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O período de ouro das adaptações de obras literárias

AS DESVENTURAS DOS QUADRINHOS NO UNIVERSO ESCOLAR

3.6 O período de ouro das adaptações de obras literárias

A associação dos quadrinhos com a educação não é de hoje, tendo sido seu potencial educativo reconhecido já na época das gravuras (como as de Épinal, na França, no século XVIII), antes mesmo de se estabelecerem com o formato que hoje apresentam. Especificamente com o ambiente escolar, contudo, as relações sempre foram de desconfiança, atingindo mesmo, em alguns períodos da história, o nível de rejeição intransigente dessa convivência, principalmente a partir da década de 50 do século XX, motivada pela publicação, em 1954, do livro "Seduction of the Innocent", do psiquiatra alemão radicado nos EUA Fredric Wertham.

Fundamentado em resultados de pesquisas de metodologia questionável, Wertham acusava os quadrinhos de induzir as crianças a comportamentos tidos como negativos do ponto de vista educacional (criavam mentes preguiçosas) e mesmo social de modo geral (induziam à violência).

Com isso, teve início em nosso país uma "pressão por parte de professores que acusavam os gibis de deseducativos, de causarem 'preguiça mental' e 'falarem' em mau português"121. Nessa época, um dos itens do Código de Ética dos Quadrinhos, elaborado por um grupo de editores brasileiros de revistas de histórias

120 ARAÚJO, B. L. D. de. Tese discute papel dos quadrinhos de humor no ensino (entrevista).

http://blogdosquadrinhos.blog.uol.com.br. Acesso em 14 set. 2006.

121 MOYA, A. & D'ASSUNÇÃO, O. As adaptações literárias em quadrinhos. p. 49.

em quadrinhos, estipulava que "as histórias em quadrinhos devem ser um instrumento de educação, formação moral, propaganda dos bons sentimentos e exaltação das virtudes sociais e individuais"122.

Mas se no interior da escola havia forte resistência à entradas dos gibis, por conta também de pesquisas que os apontavam como um fator nocivo à formação dos jovens, o contexto editorial, ao contrário, se beneficiava de um significativo número de publicações, resultado da apropriação de um importante – e já naquela época problemático – conteúdo escolar: a literatura. Numa empreitada arrojada, de risco, em virtude da forte influência das pesquisas de Wertham, que desencadeara uma perseguição implacável aos quadrinhos, Adolfo Aizen, um dos responsáveis pela difusão dessa mídia no Brasil, para desfazer a idéia de que os quadrinhos eram culpados de tudo quanto se atribuía a eles (e, claro, manter o filão que já estava aberto com a tradução de obras literárias quadrinizadas importadas dos EUA), decidiu investir numa coleção – as Edições Maravilhosas – que promovia a adaptação de romances brasileiros.

Durante o período de ouro dessas adaptações (entre o final dos anos 40 e o início dos anos 60), chegaram a ser publicadas em torno de 30 adaptações de obras literárias por ano, sem contar as edições especiais de história do Brasil e vidas de personagens ilustres. José de Alencar, José Lins do Rego, Jorge Amado e, mais tarde, Gilberto Freyre, entre muitos outros, tiveram obras suas transpostas para os quadrinhos. Sobre esse boom editorial, assim se manifestam Moya e D'Assunção: "As revistas, inclusive, eram adotadas em algumas salas de aula, desfazendo o preconceito que poderia haver contra os quadrinhos. Ainda assim, professores e professoras chegaram a confiscar as revistinhas dos alunos em classe e queimá-las no recreio"123.

Uma decisão governamental, contudo, criou empecilhos à continuidade do projeto. Como a produção das quadrinizações era um processo caro (era preciso remunerar os autores vivos ou herdeiros de obras que ainda não haviam caído no domínio público, pagar redatores para roteirizar os romances e, claro, os desenhistas e capistas), o que compensava era o custo baixo do papel de imprensa. Quando Jânio Quadros tirou os subsídios a esse tipo de papel, o projeto ficou economicamente inviável.

Circunscrito o momento histórico, cabe ressaltar algumas características das obras produzidas que têm relação com o foco desse capítulo, qual seja, perceber o

122 VERGUEIRO, W. et al. Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. p. 14.

123 MOYA, A. & D'ASSUNÇÃO, O. As adaptações literárias em quadrinhos. p. 52.

lugar dialógico reservado às histórias em quadrinhos no campo da cultura e o papel que a escola desempenhava na constituição de um discurso redentor. É para chamar a atenção para a força do discurso escolar que apontei, ao anunciar esse subcapítulo, tratar-se de submissão e ao mesmo tempo de estratégia logística de sobrevivência.

Tanto é assim, que, ao final de cada obra de transposição, a editora fazia constar o seguinte texto: "As adaptações de romances ou obras clássicas para a EDIÇÃO MARAVILHOSA e ÁLBUM GIGANTE são apenas um 'aperitivo' para o leitor. Se você gostou, procure ler o próprio livro, adquirindo-o em qualquer livraria. E organize a sua biblioteca – que uma boa biblioteca é sinal de cultura e bom gôsto".

Devido ao preconceito de que eram alvo os quadrinhos, os adaptadores procuravam não inovar muito quando faziam a versão de alguma obra consagrada da literatura. A estratégia era manter muito texto, ficando os desenhos e a transposição em segundo plano. Percebe-se, nessas adaptações, a preocupação mais com o aspecto literário (e a presença do texto é uma evidência disso) que com as possibilidades imagísticas dos quadrinhos. A "literalidade" (não confundir com literariedade) dos desenhos criava descompassos nas vinhetas. Nas cenas da Figura 08, o texto descreve, com palavras, o que as imagens mostram, embora o ângulo não nos permita ver em que local a lança foi cravada. É o texto que esclarece isso, talvez em virtude da preocupação em não mostrar detalhes das cenas de sangue.

Figura 08124

Por uma questão de parcimônia na distribuição do texto, a descrição do que é mostrado no quadro seguinte é feita ainda nesse quadro. Um outro aspecto a salientar é com relação à preocupação de não mostrar com detalhes cenas sangrentas. Tal

124 ANTOLOGIA DA BANDA DESENHADA. Ubirajara. p. 9.

preocupação assenta num reducionismo da força evocativa da escrita: se não vejo, não "sinto" tanto quanto se tivesse visto.

Esse raciocínio vai de encontro ao que se reconhece como tendo sido a grande contribuição dos gregos em termos de narrativas visuais, assunto a ser tratado mais à frente: o modo de garantir o espaço de participação do leitor na constituição do ambiente narrativo. No caso da cena em questão, pode-se dizer que, em certa medida, acaba se operando o oposto do efeito que o autor esperava obter: ao não mostrar explicitamente o ferimento, ele deixa que o leitor decida de que modo e com que intensidade isso se deu, o que torna o efeito mais violento, porque a imaginação não vê limites para a definição da cena, que um desenho mais específico teria delimitado, isto é, imposto contornos que "controlariam" o leitor.

Esse efeito pode não ter se manifestado em sua plenitude no caso que expus à análise pela falta de um trabalho de criação de uma aura de tensão em torno desse combate, e a referência a ele aqui cumpre o propósito de apontar o equívoco de algumas noções que podem subrepticiamente definir nossas orientações pedagógicas.

Figura 09125 (Anexo 05)

Na adaptação de "Casa Grande & Senzala" (Figura 09), de Gilberto Freyre, as cenas não apresentam um elemento articulador que crie a idéia de articulação. É como uma pauta musical: não basta executar as notas na seqüência apresentada; é

125 In: MOYA, A. & D'ASSUNÇÃO, O. As adaptações literárias em quadrinhos. p. 43.

preciso lançar mão de uma série de recursos para garantir o momento da transformação de um som no seguinte, resguardando a sensação de continuidade de um movimento e não a de simples substituição de um por outro. No caso da obra, é o próprio livro que está sendo tematizado, mas um livro não pode ser transformado em personagem sem ser humanizado. Daí a sensação de que a obra foi apenas ilustrada, e não quadrinizada. Não há a singularização de um elemento articulador.

Um bom exemplo dessa necessidade de singularizar pode ser depreendido da obra "O edifício" (Figura 10), de Will Eisner. Quando se propôs narrar a história sobre a vida e morte de um edifício, a vida do prédio é consubstanciada nos dramas singulares por que passam as pessoas de alguma forma ligadas a ele. É no relato das transformações que sofrem essas pessoas, cujo contexto de fundo é o prédio ou suas imediações, que o autor relata as transformações do próprio prédio.

Após inúmeras transformações, que culminaram com a construção de um novo prédio, o edifício, em seu novo formato, é desenhado com as silhuetas dos personagens tomados como eixos articuladores da narrativa de sua transformação representadas em sua fachada, e novas edições dos dramas por que passaram esses personagens começam a se delinear em torno do edifício.

Figura 10126 (Anexo 06)

É importante frisar que não estou apontando as características das produções do período de ouro das adaptações com o intuito de menosprezar sua qualidade narrativa. Não se tratava de adaptações ao sabor do momento: eram trabalhos sérios, com consulta aos autores ainda vivos na época das adaptações, e a quantidade e regularidade dessas publicações dão uma idéia da aceitação que tiveram. É preciso ter sempre no horizonte de análise o fato de que são estágios de desenvolvimento

126 EISNER, W. O edifício. p. 73.

possíveis em cada época, e que constituíam avanços semióticos. Tanto que os próprios autores reconheciam o novo campo de possibilidades. José Lins do Rego, no prefácio da Edição Maravilhosa de março de 1955, que trazia adaptação de "Menino de Engenho", diz que chegou a se emocionar com a leitura, "como se estivesse num universo alheio" à sua criação. "Sinto que a história pula das páginas com um vigor extraordinário. [...] O técnico que elaborou a solução das palavras atingiu o âmago da ficção e conseguiu uma redução de iluminura"127.

A finalidade aqui é justamente salientar este aspecto: o de que se trata de estágio por que passaram os quadrinhos no desenvolvimento de modos de se desvencilharem do utilitarismo pedagógico. Adaptações mais recentes, tanto em iniciativas isoladas ("Em Busca do Tempo Perdido", de Proust, e "A Metamorfose", de Kafka, quadrinizados por Stéphanie Heuet e Peter Kuper, respectivamente) quanto em títulos de uma série (Classics Illustrated), dão mostras de um relacionamento diferente: não pretendem servir de alavanca para encaminhar à leitura dos livros de referência para a transposição, mas à cultura de modo geral, pela via dos quadrinhos.

Atestam a importância dos quadrinhos não pelas facilidades pedagógicas que possam apresentar, mas pelo que oferecem de recursos para contar histórias e estimular o imaginário dos leitores.

Aliás, esse é um aspecto que merece, por si só, um estudo aprofundado, de que não vou me ocupar nos limites desta tese. A leitura da versão quadrinizada leva de fato ao interesse pela obra de referência? Jorge Amado reconhecia que sim: "Há muita gente que tem preconceitos contra as histórias em quadrinhos e algumas me aconselharam a não permitir tal adaptação. [...] Estou plenamente satisfeito com essas adaptações e penso que elas só têm feito aumentar o público dos meus livros.

Tenho provas disso"128. Entretanto, cabe a pergunta: se a história foi bem contada nos quadrinhos, o que impulsionaria a leitura da mesma história em outro suporte narrativo? Recentemente, assistimos a um fenômeno dessa natureza. Não com relação a uma adaptação de obra literária, mas da quadrinização de um episódio histórico.

Frank Miller escreveu "Os 300 de Esparta", em que relata o episódio da batalha travada nas Termópilas entre gregos e persas, numa tentativa destes de invadir a Grécia. O exército grego era infinitamente menor, constituído, basicamente, pela guarda pessoal de Leônidas, rei de Esparta.

127 In: MOYA, A. & D'ASSUNÇÃO, O. As adaptações literárias em quadrinhos. p. 61.

128 In: MOYA, A. & D'ASSUNÇÃO, O. As adaptações literárias em quadrinhos. p. 68.

Em linhas gerais, o gibi conta a versão do historiador grego Heródoto (484–425 a.C.), em que um pequeno exército de 300 espartanos, sob a liderança de Leônidas, sustenta uma heróica resistência ao poderoso exército persa, liderado por Xerxes.

Segundo Vilela:

O principal mérito dessa história em quadrinhos de Frank Miller foi popularizar um episódio da história antiga, despertando o interesse pelo assunto em pessoas que jamais haviam lido qualquer coisa a respeito da batalha de Termópilas. Após lerem os quadrinhos, muitos leitores passaram a procurar informações sobre o assunto em outras fontes.

Exemplo disso é que um dos blogs mais acessados é o 300 blogs about Frank Miller '300' ("300 blogs sobre '300' de Frank Miller"), criado por um fã dos quadrinhos e que reúne diversas imagens e informações a respeito das lutas entre gregos e persas.129

Corroborando a vinculação corrente dos critérios de avaliação de uma obra a objetivos utilitaristas, destaque-se a afirmação de que o grande mérito desse gibi foi

"popularizar um fato histórico". Mas quero chamar a atenção neste momento às características narrativas que Miller utilizou. Em primeiro lugar, a operação de singularização que vamos tratar no próximo capítulo. Na verdade, o livro conta a história de um momento na vida de uma pessoa (Leônidas) que, por acaso, foi protagonista de um episódio histórico. Mas é ele – indivíduo – quem dá sustentação ao fato histórico e gera todo o interesse por mais informações sobre este e outros fatos envolvendo persas e gregos, coisa que o relato escolar não logrou obter.

Leônidas foi transformado no mítico herói, o que tem consciência do que deve ser feito. Novamente, temos um exemplo de envolvimento do leitor obtido pela singularização de um indivíduo articulador da narrativa.

Mas esse é um aspecto que será aprofundado mais tarde. Para as observações que interessam aos propósitos deste capítulo, destaco a seguinte passagem da fala de Vilela: "Vale lembrar que se trata de uma obra produzida com fins de entretenimento, por isso não podemos esperar que seja uma reconstituição exata dos fatos em que se baseia". Em que pese que o autor incorre em outra redução perigosa quando fala das finalidades (o entretenimento) das histórias em quadrinhos, aqui sim estaríamos diante de uma linguagem que assume sua independência.

Como mais um exemplo dessa independência, remeto à adaptação de Moby Dick, de Herman Melville, feita por Bill Sienkiewicz (Figura 11), em especial às

129 VILELA, T. Da história antiga para os quadrinhos e destes para o cinema. http://noticias.uol.com.br.

Acessada em 06 fev. 2007.

belíssimas páginas em que ele registra o momento de encontro com a baleia no primeiro dia de confronto direto.

A baleia não é apresentada pela precisão do traço, pelos seus contornos, mas pelo potencial de destruição que suas lendárias dimensões lhe conferiam, remetendo o leitor diretamente ao pavor que deviam estar sentindo os caçadores. Depois de colhido o leitor, como os marinheiros, pela baleia, é que a leitura dos quadrinhos vai deslindando o que a imagem não esclareceu e vai acalmando esse leitor-caçador até o segundo dia de confronto. Esse artifício cumpre nos quadrinhos o que a prosa encantatória de Melville cumpre na narrativa escrita. O que procurar no livro de referência? Não cumpriram ambos o mister literário?

Figura 11130 (Anexo 07)

Com este capítulo, quis demonstrar que falta às HQ a consolidação de um domínio de objeto, constituído a partir de práticas discursivas que demarquem esse objeto no campo de embate com outros objetos da cultura, sem que seja reduzido a esses objetos por força da adequação ao cumprimento de uma função no domínio de tais objetos.

130 CLASSICS ILUSTRATED. Moby Dick. p. 36–37.

Uma análise da presença dos quadrinhos nos manuais didáticos e na escola de modo geral há de demonstrar essas vinculações, que, no extremo, ao invés de constituir uma formação discursiva, diluem-nos no discurso institucional da cultura elitista e cientificista que caracteriza nosso modelo escolar. Enquanto passarem pelo detetor de valores, os quadrinhos sofrerão redução.

CAPÍTULO IV