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O estado da arte dos quadrinhos

AS DESVENTURAS DOS QUADRINHOS NO UNIVERSO ESCOLAR

3.1 O estado da arte dos quadrinhos

Se alguém diz que estuda cinema, a reação que provoca nos seus interlocutores é, quando não francamente receptiva, no mínimo sem surpresa, afinal, trata-se de um campo de estudos hoje amplamente reconhecido. Assim como com

91 Expressão tomada do filósofo C. D. Broad: propriedades que emergem num certo nível de complexidade, mas não existem em níveis inferiores. (Apud CAPRA, F. A teia da vida, p. 40).

relação a quem estuda a literatura, outro modo de contar histórias...92 Mas e se alguém confessa (a troca do termo é proposital) que estuda histórias em quadrinhos, como costumam reagir os interlocutores?

O tom das palavras do colunista Diego Assis, ao fazer a apresentação do livro do professor Waldomiro Vergueiro, dá uma idéia de como costuma ser essa reação.

Os quadrinhos vão à escola

“Hoje vamos deixar o Eric Hobsbawm de lado. Por favor, abram seus quadrinhos do ‘Astérix’ na página 25”. Loucura? Não. Já era mais do que hora de as HQ serem reconhecidas como material de estudos obrigatório, do primário à faculdade. O professor da USP Waldomiro Vergueiro, que dá aula de (sim!) histórias em quadrinhos para futuros jornalistas e editores, vem fazendo isso há tempos e lança agora o livro “Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula”.93

Nesse excerto, temos várias presenças enunciativas recalcadas nas palavras do resenhista, que dialoga com os discursos das instâncias que coabitam o espaço de que o seu texto pretende fazer parte. E com quem conversaria o autor?

Em primeiro lugar, a ambigüidade do título deixa já entrever a luta pelo estabelecimento de uma posição política: ir à escola significa ter direito de acesso (na condição de cidadão, portanto, não de invasor ou pária) a um espaço a que não se tinha acesso antes, que era interditado. O título anuncia um fato no limiar de uma legitimidade pretendida. Essa candidatura vem explicitada logo nas primeiras linhas do texto citado: “Já era mais do que hora de as HQ serem reconhecidas (...)”.

Eis aí o ponto de partida de qualquer pretensão social: o reconhecimento da igualdade de direitos na diversidade econômico-cultural. É a lição que tiramos da atitude dos trabalhadores ingleses quando da criação da Sociedade Londrina de Correspondência. A questão fundamental que se antepunha a quaisquer outras era a condição política para ter legitimidade no pleito que faziam:

No primeiro mês de sua existência, a sociedade, por cinco noites seguidas, debateu a questão: ”Nós, que somos artesãos, lojistas e artífices mecânicos, temos algum direito a obter uma Reforma Parlamentar?”, tomando-a “de todos os pontos de vista de que somos capazes de apresentar o tema a nossas mentes”.

Decidiram que tinham tal direito.94 (grifo meu)

Trata-se aqui de desfrutar da igualdade política – assegurada pelo simples pertencimento a uma cultura – para manifestar plenamente sua visão de mundo em

92 Não que não existam reações negativas (a arte, por extensão o artista, de modo geral, ainda é associada à ociosidade), mas o embate dialógico já ocorre num patamar em que as instâncias em confronto se equivalem em termos de hierarquia cultural (ou, dito de outro modo, em termos da economia cultural).

93 ASSIS, Diego. Os quadrinhos vão à escola. Folha de S. Paulo, 09 ago. 2004, folhateen, p. 12.

94 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. p. 16.

formações discursivas próprias (linguagem, temas e valores), que devem ser assim aceitas como lídimas representantes dessa cultura, e não tratadas como corruptelas ou subprodutos muitas vezes indesejáveis. É esse sentimento que vemos expresso na seguinte passagem:

Em 1956, em Paris, um jovem diretor de cinema, ainda desconhecido internacionalmente, realizava um belo documentário sobre a Biblioteca Nacional da França: Toute la mémoire du monde. Para surpresa de muitos, entre os clássicos da literatura francesa e mundial apareciam algumas histórias em quadrinhos. Nome do diretor do documentário: Alain Resnais, que depois se tornaria famoso com Hiroshima, meu amor (1959) e Ano passado em Marienbad (1961). O mais curioso é que aqueles quadrinhos – entre os quais o popular Mandrake, de origem norte-americana – pertenciam ao próprio Resnais, que achava um absurdo o fato de não encontrá-los na principal biblioteca de seu país.95

Mas ir à escola pode também significar, embora seja muito pouco provável que tal leitura venha a ser feita, que os quadrinhos vão freqüentar o espaço de credenciamento social em que a escola se converteu, não obstante os resultados obtidos ao final desse estágio. Nesse sentido, os quadrinhos iriam “aprender” as normas de conduta e adquirir legitimidade política para poderem expressar seus próprios julgamentos no espaço oficial da cultura.

Outro aspecto a destacar é a comparação entre o potencial educador de Hobsbawm e o dos quadrinhos. Trata-se de ocupar, não qualquer posição no eixo sintagmático da relação de Hobsbawm com o ensino de História, mas o lugar central, o de uma autoridade reconhecida. Hobsbawm, ícone de uma determinada cultura, é – pode ser – comutado pelos quadrinhos. Ambos fariam parte do eixo paradigmático que determina quem pode ocupar determinados lugares (in absentia) em determinadas relações (in praesentia)96. Ao ocupar lugar tão importante, o ocupante revela (ou adquire, se não as tiver) as características da cultura que esse lugar exige de seus ocupantes; torna-se igual aos demais elementos desse eixo paradigmático;

em suma, é aceito. Passa a gozar, portanto, das mesmas prerrogativas culturais. A pergunta retórica (“Loucura?”) ilustra a reação mais comum que se espera frente a uma tal proposição, e é a isso que o resenhista passa a responder.

É relevante também nesse embate dialógico – que não deixa de refletir um conflito interno ao gênero – o fato de que o resenhista usou como referência (para

95 CIRNE, Moacy (org.). Literatura em quadrinhos no Brasil: acervo da Biblioteca Nacional. p. 8.

96 Os termos sintagmático e paradigmático foram tomados de empréstimo da lingüística. Sintagmático se refere às associações que podemos realizar para produzir frases. É o eixo horizontal das combinações de unidades que contraíram determinadas relações. Paradigmático é o eixo vertical das relações virtuais em que entram as unidades suscetíveis de comutação nas frases e que mantêm a coerência gramatical. (DUBOIS, Jean et alii.

Dicionário de lingüística, p. 206). No caso da lingüística, são unidades que pertencem ao domínio da língua.

No sentido que queremos empregar aqui, pertencem ao domínio da cultura.

aumentar seu poder argumentativo) uma publicação que já goza de amplo prestígio fora do âmbito específico dos quadrinhos. Não é qualquer quadrinho, mas Astérix, uma unanimidade no gênero. Isso aponta para o reconhecimento tácito de que não é qualquer obra que pode representar os quadrinhos, mas a que atende alguns critérios de validação cultural, relacionados a valores de uma cultura superior, que se reveste de traços que a diferenciam de uma outra, considerada inferior. À frente, vamos reconhecer alguns desses traços.

Por fim, a expressão “(sim!)” – ao mesmo tempo extravasada pela exclamação, que reafirma o caráter intencional do professor Vergueiro (ou seja, ele acredita de fato no que faz), e contida pelos parênteses, porque atendendo uma interpelação que, embora velada, seguramente está presente no discurso – dá o tom final de como costuma ser a reação aos quadrinhos fora do âmbito em que eles se constituíram. A expressão “(sim!)” está a enfatizar que é para acreditar que alguém do porte de um professor universitário, num espaço destinado aos grandes temas (universidade) realiza uma das mais nobres ações humanas (ensinar) tendo como referência principal um objeto de origem discutível. Por trás dessa afirmação há um contradiscurso à idéia de que estudar os quadrinhos é ocupar-se de algo sem densidade, superficial (daí a idéia de “leve” a que sempre são associados), destinado ao lazer; ou seja, à idéia de que o profissional assim ocupado estaria desperdiçando seu tempo, ao invés de ocupar-se com coisas mais úteis.

Uma expressão que aparece na seqüência do texto citado reforça a existência do preconceito: “Só não vai entender o recado quem não quer”. Com isso, o autor está a dizer que o livro de Vergueiro, pelas suas características, é prova de que os gibis são “gente fina”.

Nesse sentido, temos aí um texto de resposta a um enunciado que, embora não objetivado, o antecede.

A questão que vai nos ocupar neste capítulo é: o que permite a antecipação das objeções que o resenhista realiza? Ele está se dirigindo a interlocutores fora do texto ou às vozes que vêm constituindo ao longo da história o discurso que ele próprio é capaz de enunciar e, nesse sentido, estaria respondendo a objeções que são dele próprio, que ele tem de admitir para expurgar?

Para lograr obter esse intento, será esboçada uma categoria aqui chamada de

“vinculação”, para caracterizar os pólos discursivos dos textos que falam sobre as HQ ou que as usam como referência para demarcar sítios culturais. Essa categoria é composta pelos fatores que teriam presidido a interpretação da HQ quando de sua

constituição como um campo específico (mas não ainda um domínio de objeto) e se agravado com o advento de novas condições culturais (a cultura de massa, por exemplo, no caso dos quadrinhos).