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Os anos de aprendizagem de Antonio Candido (1930-1940)

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO

CAMILA ALMEIDA VAZ ANTUNES

OS ANOS DE APRENDIZAGEM DE ANTONIO CANDIDO

(1930-1940)

CAMPINAS

2017

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OS ANOS DE APRENDIZAGEM DE ANTONIO CANDIDO

(1930-1940)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Progra-ma de Pós-Graduação em Educação da Faculda-de Faculda-de Educação da UniversidaFaculda-de Estadual Faculda-de Campinas para obtenção do título de Mestra em Educação, na área de concentração Educação.

Orientador: Prof. Dr. Alexandro Henrique Paixão

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA CAMILA ALMEI-DA VAZ ANTUNES, E ORIENTAALMEI-DA PELO PROF. DR. ALE-XANDRO HENRIQUE PAIXÃO.

CAMPINAS

2017

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação

Rosemary Passos - CRB 8/5751

Antunes, Camila Almeida Vaz,

An89a AntOs anos de aprendizagem de Antonio Candido (1930-1940) / Camila Almeida Vaz Antunes. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

AntOrientador: Alexandro Henrique Paixão.

AntDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

Ant1. Candido, Antonio, 1918-2017 - Biografia. 2. Sociólogos - Biografia. 3. Educadores - Formação. 4. Educação. 5. Socialismo. I. Paixão, Alexandro Henrique,1978-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Antonio Candido's apprenticeship years (1930-1940) Palavras-chave em inglês:

Candido, Antonio, 1918-2017 - Biografia Sociologists - Biography

Educators - Training Education

Socialism

Área de concentração: Educação Titulação: Mestra em Educação Banca examinadora:

Alexandro Henrique Paixão [Orientador] Agueda Bernardete Bittencourt

Fátima Aparecida Cabral Data de defesa: 01-08-2017

Programa de Pós-Graduação: Educação

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

OS ANOS DE APRENDIZAGEM DE ANTONIO CANDIDO

(1930-1940)

COMISSÃO JULGADORA: Prof. Dr. Alexandro Henrique Paixão Profa. Dra. Agueda Bernardete Bittencourt Dra. Fátima Aparecida Cabral

Autora: Camila Almeida Vaz Antunes

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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Precioso o tempo que nos foi roubado de tantas formas.

Ao Menininho, Pelos fragmentos de pele que resistiram às tormentas.

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A realização desta pesquisa foi transpassada por muitas camadas do meu próprio desenvolvimento e, nesse momento de conclusão, poder expressar a minha gratidão a todos aqueles que somaram para que esse ciclo de formação acontecesse com sucesso é para mim motivo de enorme satisfação.

Expresso aqui o meu profundo agradecimento ao meu orientador nesta pesquisa, o Prof. Dr. Alexandro Henrique Paixão. Seu acolhimento logo no início desse trabalho demonstrou uma disposição ímpar em cultivar mentes e sonhos, e por isso suas recomendações de leituras, observações e correções compuseram o esteio de todo esse processo de aprendizagem.

Agradeço à banca de qualificação, composta pelo Prof. Dr. Mauricio Érnica e pela Prof.ª Dr.ª Agueda Bittencourt, por cada uma das contribuições e recomendações, todas essenciais para que, mais do que rigor científico, esse trabalho de investigação tivesse alma. Agradeço também à Prof.ª Dr.ª Fátima Cabral por gentilmente ter aceitado participar da banca de defesa e se disposto a contribuir com a finalização deste material, bem como ao Prof. Dr. André Paulilo por aceitar a suplência dessa mesma banca. Faço ainda um agradecimento especial à Prof.ª Dr.ª Isabel Loureiro, pela generosa leitura e comentários valiosos que também somaram à composição do texto final.

Cada uma das disciplinas cursadas ao longo dos meses de mestrado despertou olhares novos e suscitou questões que colaboraram em dimensões diversas para a realização dessa pesquisa. Mas é importante dizer que o processo de formação também se deu em espaços externos à sala de aula, na companhia de pesquisadores talentosos que, como eu, ainda têm pela frente um caminho longo de descobertas e experiências. Assim, agradeço a parceria e cumplicidade dos membros do Laboratório de Estudos de Cultura, História, Educação e Sociologia (LECHES) da Faculdade de Educação: Evelyn Magalhães, Giovana Andrade, Yasmin Camardelli, Gabriela Sêjo, Hiago Maladrin, Issaka Mainassara Bano, Jaqueline Barbieri, Thiago Soares, Patricia Amorim e João Lucas Magalhães Moraes. As leituras e angústias compartilhadas foram fundamentais para a evolução desse trabalho e para o meu próprio amadurecimento como pesquisadora.

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conhecimentos sobre o universo acadêmico, tão cheio de peculiaridades, por leituras atentas acompanhadas de observações ricas para a construção dessa pesquisa, e por me lembrar constantemente de que nenhum esforço é recompensador se não for empregado com leveza e alegria.

Por fim, gostaria de expressar a minha sincera gratidão aos amigos que, ainda que não vivenciando o ambiente acadêmico, foram fundamentais para a realização desse trabalho: Jefferson Biguetti, Daniela Carrer, Renata Oliveira, Maria do Carmo Nery, Gustavo Benvenu, Beatriz Gomes e Vanessa Bittencourt. Muito obrigada pelo carinho, pelo apoio, reconhecimento e por celebrarem comigo cada uma das pequenas vitórias conquistadas ao longo desse caminho.

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Esta pesquisa tem como objetivo investigar o processo de formação política do sociólogo e crítico literário Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017), utilizando como ferramentas metodológicas construtos de dois teóricos expoentes da sociologia alemã, Norbert Elias e Georg Simmel. O posicionamento declaradamente socialista de Antonio Candido é aqui examinado a partir de experiências de socialização que se deram em sua juventude e que parecem ter sido decisivas para a orientação de sua atividade política. Candido é percebido nesta pesquisa como uma “personalidade singular”, capaz de penetrar diferentes estratos sociais e desempenhar em cada um deles um papel ativo no que tange ao engajamento político, ao mesmo tempo em que tem o seu caráter socialista formado através de uma teia de relações díspares – e quase improváveis.

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This research aims at investigating the process of political education of the sociologist and literary critic Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017), using as methodological tools constructs of two theoretical icons of the German Sociology, Norbert Elias and Georg Simmel. The reportedly socialist positioning of Antonio Candido is examined here from socialization experiences of his youth that seem to have been decisive for the orientation of his political activity. Candido is perceived in this research as a “singular personality”, capable of penetrating different social strata and performing an active role in terms of political engagement, having at the same time his socialist character built through a set of distinct, and almost improbable, relations.

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Introdução 11

1. Socialismo e Militância 17

1.1 Plataforma da Nova Geração 17

1.2 O Partido Socialista Brasileiro (PSB) 43

1.3 As eleições de 1947 e de 1950 47

1.4 Encarando o Futuro 51

2. Os Elementos Formadores da Juventude 54

2.1 Um Verão em Berlim 54

2.2 A Matriarca 59

2.3 Os Amigos e as Leituras da Adolescência 63

2.4 Um excurso sobre BILDUNG 70

2.5 Teresina e seus amigos 73

2.6 Os Imigrantes na Região das Caldas 77

3. A vida cotidiana e a sociabilidade masculina das Caldas 80

3.1 A estação balneária 80

3.2 José de Carvalho Tolentino − O Avô 83

3.3 Aristides de Mello e Souza − O Pai 87

3.4 Em meio aos “Anseios Primordiais” 91

Considerações Finais 96

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INTRODUÇÃO

Existe um curioso rapaz de Poços Cujo segredo decifrar não posso: Nascido no Rio de Janeiro, É paulista ou será mineiro

Esse enigmático rapaz de Poços?1

Os anos de juventude configuram o melhor momento para que se possa perceber como o posicionamento declaradamente socialista de Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017) se constituiu, a despeito de uma série de circunstâncias sociais que poderiam tê-lo levado a adotar orientações políticas diferentes. São esses os anos sobre os quais nos debruçaremos nesta pesquisa e, neste sentido, é importante marcar que não estamos nos dedicando aqui ao período em que Candido já era tido como um intelectual canônico e crítico literário aclamado.

É evidente que a relevância de Antonio Candido para o pensamento social ocidental não pode ser em nenhum momento desconsiderada, já que a sua vasta produção acadêmica2 deu suporte às diferentes áreas das Ciências Humanas – em especial as Ciências Sociais, a Educação e os Estudos Literários – com importantes ferramentas de análise e interpretação para compreensão da dinâmica social do passado e do presente. Entretanto, esta pesquisa busca oferecer contribuições acerca de uma etapa anterior de sua vida, que ainda parece carecer de

1 Limerick de Decio de Almeida Prado sobre Antonio Candido. Ver Decio de Almeida Prado, “O

Clima de uma época”, In: Antonio Candido: Pensamento e Militância. (org. Flavio Aguiar). São Paulo: Humanitas, Fundação Perseu Abramo, 1999, pp.44-45.

2 Antonio Candido possui vasta produção intelectual nos campos das Ciências Sociais, da Filosofia,

da Literatura e da Educação, com influência referencial nos estudos de teoria literária no ocidente. Além de ensaios, resenhas, depoimentos e aulas em diversas partes do mundo, todos oferecendo contribuições de valor incomparável para que se possa pensar a sociedade contemporânea, Candido publicou vinte e dois livros, foi responsável pela organização de outros nove e produziu mais quatro obras em parceria com outros autores. Até o começo dos anos 2000 o autor havia publicado mais de oitocentos artigos. Ver Vinicius Dantas. Bibliografia de Antonio Candido. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002.

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investigação. Assim, nos voltaremos para a sua primeira fase de descobertas, de escolhas e de conflitos, os chamados “Anos de aprendizagem de Antonio Candido”3. Tais anos compreendem as décadas de 1930 e 1940, ou seja, o período que se estende de seus doze aos trinta e um anos de idade.

A escolha desse recorte temporal nos oferece uma trama de investigação que se mostra muito mais rica em possibilidades de análise do que a tomada do intelectual já consagrado como ponto de partida. Isso porque, para que possamos conhecer como os primeiros impulsos de ação política nasceram, como a curiosidade pelas questões nacionais surgiu e quais circunstâncias foram decisivas na inclinação de Candido para o socialismo, precisamos nos voltar para sua dinâmica social e familiar da juventude e tentar flagrar todas essas questões em sua eclosão e efervescência. Naturalmente, algumas de suas falas da maturidade serão consideradas para compor esses anos de juventude, já que seus depoimentos e lembranças colaboram grandemente para a recuperação de passagens mais íntimas da sua história. Ainda assim, essas mesmas falas precisam ser questionadas e confrontadas com a perspectiva da juventude, uma vez que elas já passaram pelos

3 O título desta pesquisa foi inspirado no romance Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister

(1795), escrito por Johann Wolfgang von Goethe. Nessa obra, Goethe narra a mocidade de Wilhelm Meister, um rapaz de classe burguesa, cujos anseios determinam as suas ações e têm como “conteúdo e objetivo encontrar nas estruturas da sociedade vínculos e satisfações para o mais recôndito da alma” (p.139). A satisfação desses anseios e o seu desenvolvimento psicológico, moral, social e político somente acontecem através de uma sequência de encontros que colocam Wilhelm Meister em contato com os mais diversos estratos da sociedade; e é precisamente percorrendo esse itinerário que o personagem evidencia as questões mais fundamentais da sociedade de seu tempo, a Alemanha do final do século XVIII. “O herói é selecionado entre o número ilimitado dos aspirantes e posto no centro da narrativa somente porque sua busca e sua descoberta revelam, com máxima nitidez, a totalidade do mundo” (p.140). O romance de Goethe deu origem ao gênero literário denominado Bildungsroman (em alemão, romance de formação), que se refere à minuciosa construção do processo de desenvolvimento de uma personalidade, desde a mais tenra idade até a maturidade. Toma-se, nessa pesquisa, o mesmo escopo de construção de uma personalidade a partir de seus anos de juventude. Antonio Candido é aqui estudado no período que compreende a sua fase ginasial e a mocidade vivida na universidade. A sua aproximação com o personagem Wilhelm Meister, evidenciada pelo título desta pesquisa, acontece por meio da observação da ideia de Bildung (processo de formação cultural): assim como o personagem criado por Goethe, Candido foi um jovem de classe burguesa que buscou a sua realização na harmonia de anseios individuais e de valores coletivos, tendo a sua formação cultural construída através de diversos encontros com personalidades oriundas de contextos sociais e políticos variados. Ver Georg Lukács, A Teoria do romance: um ensaio

histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas Cidades, Ed.34, 2000, pp

138-150; Rosana Suarez, Nota sobre o conceito de Bildung (formação cultural). Kriterion [online]. 2005, vol.46, n.112, pp. 191-198.

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filtros do tempo e da história, criando, talvez, uma nova roupagem para conflitos que, num momento anterior, ainda não haviam encontrado sua solução.

A reconstrução dos anos de juventude de Antonio Candido nos levará a visitar três cidades diferentes: o Rio de Janeiro (RJ), local de seu nascimento e importante referencial cultural para toda a família Mello e Souza, Poços de Caldas (MG), onde se deu a maior parte de sua infância e adolescência, e São Paulo (SP), que foi palco das atividades de militância de Candido, assim como da construção de sua vida acadêmica e do estabelecimento de seus laços mais duradouros, dentre eles o casamento com a companheira de universidade, Gilda Rocha.

Cada um desses espaços tem a sua relevância para a formação cultural de Antonio Candido uma vez que todos compuseram os cenários das diferentes “configurações” que se mostraram fundamentais para a constituição de sua personalidade e inclinações diversas, incluindo a política. Nesse contexto, faz-se necessário matizar que o sentido de configuração adotado nesta pesquisa é aquele proposto por Norbert Elias, em que a interdependência dos indivíduos constitui uma teia social, portadora de características e dinâmicas próprias. Ao investigarmos a “teia social” de Candido em cada uma das cidades em que ele viveu na juventude, teremos o aporte de Elias para percebermos como as suas experiências de vivência e relações com os seus pares transformaram essa teia e a tornaram suporte de suas aspirações e modo de vida.

[…] nunca podemos considerar as pessoas como seres singulares e isolados; temos sempre que as encarar inseridas em configurações. Um dos aspectos mais elementares e universais de todas as configurações humanas é o de que cada ser é interdepente (sic) – cada um se pode referir a si mesmo como 'eu' e aos outros como 'tu', 'ele', ou 'ela', 'nós', 'vós' ou 'eles'. Não há ninguém que nunca tenha estado inserido numa teia de pessoas. E designamos isto oralmente ou pensamos nisto por meio de conceitos que se baseiam em pronomes ou noutros meios análogos de expressão. A concepção que cada um de nós tem destas configurações é uma condição básica para a concepção que cada um tem de si próprio, como pessoa isolada. O sentido que cada um tem da sua identidade está estreitamente relacionado com as 'relações de nós' e de 'eles' no nosso próprio grupo e com a nossa posição dentro dessas unidades que designamos por 'nós' e 'eles'. Contudo, os pronomes nem sempre se referem às mesmas pessoas. As configurações a que habitualmente se referem podem mudar no decurso de uma vida, tal como uma pessoa muda. Isto é verdadeiro não só para todas as pessoas consideradas separadamente como também para todos os grupos e mesmo para todas as sociedades. Todos os seus membros dizem 'nós' quando se referem a si mesmos e 'eles' quando se referem aos outros, porém, à medida que o

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tempo passa, podem dizer 'nós' ou 'eles' referindo-se a diferentes pessoas.4

Essa mobilização do conceito elisiano de configuração nos parece bem-vinda na medida em que não oblitera a agência dos sujeitos; antes, considera as suas práticas, conscientes e inconscientes, como também produtoras, e não apenas como produtos, da dinâmica social.

Além disso, o conceito de configuração como ferramenta analítica nos permite perceber as relações sociais abarcando mais do que apenas regras estruturadas por posições que independem das características de seus ocupantes. Isso porque a configuração nos moldes pensados por Elias se estabelece por “valências”, ou seja, por ligações emocionais existentes entre os indivíduos e que servem como alicerce para a sua interdependência no interior da teia social.

A flexibilidade das valências está diretamente associada às mais variadas experiências de sociabilidade do indivíduo. Isso implica dizer que quando um de seus vínculos se desfaz, toda a sua configuração de valências e todo o equilíbrio de sua teia de relações se modifica: em função de determinadas experiências, a ligação do indivíduo com pessoas que ocupavam uma posição marginal pode se intensificar, na medida em que pode haver um distanciamento de outros sujeitos que inicialmente desempenhavam um papel de maior centralidade em sua vida. Os irmãos Antonio Carlos e José Bonifácio Andrada e Silva, amigos de Candido em sua fase escolar, e a senhora Teresina Rocchi, vizinha da família Mello e Souza, são exemplos marcantes de figuras centrais na vida de Candido em Poços de Caldas que, gradativamente, deram espaço a novas relações constituídas em São Paulo, como aquelas com os amigos do Grupo Clima. Esse movimento de enfraquecimento e construção de novas valências se dá ao longo de toda a existência do indivíduo e pode explicar seu trânsito por configurações de naturezas diferentes, como veremos no caso particular de Antonio Candido5.

É importante dizer que a análise do conjunto de relações sociais de um

4 Ver Norbert Elias. Introdução à Sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008, p.139.

5 “O conceito de valências emocionais abertas, orientadas para os outros, ajuda à substituição da

imagem do homem como Homo clausus, pela imagem de 'indivíduo aberto’.” Ver Norbert Elias.

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indivíduo a partir da perspectiva focada nas interações não permite a compreensão abrangente e generalizada de todas as nuances das ligações pessoais que se estabelecem entre sujeitos distintos; entretanto, ao olharmos para a teia de relações pessoais de um indivíduo isolado, poderemos descobrir como ela aparece do seu ponto de vista, isto é, como é que é sentida do ponto de vista da perspectiva do “eu”.

Só assim se torna possível compreender toda uma cadeia de interdependências

mais alargadas, baseadas em ligações emocionais.6 É precisamente esse o plano

teórico em que se dá essa pesquisa: ao recuperarmos o fluxo de valências de Antonio Candido e reconstituirmos as configurações dos seus espaços de juventude, poderemos dar sentido às suas experiências de formação oriundas das mais diversas camadas da sua teia de sociabilidade. Tratamos aqui de “camadas”, porque assumimos a compreensão elisiana de que a formação de valências pode se dar em âmbitos distintos, seja através de relações pessoais diretas ou por meio de elementos de ligação mediadores dessas associações, perpassados por motivações individuais e/ou coletivas, como os partidos políticos.

Desse modo, ao tratarmos das valências de Antonio Candido consideraremos também como constituintes de símbolos que de alguma maneira o atrelaram emocionalmente a grupos políticos engajados na luta por justiça social as obras literárias a que ele foi apresentado na infância e na adolescência – em especial os romances regionais da década de 1930 –, e a publicações de cunho socialista, todas reveladoras das mazelas a que estavam submetidas os estratos da população em condição de maior vulnerabilidade.

Essa perspectiva de análise selecionada insere a presente pesquisa em uma discussão sociológica cunhada já desde o final do século XIX, a qual se dedicava a dar sentido às relações entre indivíduo e sociedade nas mais variadas instâncias. Trata-se de uma escolha pela Escola Alemã, que nos ajuda a ver os movimentos políticos e as tomadas de decisão de maneira articulada, já que, nessa discussão, tomaremos como referência durante todo o trabalho a perspectiva de que o homem nunca é um ser meramente coletivo ou individual, mas a representação de

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momentos em que uma ou outra dimensão se manifesta de maneira mais predominante.

Nesse sentido, percebemos que, ainda que a existência de personalidades singularmente fortes seja decisiva para o processo de formação cultural, a dimensão individual não será percebida como condicionante frente ao todo. Isso quer dizer que somente renunciando a parte de seu “eu” absoluto em favor alguma outra parte, o indivíduo pode conservar o sentimento da própria individualidade sem excluir-se demasiadamente, sem exilar-se em amargura e estranhamento. É dando vazão à sua personalidade e aos seus interesses de maneira interligada aos de uma multiplicidade de pessoas que o indivíduo em questão chegará a confrontar-se com a totalidade empenhando uma força muito maior.7

Dito isso, meu movimento ao longo deste texto se apresentará organizado da seguinte maneira: parto das experiências políticas partidárias de Antonio Candido no começo da vida adulta e recuo no tempo buscando as raízes destas experiências peculiares nos anos de juventude. Trata-se de um esforço analítico “a contrapelo”8 que, por meio da narração de outras experiências decisivas na infância e na adolescência de Antonio Candido, revelará como seus impulsos individuais articulados à sua formação cultural gradativamente constituíram um itinerário orientado à ação de cunho socialista.

7 Ver Georg Simmel apud Theodor Adorno e Max Horkheimer. La Sociedad. Lecciones de

Sociología. Buenos Aires: Editorial Proteo S.C.C., 1969, p.57.

8 O termo é cunhado por Walter Benjamin e se refere a uma recusa em acariciar o “pêlo muito

luzidio” da história, isto é, a um movimento de lutar contra a corrente oficial da história. Ver Michael Löwy. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “sobre o conceito de

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CAPÍTULO I

SOCIALISMO E MILITÂNCIA

1.1 PLATAFORMA DA NOVA GERAÇÃO

Em verdade temos medo. Nascemos escuro. As existências são poucas:

Carteiro, ditador, soldado. Nosso destino, incompleto. E fomos educados para o medo.

Cheiramos flores de medo. Vestimos panos de medo.

De medo, vermelhos rio» vadeamos.

Somos apenas uns homens e a natureza traiu-nos. Há as árvores, as fábricas, doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor, este célebre sentimento, e o amor faltou: chovia, ventava, fazia frio em São Paulo,

Fazia frio em São Paulo... Nevava.

O medo, com sua capa, nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti, meu companheiro moreno.

De nós, de vós; e de tudo. Estou com medo da honra. Assim nos criam burgueses. Nosso caminho: traçado. Por que morrer em conjunto?

E se todos nós vivêssemos?9

9 Trecho do Poema “O Medo”, que Carlos Drummond de Andrade dedicou a Antonio Candido. Ver

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Este trecho do poema “O Medo”, que Carlos Drummond de Andrade dedicou a Antonio Candido, revela muito do sentimento de uma época. Integrante da obra A

Rosa do Povo10, publicada em 1945, o poema faz referência direta aos tempos

sombrios da Segunda Guerra e às angústias de toda uma geração que se vê compelida a compreender, dar sentido e tomar parte em um profundo processo de transformações políticas, econômicas e sociais que se alastram por todo o mundo.

Essa necessidade de compreensão, e de ação, é exposta por Antonio Candido em um artigo originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 1943, intitulado Plataforma da Nova Geração11. Nesse artigo, ele mesmo fonte de inspiração para o poema de Drummond, Candido apresenta o grande problema do medo que toma conta da sua geração: o de ser inferior à tarefa de fazer algo “definitivamente útil” para o seu tempo, como ele acredita terem feito os intelectuais da geração de 1920.

É nítido nesse artigo que Candido percebe a sua própria geração como herdeira cultural e histórica das gerações de Vinte e de Trinta. Curiosamente, ao mesmo tempo em que o medo de sua geração tem origem na sombra do papel ativo desses predecessores, Candido afirma que sua geração não encontra neles influência intelectual: o sentimento que existe em relação a esse grupo se resume ao amor; amor pela sua obra e entusiasmo pela sua ação.

De fato a configuração em que se encontra a geração de Candido não é mais aquela em que atuavam os intelectuais da geração anterior, a quem ele chama de “maiores”, e apesar de o espírito crítico atravessar mudanças históricas e sociais, Candido observa diferenças fundamentais que traçam uma nova perspectiva em relação ao papel do intelectual no contexto social de seu tempo: enquanto a crítica da geração de Vinte é tomada por ele como “demolidora e construtora”, na medida

10 A primeira edição da obra foi publicada pela Livraria José Olympio Editora, em 1945, no Rio de

Janeiro.

11 Em 1942 Edgard Cavalheiro entrevistou intelectuais de grande notoriedade nos anos de 1930, o

que deu origem ao livro Testamento de uma geração, publicado em 1944. Inspirado nisso, Mário Neme entrevistou os jovens que despontavam como referência de uma geração nos anos de 1940. As respostas às suas perguntas eram publicadas semanalmente no jornal O Estado de São

Paulo, em 1943, todas sob o título geral de “Plataforma da Nova Geração”. Essas entrevistas

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em que rompe com padrões artísticos e define novos, a crítica da sua geração é “analítica e funcional”, e nesse sentido diverge daquela oferecida pelos intelectuais das décadas anteriores. É aqui que reside o “medo” a que Candido faz alusão em seu artigo: saber em que medida essa crítica analítica e funcional pode ser eficiente no rompimento com padrões antigos e na proposição de soluções novas para as questões do seu tempo.

Em Plataforma da Nova Geração o autor destaca como os processos de crítica de sua geração se distanciam intelectualmente daqueles dos “maiores”: se antes o desejo de compreender e de resolver as questões do homem se construía por meio do romance, na década de 1940, em São Paulo, esse mesmo desejo se realizava por meio da crítica enquanto gênero textual, isto é, por meio dos ensaios e das pesquisas nos campos das artes e das ciências humanas. Antonio Candido, nesse momento, percebe os críticos de seu tempo – esses também seus amigos e companheiros na academia – como uma “massa compacta” que se dedica aos trabalhos de história, sociologia, estética ou filosofia com o mesmo afinco com que seus anteriores se dedicavam aos romances; e que encontram na crítica o começo que aqueles encontraram na poesia.

O que precisamos destacar aqui é o fato de Candido considerar a si mesmo e aos seus pares como “críticos e estudiosos puros”: acadêmicos dedicados exclusivamente ao exercício intelectual, sem a existência nessa geração do que ele mesmo chama de “destinos mistos”12, ou seja, sem o envolvimento profissional com atividades políticas que, de alguma maneira, poderiam interferir na orientação e no rigor do trabalho científico. Trata-se de Edmundo Rossi, Rui Coelho, Fernando Gois, Lourival Machado, Decio de Almeida Prado, Lauro Escorel, Paulo Emílio Salles

12 Candido afirma que “o ideal nietzschiano seria o pensador que passeia livremente pela vida e

recusa considerar a atividade criadora uma obrigação intelectual.” Sem o intuito de nos referirmos a Antonio Candido como nietzschiano, nos detemos sobre essa assertiva para demonstrarmos como nesse momento Candido julgava importante dissociar o exercício do desenvolvimento científico da obrigação de atender a propósitos políticos e/ou burocráticos. Ver Antonio Candido. “O Portador”. In: O Observador Literário. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004, p.83. Esse artigo foi originalmente publicado no jornal Diário de S. Paulo, como “Notas de Crítica Literária – Breve nota sobre um grande tema”. A primeira parte foi publicada em 30/01/1947 e a segunda parte em 06/02/1947. Sobre os desdobramentos dos “destinos mistos” nessa geração de intelectuais da década de 1940, ver Heloisa Pontes. Destinos Mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo

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Gomes, Antonio Lafévre, Florestan Fernandes, e tantos outros pesquisadores da Universidade de São Paulo. É essa a “massa compacta” que Candido afirma sentir a necessidade de “analisar o seu tempo, de explicá-lo, de esclarecer as contradições” que se apresentavam cada vez mais agudas e evidentes naquele desenvolvimento histórico. O que ele chama de “um grande e belo esforço de tomada de consciência” se configura como a angústia de um grupo de intelectuais originária na busca de uma regra de conduta, de um caminho que concretize a sua tarefa e os livre do problema do medo.

É importante que se faça aqui o esforço de entender esse medo sociologicamente, de modo que não deixemos uma falsa impressão de que essa era uma angústia particular e íntima de Antonio Candido, e, portanto, restrita à esfera do indivíduo. O que se coloca em pauta para a geração de Candido é o topos do pensamento nietzschiano: “a assunção de um dever abstrato e geral às custas de um dever próprio, individual, específico, concreto - vital.”13 Trata-se de “obter-se a si mesmo”14, afirmando a própria humanidade por meio do combate a uma certa complacência em relação a posições adquiridas; rejeitando uma participação submissa no grupo e lançando-se às “aventuras da personalidade”, à busca de novos lugares, novos ângulos, emoções e conhecimentos renovados no intuito de fecundar a si e aos outros.

O desafio de abandonar a estabilidade e a rotina de pensamentos consolidados, e, portanto, lidar com “a fuga vertiginosa das coisas” que são recebidas de fora para dentro se torna imperativo para que se possa mergulhar em si mesmo e realizar a sua virtude própria, que somente pode aflorar de sua vida. É esse o movimento que permite tornar-se um “portador de valores, graças ao qual o conhecimento se encarna e flui no gesto de vida”, revelando possibilidades de uma existência mais real.15

13 Ver Leopold Waizbort. “O Mal-Entendido da Democracia. Sergio Buarque de Hollanda, Raizes do

Brasil, 1936”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol.26, n.º 76, Junho/2011, p.43.

14 “Obtém a ti mesmo” é o conselho nietzschiano que o velho Egeu dá ao filho, Teseu, de Gide. Ver

Antonio Candido. O Observador Literário. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004, p.80.

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Esse espírito nietzschiano a que os intelectuais da geração de Candido se voltam – e por meio do qual se veem compelidos a encontrar novos princípios orientadores da organização social, cultural e política de seu tempo − já estava presente de forma norteadora em uma obra-chave que exprimia a mentalidade ligada ao lugar do intelectual e à análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930: Raízes do Brasil. Publicado em 1936, o livro de Sérgio Buarque de Holanda foi fundamental para os jovens que aprendiam a refletir sobre o Brasil – dentre eles Antonio Candido, que foi apresentado a ele por amigos dos tempos de escola, ainda em Poços de Caldas.

Em Raízes do Brasil Sérgio Buarque assenta a sua discussão acerca da democracia brasileira na conexão entre a psicogênese e a sociogênese, concretizando, a sua maneira, a proposta nietzschiana. Nessa obra o autor aponta como sendo o caminho possível para a efetiva mudança social um processo de transformações lentas e graduais, gestadas e maturadas na alma do povo. Esse movimento de transformações, entretanto, estaria fundado no “personalismo”, ou seja, na estrutura de uma personalidade forte o suficiente para imprimir uma marca na estrutura social.16

Estamos olhando para um momento em que se apresenta toda uma nova maneira de pensar o Brasil, na medida em que a primeira geração de graduados na Faculdade de Filosofia da USP, da qual Antonio Candido era integrante, se deparava agora com o desafio de propor respostas às questões nacionais. Pela primeira vez na história do país havia um grupo de pesquisadores dedicados a se debruçar sobre

16 “Entre nós, já o dissemos, o personalismo é uma noção positiva – talvez a única verdadeiramente

positiva que conhecemos. Ao seu lado todos os lemas da democracia liberal são conceitos puramente decorativos, sem raízes profundas na realidade. Isso explica bem como nos países latino-americanos, onde o personalismo – ou mesmo a oligarquia, que é o prolongamento do personalismo no espaço e no tempo – conseguiu abolir as resistências da demagogia liberal, acordando os instintos e os sentimentos mais vivos do povo, tenha assegurado, com isso, uma estabilidade política que de outro modo não teria sido possível. A formação de elites de governantes em torno de personalidades prestigiosas tem sido, ao menos por enquanto, o princípio político mais fecundo em nossa América.” Ver Sérgio Buarque de Holanda (1936,1ª ed., p.152) apud Leopoldo Waizbort. op. cit., 2011, p.52. É possível observar que o trecho citado foi em parte reformulado na segunda edição de Raízes do Brasil, publicada em 1948, segundo Waizbort possivelmente porque algumas colocações da primeira edição não seriam bem recebidas na conjuntura de redemocratização que se observava mais de uma década passado o seu lançamento.

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as questões nacionais fazendo uso de ferramentas metodológicas, procedimentos de análise e embasamento teórico para oferecer uma percepção crítica e propor novos encaminhamentos. O desencantamento que acompanha esse cientificismo é que força o homem moderno ao tormento e submete o seu espírito a uma luta eterna: “como se mostrar à altura do quotidiano? Todas as buscas de 'experiência vivida' têm sua fonte nessa fraqueza, que é fraqueza não ser capaz de encarar de frente o severo destino do tempo que se vive.”17

O medo de não dar conta dos problemas de seu tempo se mostra também decorrente de experiências bastante distintas de representação adotadas por cada uma das duas gerações – a de Candido e a dos por ele chamada de “maiores”. A geração de 1930 propôs um novo olhar e uma nova linguagem para a realidade brasileira a partir da arte, e, portanto, a despeito do emprego de novos recursos técnicos, o senso de “curso do progresso” diferia muito daquele característico da ciência. Enquanto uma obra de arte não perde a sua relevância e significação, não envelhece e nem pode ser ultrapassada, no domínio da ciência a obra “acabada” tem por função fazer surgirem novas indagações. Ela precisa, portanto, ser ultrapassada e envelhecer; e aquele que se propõe a servir a ciência, como estavam Candido e seus pares da geração de 1940, está fadado a ser ultrapassado e a resignar-se a esse destino, mesmo que seu trabalho científico tenha importância duradoura e qualidade estética.18

A primeira questão que se coloca é a evidente convicção de que o seu círculo de relações era representativo de toda uma geração, e responsável por imprimir uma marca histórica fundamental. É possível aventar que esse forte sentimento de responsabilidade fosse decorrente de dois eventos distintos, mas que coexistiam e dialogavam na cidade de São Paulo: o primeiro diz respeito à nova dinâmica de produção artística e intelectual que se construiu na semana de 22 e cujos reflexos ainda eram sentidos vinte anos mais tarde. Trata-se aqui de um movimento que inaugurou uma nova etapa da vida cultural do país e que embebido do ideal de

17 Ver Max Weber. Ciência e Política: duas vocações. Berlim: Duncker & Hunblot, 1967, p.43. 18 Ver Max Weber. op. cit., 1967, pp.28-29.

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liberdade criadora não só apresentou toda uma nova linguagem artística, como se tornou referencial ideológico para as mais variadas experiências estéticas que se deram ao longo do século XX. Essa era a marca da geração de 22, e em 1942, convivendo nos mesmos espaços e círculos que esses “maiores”, Candido sentia que também cabia à sua geração oferecer contribuições fundantes à vida social e cultural do país.

O outro evento que também influiu decisivamente sobre a relevância da produção intelectual que Candido parecia esperar de sua geração era a construção de um polo científico no país estruturado a partir da fundação da Universidade de São Paulo, em 1934. Era a primeira vez na história do país em que os mais diversos conteúdos da área de Humanidades eram de fato sistematizados e pensados por meio de rigor científico. Estudantes da primeira turma da Faculdade de Filosofia da USP, Candido e seus pares haviam se tornado precursores de uma nova dinâmica de produção intelectual que se tornava referencial para todo o país.

Voltando os olhos ao passado e recuperando o sentimento dessa época, Ruy Coelho nos conta:

Nossa atenção se voltava, no que tangia valores nacionais, para Mario de Andrade e Oswald de Andrade, como personalidades de primeiro plano. Mesmo Antonio Candido, mineiro nascido no Rio, não destoava de nossos sentimentos bairristas. É claro que estou acentuando as linhas, com risco de exagero. Líamos e admirávamos os romancistas do Nordeste e poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Morais. Mas para o pensamento crítico e a produção de ideias o centro era para nós o Planalto.19

Apesar de afirmar não saber qual o destino da sua geração, Candido aponta nesse artigo algumas sugestões do que, nesse momento, ele acredita ser a conduta que os intelectuais deveriam adotar: “esclarecer o pensamento e pôr ordem nas ideias”, rejeitando todas as formas de “Reação”. Isso porque, ele afirma, a “Reação” “breca em todas as curvas a expansão do progresso humano e da inteligência livre”.

19 Ver depoimento de Ruy Coelho: “Ouvir Paulo Emílio”, In: GOMES, Paulo Emilio Salles. Calil,

Carlos Augusto (org.). MACHADO, Maria Teresa (org.). Paulo Emilio: um intelectual na linha de

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Candido está aqui propondo a recusa de certas convenções intelectuais cultivadas nas camadas burguesas que se apresentariam como obstáculos ao “progresso”, ou seja, que ofereceriam soluções de elite e não atenderiam à urgência da injustiça decorrente das contradições sociais. O autor cita como exemplos de correntes que poderiam de alguma maneira levar a atitudes mentais dessa natureza as filosofias idealistas, a literatura personalista e a sociologia cultural.

Destaca-se, particularmente, a crítica de Antonio Candido quanto às filosofias idealistas. O autor enxerga essas correntes como concentradas no estudo “da coisa em si”, acabando por levar os problemas filosóficos para plano espiritual e deixando o indivíduo alheio em meio aos problemas sociais. Embora seja categórico ao dizer que não cabe ao intelectual a chamada à rua sob uma determinada bandeira, Candido deixa evidente a sua preocupação com relação ao engajamento do intelectual na tentativa de resolução dos conflitos concretos de seu tempo:

Por isso, Mario Neme, é que sou contra este tipo de pensamento, que a burguesia, aliás, adora abertamente ou em segredo, porque, como já escrevi mais de uma vez, segrega o intelectual dos problemas presentes e transforma a sua atividade num universal crochê. Muito bonito, e não raro elevadíssimo. Mas penso que é bom guardar as agulhas para um tempo mais sossegado.20

Uma outra ponderação que se pode fazer acerca dessa mesma crítica sobre as correntes de pensamento “cultivadas carinhosamente pela civilização burguesa” se refere a uma aparente dualidade em relação ao seu projeto de engajamento. Mesmo pertencendo a uma elite intelectual e econômica, conforme demonstraremos no próximo capítulo, Candido se distancia intelectualmente de proposições que se dediquem exclusivamente a pensar o problema “do Homem”, e, em vez disso, se volta para propostas que busquem atender ao projeto de justiça social e servir a condição imediata “dos homens”. Essa postura poderia inicialmente soar contraditória com a sua própria realidade, já que justamente por pertencer à primeira turma da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, Candido

20 Ver Antonio Candido. “Plataforma da Nova Geração”, In: O Estado de São Paulo, 15 de julho de

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poderia se apresentar particularmente inclinado às “aventuras espirituais”21, imerso em conteúdos de ordem muito mais metafísica do que prática, e voltados ao exercício intelectual que atendia mais diretamente o modo de vida de seu próprio estrato social.

Apesar de abrir mão de conteúdos abstratos e de se voltar à investigação acadêmica acerca de temas que dialogavam de forma prática com a realidade social – inclusive demonstrando clareza no que tange à necessidade de uma oposição firme frente aos interesses de uma elite dominante –, Candido deixa claro ser o seu papel, e de outros da sua geração, o estabelecimento de um combate apenas no plano das ideias.

Essa postura que parece atender a interesses distintos e ao mesmo tempo não servir plenamente a nenhum deles tem as suas raízes num movimento mais amplo de defesa da liberdade. Não se busca aqui justificar as escolhas de Candido, ou endossá-las de nenhuma maneira, mas compreendê-las e dar sentido ao que sob um olhar apressado parece paradoxal. Precisamos, dessa forma, nos voltar para o cenário de alguns anos que antecederam a produção desse artigo, e assim perceber como ele propiciou o estabelecimento das convicções que Candido apresenta em

Plataforma da Nova Geração.

Assim como muitos outros intelectuais paulistas, Candido nesse momento se via imerso em um movimento de “politização da cultura”.22 As repercussões da Revolução Russa em 1917 promoveram ao longo dos anos de 1920 uma significativa liberdade criadora na arte e na literatura, o que foi tomado por Trotsky como uma possibilidade – nunca imposição – de aplicação dessas áreas à política.

21 A noção de “aventura do espírito” é desenvolvida por Georg Simmel ao tratar de filosofia como um

conceito. Consciente dos desafios postos na relação sujeito-objeto, Simmel acredita ser necessária uma certa “atitude”, ou seja, uma “disposição espiritual” para se debruçar sobre os mais variados objetos e assim atrelar procedimentos e resultados no processo de construção filosófica. Ver Georg Simmel “Das Abenteuer” (The Adventurer), In: Phiosophische Kultur.

Gesammelte Essays ([1911] 2nd ed.; Leipzig: Alfred Kroner, 1919). Tradução para língua inglesa

de David Kettler. Ainda sobre o sentido de “aventura” em Georg Simmel, ver Leopoldo Waizbort.

As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Ed.34, 2000.

22 Ver entrevista com Antonio Candido; In: FERREIRA, Marieta de Moraes Ferreira e FORTES,

Alexandre (org.). Muitos Caminhos, uma estrela. Memórias de Militantes do PT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2008, p.52.

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Entretanto, em 1934, já no tempo do stalinismo, houve o Congresso de Karkov, que definiu o realismo socialista e buscou subordinar a literatura à política. Isso significava que artistas e escritores não apenas deveriam tratar de temas revolucionários, mas também demonstrar apoio ao regime. Apesar de admitir ter cedido a essa postura no começo de sua produção crítica, Candido mais tarde buscou dar vazão à liberdade criadora. Para escritores e artistas politizados estava posto o dilema: atender apenas a si mesmo ou a um projeto de reforma da sociedade. Antonio Candido e seus pares desde muito jovens adquiriram a convicção de que o fundamental seria “reconhecer a absoluta liberdade criadora e só incorporar a dimensão social e política se ela corresponder a um impulso interior.” O que se viu foi que, como “massa compacta”, esses intelectuais se opuseram a qualquer manifestação de coibição da liberdade de expressão, o que no Brasil se dava especialmente como um mecanismo de combate à repressão do Estado Novo. O ponto é que essa liberdade criadora não poderia ser cerceada por nenhum pensamento político, ainda que esse fosse militante e contrário à ditadura que se instalava e a correntes de pensamento de um estrato dominante.

Dessa forma, Candido compunha um grupo de intelectuais que se posicionava em favor de um socialismo livre, mas que acima de tudo encarava a liberdade como um direito humano, não burguês. Assim, Candido abraçava a liberdade como princípio, independentemente do tipo de conflito de classe ou ideológico que fosse decorrente disso. Isso significava dar ao artista, ao escritor, e ao ativista político, a possibilidade de elaborar suas próprias representações da sociedade sem subordiná-las a um conjunto pré-determinado de valores, significados e estratos sociais. A respeito das possibilidades promovidas pelo exercício da liberdade criadora Candido afirma:

O fato é que a arte e a literatura levaram, por exemplo, Marx a valorizar o reacionário monarquista Balzac e não o socialista Eugène Sue, porque o primeiro, a despeito de suas ideias políticas, era capaz de representar a essência da realidade, enquanto o segundo fazia apenas declaração humanitária de segunda ordem. A liberdade de criação permite ao artista e ao escritor formularem a sua mensagem, e esta nos introduz em níveis

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redentores de humanização.23

Vale lembrar que na ocasião da publicação do artigo Plataforma da Nova

Geração, em 1943, Candido já atuava como segundo secretário na primeira diretoria

da seção de São Paulo da Associação Brasileira de Escritores (ABDE)24, cuja fundação25 no Rio de Janeiro, em 1942, tinha como propósito justamente combater o Estado Novo. Seus conflitos dentro da ABDE residiam nessa dualidade entre militar contra um regime ditatorial e dar suporte ao princípio de liberdade ainda que ele se opusesse à sua própria causa.

Há um outro ponto que se deve destacar acerca desse impulso de politização da cultura, já num contexto essencialmente local – a presença de professores franceses na Universidade de São Paulo alimentando o interesse pelas discussões políticas. Um desses acadêmicos, em especial, parece ter despertado o espírito de Candido para um engajamento intelectual de natureza mais combativa e imediata: o Professor Jean Maugüé.

Jean Maugüé era um professor de apenas trinta e um anos quando veio para o Brasil, em fevereiro de 1935. Sua viagem tinha como propósito substituir o compatriota Etienne Borne, primeiro professor responsável pelos cursos de Filosofia na recém-fundada Universidade de São Paulo. Quando convidado a assumir as diretrizes do ensino de Filosofia na Faculdade, Maügué articulou a máxima da

23 Ver entrevista com Antonio Candido. op.cit., 2008, p.52.

24 Nesse momento o presidente da Associação Brasileira de Escritores era Sergio Milliet, a quem

Candido se remete no artigo “A Plataforma da Nova Geração” como uma referência intelectual. A ligação com Milliet se faz evidente quando Candido faz menções à sua inteligência analítica, à sua crítica de arte e de livros, à sua orientação sociológica e aos estudos sociais que empreendeu. Nesse artigo ele afirma que Milliet, de todos os Vinte-e-Dois, foi aquele que “mais agudamente representou a crítica e as tendências de sistematização intelectual” e quem de fato estabelece a ponte entre a geração dos “maiores” e a sua própria. Ver Antonio Candido. op.cit., 1943, p.4.

25 Além de Antonio Candido, a Associação Brasileira de Escritores tinha entre os seus fundadores

Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Astrojildo Pereira, Sérgio Milliet, e os diversos escritores consagrados do momento, como José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Mario de Andrade, Raquel de Queiroz, Aníbal Machado e Monteiro Lobato. Ver Ana Amélia de Moura Cavalcante. Associação Brasileira de Escritores: dinâmica de uma disputa. Varia hist., Belo Horizonte, v. 27, n. 46, pp. 711-732, Dec. 2011. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0104-87752011000200016&lng=en&nrm=iso>. Access on 10 June 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-87752011000200016.

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filosofia kantiana - “filosofia não se ensina, quando muito ensina-se a filosofar” - a hábitos universitários franceses. Na chave kantiana essa assertiva significava que o Professor Maügué não propunha um ensino de Filosofia pautado num objeto que se encerrava em si mesmo e num conjunto de conteúdos teóricos abstratos, descolados da realidade, mas sim realizado por meio de um caráter reflexivo, abandonando manuais e diretivas preexistentes. O Professor acreditava que o ensino de filosofia deveria ser histórico, indicando que o caminho de se ensinar a filosofar seria o retorno aos textos por eles mesmos, em especial os clássicos.

Maügué parecia de alguma maneira espelhar a mudança no gosto filosófico francês que despontara nos anos que antecederam a Segunda Grande Guerra, a exemplo dos colegas de École Normale, Jean-Paul Sartre e Raymond Aron. Ele também se propôs a levar para seus estudantes na USP o ensino de autores até então “marginais”, como Marx e Freud, o que indicava inovação e ousadia em muitos sentidos. As aulas ministradas no terceiro andar do Instituto de Educação Caetano de Campos, onde funcionavam algumas secções da Faculdade, de alguma maneira rompiam, por meio da crítica e da reflexão densa, com um padrão de comportamento altamente elitizado26 e distante das mais profundas problemáticas sociais e humanas.

Recordando o Professor Jean Maügué, Antonio Candido dá o seguinte depoimento:

Para começar Jean Maugüé não acreditava muito nas instituições universitárias, nunca fez tese de doutoramento e acabou se aposentando na França como professor de Liceu. Discípulo de Alain, era um espírito extremamente livre, que tencionava principalmente nos ensinar a refletir sobre os fatos: as paixões, os namoros, os problemas de família, o noticiário dos jornais, os problemas sociais, a política. E para isso utilizava largamente reflexões e análises sobre literatura, pintura, cinema. As suas aulas eram extraordinárias como expressão e criação, sendo assistidas por várias turmas sucessivas de estudantes já formados que não conseguiam se desprender do seu fascínio. Com ele fiz cursos sobre Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Max Scheller, Freud; de todos se desprendia uma espécie de inspiração que aguçava o senso da vida, da arte, da literatura,

26 Grande parte do tempo desses estudantes era dedicado às matinês dançantes no Hotel

Esplanada, junto com os professores estrangeiros, e a encontros para chá na Confeitaria Vienense. Ver Paulo Arantes. Certidão de Nascimento. Novos Estudos CEBRAP, nº 23, março de 1989, p. 143.

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da história, dos problemas sociais.27

A vocação crítica que se precipitava no ensaísmo do professor francês encontrava solo fértil na reforma de inteligência nacional estimulada pelo Modernismo. Enquanto forma literária, a crítica se tornou pedra de toque para o espírito filosófico, o qual ganhou corpo e se refugiou num grupo de alunos encantados pelo Professor Maügué: os “chato boys”28 de Clima. Formados em Filosofia e Ciências Sociais, todos tiveram confirmada e estimulada a vocação para a crítica que marcou essa “nova geração” de intelectuais uspianos, à qual se referia Antonio Candido no artigo de 1943. Cabe aqui dizer que a obra de Heloísa Pontes − “Destinos Mistos”, dedicada às relações pessoais e produções acadêmicas cultivadas a partir de encontros e acasos que se deram na Universidade de São Paulo na década de 1940 − foi tomada como um estudo de referência para esta pesquisa, na medida em que nos ajuda a reconstruir o universo vivido pelo jovem Candido no momento de produção de Plataforma da Nova Geração.

Retomando aqui esse artigo dois pontos destacados por Antonio Candido ainda carecem de atenção: o papel do intelectual e o papel do indivíduo. Sobre a afirmação de que não competia “à nova geração” “assumir cor política qualquer e descer à rua, clamando por ação direta”, e sim “esclarecer o pensamento e pôr ordem nas ideias”, podemos aqui aventar como hipótese não apenas ser essa a sugestão de uma orientação de conduta, mas também o papel que o autor, nesse momento contando apenas vinte e cinco anos, esperava que a História atribuísse àquele grupo de críticos enquanto intelectuais.

No que tange ao indivíduo, apesar de ter afirmado não saber qual era “o”

27 Sobre o trabalho teórico. Trans/Form/Ação, Marília, v. 1, p. 9-23, 1974. Available from

<http://www.scielo.br/scielo.phpscript=sci_arttext&pid=S010131731974000100001&lng=en&nrm=i so>. Access on 09 Oct. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31731974000100001.

28 Oswald de Andrade apelidou os integrantes do Grupo Clima de “chato boys” por acreditar ser

demasiadamente séria a empresa crítica a que se propunham os textos publicados pelo grupo. Em depoimento, Ruy Coelho faz reservas em relação a esse apelido: “Relendo o que Paulo Emílio escreveu, no entanto não encontro tom de sisudez circunspecta. Ao contrário, mantém-se num registro coloquial, em que abundam os galicismos, não só léxicos como mesmo de sintaxe. A seriedade está no nível de abordagem e na riqueza conceitual que o inspira”. Ver depoimento de Ruy Coelho. op. cit., 1986, p.115.

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dever específico da sua geração, Candido apontava que todo cidadão de fato tinha um “dever precípuo”, do qual o indivíduo não deveria se eximir independentemente de ser um intelectual: a luta pela liberdade e pela supressão das contradições sociais. Esse dever, segundo Candido, não só precisava ser desempenhado pelo indivíduo no seu papel de cidadão, como também deveria o ser sem a presença da faceta do intelectual, evitando assim que o narcisismo do escritor ganhasse fôlego indevido e fizesse uso da oportunidade para mostrar-se. Ainda que a notoriedade do escritor pudesse de alguma maneira fazer com que sua militância tivesse maior alcance patriótico, Candido mantinha uma posição bastante firme em relação à distinção desses dois papéis:

O que eu acho, porém, é que, quando chamado, o indivíduo vai ser soldado com ou sem farol, sendo mais decente ir sem, e que não consiste propriamente nisso a atitude do escritor. Talvez do artista de cinema ou de radio, - isto é, daquele que vive em função do “fan”. Para o escritor, o caso é diferente. Suas obrigações são outras.29

Essa mesma preocupação demonstrada por Antonio Candido em relação à prática política de um intelectual já havia sido partilhada por Max Weber, a quem podemos nos voltar para compreender de maneira mais detida um posicionamento que ultrapassa os limites dos valores pessoais e preferências particulares. A resistência à conciliação entre o papel do acadêmico e o papel do militante encontra aporte no cientificismo da compreensão dos fenômenos políticos, artísticos e sociais da civilização, uma vez que, nessa perspectiva, espera-se que o acadêmico se isente de apresentar posições pessoais, e se dedique a aparatar seus ouvintes com instrumentos de análise científica até que eles se encontrem em condição de tomar posições em função de seus próprios ideais.30

Para além disso, trata-se do entendimento de que o acadêmico não deve se valer da desigualdade de posições que se verifica num espaço que, ao passo em

29 Ver Antonio Candido. op.cit.,1943, p.4.

30 Por mais que conteúdos e abordagens selecionados deixem por eles mesmos transparecer certas

tendências políticas e espirituais particulares do profissional acadêmico, o que se deve procurar, segundo Weber, é a probidade intelectual e a apresentação das mais diversas facetas do objeto analisado. Ver Max Weber. op.cit., 1967,pp. 38-40.

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que concede a ele o poder do discurso, subjuga seus ouvintes à obrigatoriedade do silêncio. A sala de aula, portanto, assim como qualquer outro ambiente em que o rigor do cientificismo prevaleça, é preservada por Weber, e por Candido, da prática política deliberada:

O professor que sente a vocação de conselheiro da juventude e que frui da confiança dos moços deve desempenhar esse papel no contato pessoal de homem para homem. Se ele se julga chamado a participar das lutas entre concepções de mundo e entre opiniões de partidos, deve fazê-lo fora da sala de aula, deve fazê-lo em lugar público, ou seja, através da imprensa, em reuniões, em associações, onde queira. É, com efeito, demasiado cômodo exibir coragem num local em que os assistentes e, talvez, os oponentes, estão condenados ao silêncio.31

Nesse momento essa preocupação e cuidado de Antonio Candido se viam em espaços outros que não as salas de aula da Universidade de São Paulo. Candido era Redator-Chefe e responsável pela seção de crítica literária da Revista Clima, da qual foi fundador, em 1941, junto com Lourival Machado, Alfredo Mesquita e Décio de Almeida Prado. Desde o princípio da Revista o grupo fundador havia decidido que não seriam publicados artigos tratando de política, fosse ela de caráter nacional ou internacional. Clima publicou ensaios, críticas e poesias intelectuais da mais variada procedência ideológica, produzidos pelos escritores fixos da Revista ou por colaboradores diversos, desde que a norma de abstenção política, ou seja, da já referida liberdade, não fosse contrariada. Essa orientação foi rigorosamente seguida até o número 10 da Revista, mas isso nunca significou que até então os membros do Grupo Clima não tivessem suas próprias percepções e posicionamentos políticos. O que se deu foi que com a entrada no Brasil na Segunda Guerra, em 1942, as tensões se tornaram mais intensas. Finalmente era hora de “deixar as agulhas de lado”, ou seja, de adotar um posicionamento claro frente aos acontecimentos políticos e sociais que se desenrolavam e de mobilizar toda uma teia social para o engajamento em um projeto de organização da sociedade que de fato refletia os desejos de maior liberdade e equidade entre os indivíduos.

Em 25 de agosto de 1942, uma declaração publicada no número 11, pensada

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e concebida por Paulo Emílio Salles Gomes, foi assinada por toda a equipe da

Revista Clima e publicada com o intuito de publicizar que a participação política do

grupo se apresentava agora como um imperativo ideológico. Clima se posicionava claramente contra o fascismo, contra a participação do Brasil na Guerra, e também rejeitava qualquer associação a movimentos socialistas e comunistas promovidos pelas Internacionais:

Para nós, moços intelectuais, e logo soldados, que assinamos esta declaração, a guerra entre o Brasil, de um lado, e a Alemanha e a Itália do outro, é inseparável da guerra que se processa em escala internacional e ideológica contra o fascismo. Pode parecer desarrazoado precisarmos destacar esta evidência. Acontece, contudo, que ficamos surpresos ao ouvir o discurso dum professor da Faculdade de Direito, no comício do Largo de São Francisco, no qual foi expressa a convicção de que o Brasil deverá fazer esta guerra “sem contar com os seus aliados”, por mais fortes que sejam, nem com a amizade desses aliados, por mais sincera que seja”...A ênfase excessiva, dispendida nessa oração com a nossa posição de país latino e de formação histórica católica, também nos parece deslocada, pois o fato de ser um dos nossos inimigos a Itália – país bem mais latino e historicamente mais ligado ao catolicismo do que nós mesmos – poderia dar margem a confusões que devem ser evitadas.

Fundamentalmente, a guerra de que agora participamos é uma guerra contra o fascismo.

[…]

Temos a certeza de que a quinta coluna consciente ou inconsciente, diante dessa nossa posição enérgica, lançará mão de uma de suas armas favoritas: dizer que somos comunistas ou que fomos manobrados por comunistas, como já foi feito por um outro professor da Faculdade de Direito, referindo-se ao comício promovido pelos estudantes de sua própria escola na Praça da Sé. Protestamos desde já, do fundo do nosso patriotismo, contra esta manobra desonesta, que consiste em caluniar os soldados brasileiros e apresentar problemas inatuais, para que a atenção do governo e do povo do Brasil seja desviada dos problemas atuais. Poderíamos, mesmo, acrescentar que, para nós, o socialismo ou o comunismo das internacionais numeradas é hoje uma questão historicamente ultrapassada, e que a admiração de todo o mundo pelo gigantesco esforço de guerra do povo russo nada tem que ver com marxismos, leninismos, trotskismos ou stalinismos acadêmicos ...]32

32 Assinaram essa declaração: Antonio Candido de Mello e Souza, Paulo Emilio Salles Gomes,

Lourival Gomes Machado, Alfredo Mesquita, Antonio Branco Lefèvre, Decio de Almeida Prado, Marcelo Damy de Souza Santos, Roberto Pinto de Souza, Ruy Galvão de Andrada Coelho. Ver “Declaração”. In: Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense; [Rio de Janeiro]: EMBRAFILME, 1986, pp.72-74.

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Os autointitulados “soldados” se posicionavam contra toda a movimentação política arquitetada pelo Estado Novo e também contra as mais variadas correntes de pensamento de esquerda ligadas a regimes ou Internacionais que de maneira mais radical propunham novos arranjos sociais. Afirmavam-se contra tudo o que acreditavam estar distante de um ideal de justiça social, diferenciavam-se dos comunistas e de todas as formas de socialismo que não fossem livres, mas não manifestavam um posicionamento efetivo sobre o que de fato os movia.

Em função da repercussão controversa dessa declaração, Paulo Emilio redigiu um “Comentário” para o número seguinte33 – texto que foi publicado sem assinatura – revelando muito da essência da sua própria experiência política e afirmando a posição de Clima frente aos acontecimentos de seu tempo. Destaca-se o trecho selecionado:

Num plano, o mais geral possível, acreditamos em dois princípios teóricos fundamentais que são defendidos pelo conjunto das Nações Unidas. Primeiro – a igualdade não só política, mas econômica de todos os homens. Segundo – o respeito devido à personalidade humana, o direito da pessoa humana à liberdade.

Para nós, filhos do Ocidente, esses dois pontos fundamentais foram uma conquista devida ao cristianismo como valores consequentes da teoria da alma. No drama histórico, que se desenvolve nas raízes e no coração da Idade Média, através a Renascença, a Reforma, as Revoluções Inglesa, Americana, Francesa, Bolivarianas, Mexicana e Russa, até nossos dias, encontramos uma continuidade no que se refere à validez histórica, mais ou menos eficiente, dos princípios de liberdade e igualdade. No fascismo – que se opõe a esses dois princípios, na teoria e na prática, pelas suas castas de super-homens e pelo esmagamento da personalidade humana – no fascismo denunciamos o perigo de ruptura histórica da civilização ocidental. Denunciamos o cesarismo.

Os princípios de igualdade e liberdade, transformados frequentemente pela história em antinomias, acham-se no momento representados, ora um com mais destaque, ora outro com mais ênfase, pelas três nações antifascistas mais enérgicas: Estados Unidos, Inglaterra e Rússia. A união dos três países no quadro das Nações Unidas para o esforço de destruição do fascismo e de reconstrução posterior é um dos motivos que nos permitem esperar que o mundo melhor que desejamos construir se baseie numa síntese e numa efetivação final dos princípios de igualdade e liberdade. Um mundo em que a igualdade baseada numa estrutura econômica planificada não tenha como condição o aniquilamento da liberdade. Um mundo em que

33 O número 12 da Revista Clima somente foi publicado em abril de 1943. Esse espaçamento entre

as edições se deveu à falta de meios para publicação da revista. Ver depoimento de Antonio Candido: “Informe Político”. In: Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense; [Rio de Janeiro]: EMBRAFILME, 1986, p.58.

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a liberdade não precise estar necessariamente condicionada pelo sistema capitalista de produção. (...)

Quanto ao Brasil, nos sentimos orgulhosos de ver o nosso país ocupar, ao lado da ardente nação mexicana, o papel de líder dos povos da América Latina na guerra contra o fascismo. E achamos que a guerra não só deve ter sido declarada, mas que também deve ser feita.34

Observa-se a afirmação dos princípios de igualdade e liberdade como essenciais para o desenvolvimento histórico das sociedades ocidentais. Mais do que a afirmação em favor de qualquer regime político-econômico, o Grupo Clima atestava em favor de direitos da personalidade humana e se opunha ferozmente a qualquer forma de organização que impedisse o acesso a esses direitos. O fascismo configurava essa ameaça concreta e presente, o que levou Candido, Paulo Emilio e os outros colaboradores fixos da revista a assumirem pela primeira vez, enquanto corpo editorial, uma posição política pública e contrária a uma determinada forma de governo.

Em depoimento dado anos mais tarde, Antonio Candido afirmou que esse documento foi uma de suas “bússolas políticas”35, imputando a relevância dessa publicação a três pontos centrais: o primeiro se concentrando no princípio de que as posições progressistas poderiam se unir em torno dos ideais de liberdade e igualdade expressos de maneiras diversas, já que esses elementos seriam constituintes das essências das mais variadas formas de democracia e de socialismo. O segundo ponto seria a defesa de um desinteresse pelo internacionalismo, o que indicaria que a luta pela liberdade e pela igualdade deveria se dar no âmbito de cada nação, respeitadas as conjunturas de cada forma de governo e colocando um fim às Internacionais comunistas e socialistas. Por fim, o “Comentário” deixava clara a posição de que o “marxismo era componente fundamental na busca desta nova posição, mas que a sua fase ortodoxa e dogmática estava ultrapassada; daí a necessidade de adaptá-lo em sentido

34 Ver “Comentário”. In: Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense; [Rio

de Janeiro]: EMBRAFILME, 1986, pp.80-81.

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