevante e que tem suas bases na filosofia grega, passando pela modernidade e que hoje vem

66 FERES, Marcos Vinício Chein; ALVES, Marco Antônio Sousa. “Racionalidade ou Razoabilidade? Uma Questão Posta para a Dogmática”. Revista da Faculdade de direito da Universidade Federal de Minas

Gerais, n. 39. Belo Horizonte: Faculdade de direito da UFMG, 2001, p. 288.

67 ARISTOTELES. Rethoric. The works of Aristotle. Col. Great Books of the Western World. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1990, v. 8, p. 596.

68 TEIXEIRA, João Paulo Allain. Racionalidade das decisões judiciais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 13.

sofrendo questionamentos incessantes por parte daqueles que não admitem a distinção filosófica clássica entre o subjetivo e o objetivo, o que inclui a proposta do presente trabalho.69

Foi, portanto, com base nesse dualismo que se cunhou um conceito de ciência cujo elemento primordial se referia à objetividade e neutralidade do pesquisador, provocando discussões epistemológicas intermináveis sobre a cientificidade dos conhecimentos sociais e humanos diante dos conhecimentos naturais, ou das ciências da natureza.

Inicialmente, o que se tentou fazer foi aproximar o conhecimento jurídico às ciências da natureza, o que pode ser percebido claramente nas tentativas de se formular um direito natural “racional”, uma busca pela cientificidade influenciada pelo sucesso das demonstrações e métodos matemáticos.70

A marcante influência do positivismo lógico no direito, como uma clara vertente filosófica representacionista, pode ser demonstrada pela identificação do raciocínio jurídico com a lógica formal, atribuindo-se à norma geral a premissa maior e ao caso concreto a premissa menor, enquanto a sentença seria a conclusão necessária do silogismo.71

Assim é que as primeiras doutrinas jurídico-positivistas, notadamente aquelas identificadas com a Escola da Exegese, buscavam a segurança num modelo racional para a aplicação do direito, donde o ato do aplicador nada mais seria senão a identificação do fato com a norma para a verificação da conseqüência jurídica a ser aplicada, sem qualquer intervenção dos valores e subjetividades do aplicador.

Este modelo de interpretação jurídica tinha como característica a pressuposição de univocidade dos textos normativos, típica de uma postura representacionista em relação à

69 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do

direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 186 e ss;

70 BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e estado na filosofia política moderna. São Paulo: Brasiliense, 1996.

linguagem e que pode ser encontrada no legalismo da Escola da Exegese e na noção de direito como ciência.72

Sendo assim, a atividade levada a cabo pelos juizes, ou por quem decide as questões jurídicas, nada mais seria do que algo mecânico, aproximado do cálculo, sem que se exigisse algo mais que uma operação mental de identificação do suporte fático abstrato da norma com o fato concreto ocorrido no mundo dos fatos para que a incidência fosse verificada e norma gerasse todos os seus efeitos, bem aos moldes da objetividade e isenção de valores requeridos pelo positivismo lógico.73

Trata-se da necessidade de se considerar o direito um sistema formalizado, donde a obrigação de decidir com base no ordenamento obriga o juiz a tratar o direito como completo, coerente e claro, ou seja, sem lacunas, antinomias, nem tampouco obscuridades ou ambigüidades.74

Desta forma satisfaziam-se as necessidades de segurança e limitação do poder dos juízes, tratando a atividade jurisdicional como algo mecanizado e sem criatividade, na qual o intérprete não leva em consideração valores ou outras questões subjetivas, nos moldes exigidos pelo racionalismo moderno ainda reinante.

O que se quer ressaltar é que o paradigma epistemológico racional, a busca pela essência, pelo ser em si das coisas do mundo, a separação entre sujeito e objeto e o dualismo verdadeiro-falso, características do pensamento moderno, ainda têm bastante influência sobre a epistemologia jurídica, notadamente quanto ao papel do decididor e do processo de decisão na interpretação dos textos normativos.

72 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 34; NEVES, Marcelo. “A Interpretação Jurídica no Estado Democrático de direito”. GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 356; LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, P. 21-22.

73 Para a noção de “suporte fático abstrato” e “incidência” ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante.

Tratado de direito privado. Tomo I. Campinas: Bookseller, 2002, p. 12 e ss.

Desde a Escola da Exegese até os dias atuais, permanece no inconsciente de grande parte dos juristas a concepção de que, dado um caso concreto, ter-se-ia uma “única interpretação jurídica correta”, cabendo ao pensamento dogmático desenvolver os métodos próprios para se buscar, racionalmente, tal decisão.

É de se destacar, mais uma vez, que esta visão da interpretação não se encontra no normativismo de Kelsen75, nem tampouco nas idéias de Hart76 sobre o direito. Para o primeiro, o texto dogmático é relativamente indeterminado, já que a aplicação do direito é uma relação entre um escalão inferior e um escalão superior. Esta relação não é jamais de total determinação. Portanto, a lei jamais vincula completamente o juiz, do mesmo modo que o texto constitucional não vincula completamente o legislador ordinário. Daí que “a norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada”77. O direito a aplicar, assim, formaria uma espécie de moldura, dentro da qual o intérprete atua com uma espécie de liberdade.

Em Hart, há o que ele chama de “textura aberta do direito”, donde as regras gerais possuem uma ambigüidade e vagueza decorrentes da própria natureza contingente dos fatos sociais por ela regulados:

Mesmo quando são usadas regras gerais formuladas verbalmente, podem, em casos particulares concretos, surgir incertezas quanto à forma de comportamento exigido por elas. Situações de facto particulares não esperam por nós já separadas umas das outras, e com etiquetas apostas como casos de aplicação da regra geral, cuja aplicação está em causa; nem a regra em si mesma pode avançar e reclamar os seus próprios casos de aplicação.78

Vê-se, pois, que o positivismo não pode, genericamente, ser acusado de essencialista quanto à interpretação. As posturas de Kelsen e Hart não se mantêm nesse

75 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 393.

76 HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 137. 77 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 388.

modelo típico da escola da exegese79. Todavia, determinadas teorias interpretativas ainda influentes buscam, até hoje, “o sentido e alcance das expressões de direito”.80 Prova disso é a polêmica travada em meados do século XIX entre as teorias chamadas subjetivistas – que buscam o sentido da norma numa “vontade do legislador” na tentativa de aplicar a separação de poderes através do recurso ao legislador para a interpretação da norma – e as teorias objetivistas, que apontam para a busca de sentido objetivo contido no texto em si.81

No caso da voluntas legislatoris, a tentativa de se encontrar o “sentido em si” na intencionalidade produtora do texto, e, no caso da voluntas legis, a tentativa de encontrar o sentido no próprio texto, como se o texto “em si” tivesse algum sentido independente das necessidades e da história do homem.

Ambas as teorias, portanto, permanecem sob o paradigma de que a norma tem um sentido em si, e que o intérprete deveria buscar este sentido ou na vontade do legislador – caso das doutrinas subjetivistas – ou na própria norma – caso das doutrinas objetivistas. Neste sentido, continua-se a buscar algo metafísico, que diz respeito ao “significado da norma”, como sendo este o objeto da dogmática hermenêutica, que ainda vigora nos manuais de direito no Brasil.82

Esta tentativa metafísica de se buscar um “sentido em si” no texto normativo desconsidera o caráter humano da interpretação e, conforme se verá ao longo do trabalho, é objeto de crítica das concepções hermenêutico-filosóficas que postulam uma visão do conhecimento como atividade lingüística, voltada não para um ser em si, mas para os problemas e necessidades históricas do ser humano, inserido sempre, num ambiente lingüístico.

79 No quarto capítulo desse trabalho, ver-se-á que as idéias apresentadas por estes autores vão desencadear um novo processo de busca pela segurança e racionalidade no direito, a racionalidade procedimental das teorias da argumentação.

80 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.01. 81 FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 1994.

82 Ver NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 305 e ss; DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 384 e ss; e GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 250 e ss.

4. A visão do homem como ser histórico-temporal para uma concepção hermenêutica do

Outline

Documentos relacionados