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4 A CONSTRUÇÃO JURÍDICA DA PAULUS VLADIMIRI:

4.1 CONTEXTO POLÍTICO DO REINO DA POLÔNIA NO SÉCULO

4.1.1 O Estado polonês

Para delimitar corretamente a natureza do ius gentium observado por Paulus Vladimiri, é essencial observar-se a estrutura político-social que fundamenta seus posicionamentos doutrinários e jurídicos. Nesse sentido, a definição do Estado polonês é essencial para se traçar corretamente o fenômeno internacionalista de Vladimiri.

Assim, a Polônia do século XV constituiu-se por uma estrutura política bastante peculiar em relação àqueles seus pares europeus continentais. Por conta de sua posição geográfica e de seu íntimo contato com realidades absolutamente estranhas a qualquer região centro-europeia, o Estado polonês representa no medievo, podemos de certa maneira afirmar, uma Europa alternativa, constituída por elementos sociais dinâmicos e em ebulição, que provocaram, por meio do choque e da resistência, uma nova perspectiva de se entender o fenômeno relacional entre as autonomias políticas intra-europeias e extra-europeias.

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Por mais que as concepções de universalismo comecem a surgir no contexto do ius gentium a partir de Cicero, com a absorção das concepções estóicas, essa nova concepção universal e tolerante indicaria, de forma específica, o abandono dos “estamentos” normativos protetores da moral cristã, nos quais o direito das gentes estaria incluído, e sua concepção como norma decorrente de um ambiente relacional composto por entidades políticas, mais do que grandes unidades moralmente e localmente unitarizadas. O que passa aser relevante não é a sua condição enquanto membro de uma religião e sim sua condição enquanto parte de uma entidade política autônoma e que se relaciona com outras semelhantes.

Por conta das condições territoriais atípicas, a Polônia nunca pôde ser considerada um Estado fechado a influências externas. Diferentemente de seus pares, como Inglaterra e Espanha, que contavam com grandes estruturas naturais de defesa e isolamento, a Polônia, por estar estabelecida em uma região plana, sem significativas barreiras naturais que pudessem impedir o avanço de tropas inimigas dentro de seu território, sempre sofreu, diretamente, a influência de seus vizinhos imediatos e, muitas vezes, também daqueles de longe. Como país indefensável, outros mecanismos que não o militar deveriam ser manejados com habilidade pelas estruturas administrativas do Estado, no intento de trazer uma maior estabilidade para a região. A diplomacia e o comércio são, portanto, elementos bastante utilizados para esses fins. Porém, mais do que a geografia, elemento chave neste contexto é a religião, e sem ela não podemos entender adequadamente o fenômeno polonês. Originariamente pagã, a Polônia tornou-se um reino católico no ano de 966, fundando então seu primeiro bispado na cidade de Poznan em 968254, bispado esse diretamente sujeito à Santa Sé. Porém, por conta dos seríssimos conflitos com o Sacro Império Romano Germânico – do qual, é importante salientar, a Polônia nunca fez parte –, toda a estrutura cristã foi absorvida a partir da região da Bohemia e não diretamente das terras germânicas. Além de implicações teológicas mais profundas, como o possível alinhamento de parte da Igreja polonesa a aspirações pré-reformistas advindas do íntimo contato com teorias boêmias como o Hussismo255, essa aproximação com a estrutura

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BELCH, Stanilaus. Paulus Vladimiri and his doctrine concerning International Law and Politics. The Hague: Mouton & CO., 1965, p. 47. Ademais, cita F. Dvornik, que afirma: “The Polish acceptance of the Christian faith from Bohemia and not directly from Germany was a master stroke that altered the trend of events in Slavonic East and proved in the end the death blow to Otto’s schemes in that quarter. He who in 967 anticipated his eastern drive to be a walk-over and even contemplated bringing Russia into the sphere of Germany’s cultural and political influence, was suddenly roused to a sense of sober reality when in the execution of his plans he came upon the unforeseen obstacle erected by the astute Duke of Poland”(p.47).

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O Hussismo é a vertente Bohêmia das ideias reformistas iniciadas por John Wicliff, na Inglaterra, em finais do século XIV e que influenciaram em profundidade o surgimento futuro das teorias protestantes. O hussismo é assim chamado, pois teve como principal disseminador, John Huss, reitor da Universidade de Praga, que foi capturado e condenado à morte por heresia, durante o Concílio de Constância. O hussismo apregoava, dentre outros, a livre pregação da palavra de Deus, a eliminação de qualquer propriedade eclesiástica

teológica de Praga demonstra um dos principais aspectos relacionais que balizavam a posição polonesa por todo o medievo tardio: o profundo antagonismo à posição do Sacro Império Romano Germânico dentro da Respublica Christiana. Esse fator é de fundamental importância para se entender o posicionamento político da Polônia dentro do contexto europeu e principalmente, para se entender a maneira peculiar que Vladimiri observa o fenômeno relacional inter gentes e consequentemente, a natureza do seu ius gentium. O precoce entendimento político polonês de que o poder do Imperador não era vinculante e nem mesmo juridicamente válido256 pode demonstrar o quanto suas teorizações internacionalistas se fundamentam a partir de um contexto político absolutamente diverso daquele presente em grande parte da Europa cristã.

Além disso, o Imperador é aceito tão somente a partir de sua autoridade enquanto defensor da cristandade, não sendo reconhecida sua potestas enquanto poder temporal257. A Polônia entendia também possuir uma relação paritária com o Império258, o que significa uma igualdade de condições que afasta qualquer estrutura de dominação ou de subjulgação de um pelo outro. O Reino da Polônia declarava-se, portanto, plenitudo potestatis259, condição essa entendida a partir de um

ou poderes seculares para o clero etc. MARCUSE, Herbert. Repressive Tolerance. Olympia: Evergreen University, 201? (1965). Disponível em: <http://ada.evergreen.edu/~arunc/texts/frankfurt/marcuse/tolerance.pdf>. Acesso em: 12 abr.2012.

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BELCH, Paulus Vladimiri, p. 48.

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Ibid., p. 49.

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Nesse sentido, interessante notar o que um documento de 26 de abril de 1357, enviado pelo Chanceler do Sacro Império ao Grande Mestre da Ordem dos Teutônicos traz acerca do que os poloneses entendem em relação ao Imperador. Conforme exposto por Belch, “The Poles reject the imperial authority and do not want to have the emperor as their judge. They belong to those barbarian nations which do not recognize the majesty of the emperor and the Roman law. Thus Spytko of Melsztyn, ambassador of the king Kazimir here, an uneducated and rude man…, who disclaimed everything that the divine Frederic II and other bestowed upon your order. “What is the emperor” said this villain, “a neighbor of ours and our king’s equal”. When and in whose hands is Rome, answer? Your emperor is inferior to the pope, he takes an oath to him, whereas our king holds the crown and the sword bestowed upon him by God and prefers the laws and the tradition of his ancestors to the imperial laws” (BELCH, Paulus Vladimiri, p.53).

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Esta condição de exercício do poder político acima de qualquer outro parece ter sido um dos fundamentos do Estado Polonês durante os séculos XIV e XV.

contexto histórico que nunca experimentou em profundidade aquelas relações tipicamente feudais, comuns na Europa daquele tempo. Ademais, parecia ser nítida a percepção geral de que o exercício da política era impossível de ser desvencilhado de seu povo, característica bastante interessante por conter traços de uma nascente convicção “nacional”, no entanto, mais relacionado com traços intrínsecos de pertencimento do povo em relação à Coroa do que propriamente jurídicos entre o Estado e seu povo260.

Esse posicionamento político suis generis também se reflete na relação da Polônia com a Santa Sé. Apesar de bem mais próxima e definida do que aquela relação com o Império, a Santa Sé passou a figurar paulatinamente, aos olhos da Coroa polonesa, como uma autoridade supranacional, caracterizada principalmente como entidade responsável por garantir a justiça entre as autonomias políticas europeias. Belch chega a falar em debitor iurium, em “defensora de qualquer um que tenha seus direitos violados”261. Porém, se na primeira metade do século XIV, o papado era entendido como o guardião da justiça entre reinos independentes e também como um juiz

DAVIES, Norman. God’s Playground – A history of Poland: Volume I – The Origins to 1795. New York: Columbia University Press, 2005.

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Apesar de que essa característica deve ser analisada com cuidado, visto que a natureza estrutural e geográfica do Estado polonês não permitia, em muitos pontos do território, a estabilidade necessária para o desenvolvimento de laços duradouros, necessários à formação de uma forte convicção de pertencimento a um povo ou a uma nascente “nação”. Além disso, a ausência de uma história comum, ou de um nascimento comum do “povo” polonês (assim como de qualquer estrutura político-social daquela região) dificultavam, e muito, o desenvolvimento de uma identificação desse tipo. Nesse sentido, ver: DAVIES, Norman. God’s Playground – A history of Poland: Volume I – The Origins to 1795. New York: Columbia University Press, 2005.

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Nesse sentido, Belch salient que “the theory of Poland’s sovereignty vis a vis the empire as well as the common awareness of it among the population matured, no doubt under the influence of Vladimiri, in the depositions of witnesses in the papal court of justice conducted 1n 1422. The witnesses asserted under oath when answering the 31st article of the Polish Articuli that they ‘have heard from their ancient seniors as the commonly held conviction’ and ‘have read in ancient chronicles’, that ‘it is a fact commonly believed by and evident to the inhabitants of this and neighboring kingdoms’, an ‘such is the common opinion among the people’, that the Kingdom of Poland ‘is free from any subjection’, and that ‘the King of Poland does not recognize either the emperor or anyone else as his superior; […]”, Belch, Paulus Vladimiri, 53-54.

intergentes262, já no início do século XV, “a submissão ao papado era comumente entendida como confinada a assuntos puramente espirituais”263.

Estes posicionamentos em relação aos grandes poderes medievais são, de certo modo, bastante inovadores, ainda mais se levarmos em consideração que o sentimento de independência do poder temporal dos líderes poloneses, em relação ao imperador, remonta a inícios do século XII264. Nesse sentido, podemos verificar, como salienta Belch, uma grande influência de movimentos reformistas de Cluny265 na formação de Casimiro I (1016-1058), o monarca responsável pela primeira estruturação do Reino Polonês como autonomia política cristã, o que, por sua vez, é um poderoso indicativo acerca da tendência centralizadora da administração do Reino266.

Um último fator bastante importante nessa centralização do reino polonês e de sua tendência à independência em relação aos assuntos temporais, tanto do Império, quanto da Igreja, reside no fato de que a primeira Universidade polonesa, em Cracóvia, criada em 1364267 e reestruturada a partir do ano de 1400268, foi pensada a partir das necessidades estatais, tendo sido, desde sua fundação, um dos pilares de sustentação do Estado Polonês, da Coroa e das pretensões políticas desta. Além disso, a Universidade de Cracóvia seguiu os moldes da

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BELCH, Paulus Vladimiri, p. 53.

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BELCH, Paulus Vladimiri, p. 53

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DAVIES, God’s Playground, p. 75.

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BELCH. Paulus Vladimiri, p. 64

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A reforma de Cluny, iniciada no século X nos mosteiros da ordem regioso- militar homônima foi a base para a costituição da centralização do ordenamento jurídico canônico empreendida pelo papa Gregório VII, em finais do século XII (BERMAN, Harold. Direito e Revolução. São Leopoldo: UNISINOS, 2010). É bem plausível considerar que o fato do monarca Polonês Casimiro I (1016- 1058), responsável pela restruturação do reino Polonês, e que foi educado em um monastério beneditino-cluníaco, tenha aplicado alguns dos eficientes posicionamentos centralizadores do poder, principalmente os elementos jurídicos, observados pela ordem dentro do contexto da Polônia.

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WOŚ, Jan Władysław. Politica e Religione nella Polonia Tardo Medioevale. Trento: Università degli Studi di Trento, 2000, p. 106.

268

RUSSELL, Frederick H. Paulus Vladimiri’s attack on the just war: A case study in legal polemics. In: TIERNEY, Brian; LINEHAN, Peter. Authority and Power: studies on medieval law and Government presented to Walter Ullmann on his seventieth birthday. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, p. 239.

Universidade de Praga, e sempre manteve íntima conexão com Pádua, na Itália, reconhecidamente um centro universitário que se manteve livre de tutela imperial ou papal durante todo o medievo269.

4.1.2 A relação entre povos não-cristãos e o reino da Polônia