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2 AS CONCEPÇÕES DE GUERRA JUSTA E IUS GENTIUM –

2.4 SISTEMATIZAÇÃO DO IUS AD BELLUM – OS SÉCULOS XII E

2.4.1 Os glosadores (romanistas)

O ressurgimento do ius civile como a redescoberta dos manuscritos de Justiniano86, despertou o profundo interesse de grande

leva os intelectuais ao caminho da imitação. O novo movimento das cidades alimentado pelos contatos com o mundo árabe oferece bem mais do que simples mercadorias. Assim o conhecimento ganha novo impulso, reconhece a sua tradição clássica e ainda se beneficia da produção árabe [...]”. SALGADO. Karine. O Direito Tardo Medieval: entre o Ius Commune e o Ius Propium. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 56, p. 243-261, 2011.

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LUSCOMBE; EVANS, The twelfth-century, p. 308.

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Russell menciona a descoberta como provavelmente ocorrida na Abadia de Monte Cassino, na Itália central. Porém, é interessante analisar o que colocam Radding e Ciaralli, acerca do ressurgimento do Corpus Iuris, como segue: “After centuries of indifference and neglect, the Justinianic codification in the eleventh century became the focus of intense study. A handful of references around the turn of the century gave way after 1025 to a steadily increasing flow of manuscripts and citations that extended eventually to all works of the Justinianic codification. The Bamberg and Turin manuscripts of the Institutes

parte da população letrada europeia. Os estudos direcionados a esses documentos foram, por conta deste grande interesse, os principais responsáveis pelo surgimento de escolas europeias que futuramente se transformaram nas Universidades Europeias, como é o caso da escola de Bolonha, criada por volta de 1086. Nestes locais os estudantes entravam em contato com os textos copiados dos originais romanos e passavam, gradativamente, a acumular conhecimento, compondo, a partir de então, uma classe especial de letrados que dominavam praticamente todos os aspectos do direito romano.

Assim, a partir das necessidades práticas de seu tempo87, esses romanistas procuraram enfrentar a questão da regulamentação da guerra,

and the Pistoia manuscript of the Code, previously dated to the tenth century, prove to be important witnesses to this process, but they do not stand alone. Equally important is evidence that has received little attention in the past century, in particular the glosses and commentaries to the Lombard law. A few small works from before the end of the century even demonstrate the emergence of a purely Romanist jurisprudence. While this picture of the reception of the

Corpus might strike some readers as dangerously new, in other ways it

represents a return to ideas dominant before Kantorowicz. It was Conrat, after all, who first insisted on the significance of the eleventh century, and of the Lombard jurists, in the transition between early medieval and “Bolognese” jurisprudence. The hypothesis that Justinian’s works were brought back into circulation by specialists who understood their value is also consistent with what we know about eleventh-century intellectual life generally. Medieval scholars did not simply find books by chance. Generally they had to look for works whose existence they knew of only from references in their reading. For the tenth century, Guglielmo Cavallo documented the way that Gerbert, for example, wrote correspondents in many regions attempting to find books that were mentioned in his reading but that were unavailable to him. Monte Cassino in the eleventh century, and the recovery of the Logica Nova in the twelfth, provide other well-known instances of scholars seeking. out manuscripts of works that were rare and unread. The Justinianic compilation, which is no less technical than advanced works in logic or science, fits the same pattern. Rather than the renewed interest in the Digest producing the juristic renaissance, it was the revived interest in legal studies generally and in Roman law that led readers to seek out the Digest and Justinian’s other works”. RADDING, Charles M. The Corpus Iuris Civilis in the Middle Ages: Manuscripts and Transmission from the sixth century to the juristic revival. Leiden: Koninklijke Brill NV, 2007. p. 67-68.

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Assim, o direito romano levou ao estudo e análise de problemas jurídicos presentes, “servindo, em primeiro lugar, como um direito ideal, um conjunto de ideias jurídicas, tomado como um sistema unificado; problemas jurídicos

que se centralizava mais “em noções de direito romano acerca da auto- defesa, limitação de violência privada e as condições que justificavam o recurso à guerra, bem como, as suas consequências legais”88. O corpus iuris civilis não continha de maneira objetiva o conceito romano de guerra justa, o que, de certa forma, tornava mais fácil adequar os preceitos jurídicos correlatos aos chamados da realidade social do medievo89. Assim, ao utilizarem, por exemplo, o conceito romano de autodefesa, os romanistas aplicaram a máxima presente no digesto “vim enim vi defendere omnes leges omniaque iura permittunt”90, ou seja, todas as leis e estatutos permitem o uso da violência em defesa contra um agressor, e este direito de autodefesa, para os romanistas, estaria previsto tanto em regras de direito natural, quanto naquelas de ius gentium. Ademais, ao mencionar o referido dispositivo, é interessante notar que a complementação do item acima referido (D.9.2.45.4) será de extrema relevância para as teorias futuras de guerra justa, principalmente para Vladimiri, pois ele afirma que a defesa só é permitida se efetuada contra o atacante, e não o será se efetuada a título de vingança. “

Havia, ademais, dois pressupostos comentados pelos romanistas, que eram condição necessária para se definir a autodefesa como legítima: incontinenti e moderamen inculpatae tutelae, ou seja, que a prática da violência defensiva fosse moderada, não ultrapassando o necessário para repelir a violência, e fosse imediata, pois se a repulsão da atitude violenta e injuriosa se desse em momento mediato, configuraria vingança91. Além disso, o glosador Azo de Bolonha (1150 -

concretos eram julgados com os seus parâmetros”. BERMAN, Harold. Law and Revolution, p. 167.

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Tradução livre do original: “Their discussions of war focused rather on the Roman law notions of self-defense, restraint of private and illicit violence, the conditions justifying recourse to war and the legal consequences of war. RUSSELL, The Just War, p. 41.

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RUSSELL, The Just War, p. 41

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Digesto 9.2.45.4, como segue: “Qui, cum aliter tueri se non possent, damni culpam dederint, innoxii sunt: vim enim vi defendere omnes leges omniaque iura permittunt. sed si defendendi mei causa lapidem in adversarium misero, sed non eum, sed praetereuntem percussero, tenebor lege aquilia: illum enim solum qui vim infert ferire conceditur, et hoc, si tuendi dumtaxat, non etiam ulciscendi causa factum sit”. DIGEST. In: Imperatoris Ivstiniani Opera. Disponível em: <http://www.thelatinlibrary.com/justinian.html.> Acesso em: 30 abr. 2011.

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Frederick Russell coloca que: “with their understanding of incontinenti and moderation the Romanists were unanimous in holding that the right to repel

1230), entendia que se houvesse a possibilidade de haver alguma intervenção judicial, a autodefesa seria menos admissível.

Assim, a partir dessas concepções iniciais sobre a autodefesa, os romanistas tiveram que adaptá-las às questões referentes a uma guerra justa, pois para os romanos, as questões de autodefesa eram aplicadas apenas a relações privadas. Eles conseguiram fazê-lo a partir do digesto e das institutas de Justiniano, que continham normas relativas à guerra como parte do ius gentium. Porém, o direito romano entendia a guerra como um meio de repelir injúrias, enquanto que para os romanistas, como Azo de Bolonha e Accursius, que mesclaram os conceitos de legítima defesa ao conceito de guerra dos romanos, a guerra justa era aquela utilizada para repelir violências.

Eles também acabaram se apropriado do conceito de guerra justa romana, estabelecendo que esta ocorreria somente a partir do cometimento de violência prévia efetuada pelos inimigos (hostes), mediante a declaração formal de guerra. Daqui advêm duas questões importantes para a regulação da guerra por parte dos romanistas. Primeiramente, como os romanos desenvolveram seu conceito de guerra justa a partir de sua realidade política, na qual o poder era centralizado, a quem caberia efetuar a declaração de guerra, dentro da Idade Media? Dentro desta importantíssima questão da autoridade, os romanistas tiveram que adaptar a estrutura do direito romano justinianeu para a realidade descentralizada da Europa feudal. Assim, a partir de outras normas encontradas no Corpus Iuris, como a proibição de levantar armas sem a autorização do Imperador, eles definiram que a única autoridade legítima para empreender a guerra seria o Imperador germânico.

A outra questão diz respeito ao conceito de inimigo (hostes). Dentro da concepção romana, hostes eram aqueles a quem os romanos tivessem publicamente declarado a guerra ou que tivessem declarado guerra aos romanos. Trazendo essas definições para a realidade contemporânea, Accursius (1182 - 1263) tentou estabelecer uma diferença entre um estado de guerra publicamente declarada, que seria denominada bellum e faria do inimigo um hostes e um estado de violência em que a declaração não tenha sido feita, a qual ele denominou guerra. Via de regra, não houve nenhuma alteração substancial na fórmula romana, porém, o processo de aproximação dos conceitos romanos à realidade histórica do século XII, empreendido

violence by violence did not extend so far as to permit vendettas or indiscriminate attacks on personal enemies”. RUSSELL, The Just War, p. 43.

principalmente por Azo de Bolonha e seu mestre, Accursius, aprofundou o conceito de hostes92. Os romanos possuiam, como já anteriormente discutido, uma grande hostilidade contra bárbaros, sendo que havia uma grande relação entre este conceito e aquele de hostes. Para os glosadores mencionados, o conceito de bárbaro foi substituído pelo de infiel, além de todos aqueles outros que se desviassem da fé cristã, como hereges, pagãos etc.

Essa aproximação entre o conceito de hostes daquele de infiéis, por sua vez, reforçava a conexão entre a defesa da fé por meio de uma guerra de conquista e conversão, muitas vezes entendida como uma cruzada. Esse posicionamento estará bastante refletido dentro do contexto histórico no qual nasce o conflito entre Polônia e os cavaleiros da Ordem dos Teutônicos, conforme será analisado adiante.

Ao também repetir a fórmula romana de lícita aquisição de propriedade como resultado da guerra, os romanistas acabaram por construir argumentos de autoridade que legitimavam a aquisição de propriedade de povos infiéis que tenham entrado em conflito com cristãos. Esses argumentos serão amplamente repetidos em situações análogas, por todo o período do medievo e além.

Como resultado, os romanistas ou glosadores do século XII criaram seus comentários ao corpus justinianeu que muito pouco se afastaram das concepções próprias dos romanos, ao menos em relação à regulamentação da guerra. No entanto, são de suma importância para o desenvolvimento de novas teorias, pois, além de representar o renascimento de um estudo de amplo acesso à sociedade medieval, foram os responsáveis pela constituição da base teórica e também pela formação dos grandes canonistas do século subsequente, como Graciano.