• Nenhum resultado encontrado

OS ELEMENTOS FORMADORES DA JUVENTUDE 2.1 Um Verão em Berlim

3. A VIDA COTIDIANA E A SOCIABILIDADE MASCULINA DAS CALDAS

3.1 A estação balneária

A infância e adolescência de Antonio Candido em Poços de Caldas se desen- volveram em um dos cenários mais peculiares do sudeste brasileiro no início do sé- culo XX. Isso porque consolidava-se nesse período a constituição de uma estância balneária que tornaria Poços de Caldas receptora de uma série de novas práticas sociais das elites em vilegiatura da belle époque. No campo da saúde a cidade se tornava famosa pelo seu roteiro terapêutico, tratamentos de repouso, banhos pres- critos, caminhadas bucólicas e passeios a cavalo. Já na esfera do entretenimento, Poços de Caldas se destacava pelos bailes, jantares e prática de golf no Country Club.

Pouco a pouco, forjava-se na cidade uma “rotina de estação”: as elites que vi- ajavam até a cidade desfilavam traquejos, gestuais, requintes de maneiras, novas tendências de figurino, disputas de dotes e prestígio. Nessa cidade de “clima ameno contra verões tórridos, de ares refrescados pela vegetação da serra e dos jardins plantados à francesa, lugar abundante de águas especiais, em ruas largas, higiêni- cas e visíveis para o footing das toilettes”, os visitantes se equipavam dos instrumen- tos de moda e levavam para suas cidades de origem todo o aprendizado e novos modos da estação.115

Além do jogo de exibição pertinente à moda – e aos modos – a vida social efervescente que marcava as estações na região das Caldas compreendia também os concorridos jogos nos cassinos, a realização de concursos esportivos, conferên- cias, desfiles e espetáculos teatrais:

[…] os visitantes, concentrados nos hotéis, travavam relações novas, conhe- ciam gente variada, tinham oportunidades de namoro e aventura, tentavam a sorte nos cassinos, dançavam diariamente nas matinées, soirées e bailes formais. Podiam estar lado a lado com gente fora da rotina – “personalida-

des”, artistas da noite, concertistas famosos, atores, dançarinas, moças de “vida alegre”, tudo concentrado densamente em pequeno espaço, durante um período curto. A estação de águas era uma espécie de festa prolongada para os que nela iam passear e ali viviam num mundo diferente.116

A intensa atividade na cidade cessava ao final da temporada de visitação, quando Poços voltava a mergulhar em si mesma. Esse era o período conhecido como “intervalo”, pelos meses pouco concorridos, ou como “estação do baú”, em função do tipo de bagagem mais modesta que a classe frequentadora trazia consigo. De fato, havia uma importante distinção entre as naturezas das classes que chega- vam a Poços de Caldas para desfrutar da vida no balneário durante as “temporadas” e os meses de “intervalo”: na “temporada” notava-se a presença dos estratos mais altos e abastados; já no intervalo, viam-se os estratos menos privilegiados, que se dirigiam para a cidade mais motivados pelos benefícios das águas termais do que pelo circuito itinerante de novidades e entretenimento.

Para a família Mello e Souza a temporada das águas era também intensa de atividades: Aristides de Mello obtinha no período da “estação” dois terços do que ga- nhava, trabalhando dia e noite. Mesmo vivendo em Poços já havia alguns anos, a maioria de seus pacientes era ainda de fora da cidade e, assim, esses eram os me- ses de maior volume de trabalho. Nos períodos de “intervalo”, como clinicava pouco, passava a maior parte do tempo escrevendo, estudando e lendo.117

No que diz respeito ao jovem Candido, pode-se dizer que o período de “esta- ção” era o de experimentação dos prazeres da juventude: entre bailes e matinês, An- tonio Candido118 dançava todos os dias e, como a maioria dos jovens da cidade, dava mais atenção às moças visitantes do que às locais naqueles meses de tempo- rada:

116 Antonio Candido recupera os tempos do turismo das águas das Caldas no prefácio de A

correspondência de uma estação de cura, livro de João do Rio, escrito em 1917. Ver Antonio Candido. “Atualidade de um romance inatual”. In: A correspondência de uma estação de Cura. João do Rio, 3ª edição, editora Scipione, São Paulo, 1992, p.X.

117 Entrevista concedida a Rodrigo Falconi. op.cit.

118 Ver entrevista com Antonio Candido. Projeto de História Oral do Museu Histórico e Geográfico de

Na trepidação diária da vida de “estação” desenrolavam-se namoros, forma- vam-se noivados sensacionais (…), estouravam escândalos, perdiam-se for- tunas no “pano verde”. Lindas ou banais, circulavam as mulheres, desde as mocinhas comportadas até as aventureiras de todo nível, sem contar as se- nhoras comedidas que ali, por algum tempo, soltavam as rédeas e abriam hiatos na rotina.119

Ao olharmos para essa dinâmica nas estâncias termais nos períodos de esta- ção, percebemos que de alguma maneira se constituía um grupo, uniformizado em maior ou menor grau, que compartilhava de uma identidade totalizante. Essa identi- dade, ainda que sem vínculo definido nessas teias de estação, era formada por meio da participação em uma experiência ritual modernizante, característica de centros que paulatinamente se urbanizavam. Candido partilhou dessa identidade durante todo o tempo em que viveu em Poços de Caldas, e podemos dizer que, como todas as suas outras experiências de socialização, ela contribuiu para a sua formação pes- soal, para o desenvolvimento de suas práticas cotidianas e para a composição de sua visão de mundo.

É importante dizer que o processo de constituição dessa e de muitas outras identidades que coexistiam em Poços de Caldas no início do século XX não se deu de maneira harmônica, já que ela tem no seu cerne uma série de relações sociais entre estratos aparentemente não articulados. Estamos tratando aqui de uma peculi- ar associação entre médicos e fazendeiros locais que decidiram se unir deliberada- mente para transformar a cidade em um dos balneários de águas termais mais im- portantes do país.

Voltando para esse momento de urbanização e transformação da região das Caldas conheceremos o impacto de duas personalidades decisivas na formação de Antonio Candido, em especial por serem tão caras a ele: seu pai, Aristides de Mello e Souza, e seu avô materno, José de Carvalho Tolentino. Os dois, médicos e ativos na construção e administração das Termas das Caldas, tiveram os seus itinerários de vida mesclados com a própria história de Poços de Caldas, e assim articulam muitos elementos da juventude de Antonio Candido a experiências ainda mais enrai- zadas da configuração social da cidade.