• Nenhum resultado encontrado

Pensar a narrativa como possibilidade de produção da pesquisa esteve atrelado à intenção de dar a pensar o corpo a partir do reconhecimento de sua constituição biológica e cultural. Dessa forma, concordo com Kramer (2013, p. 53), ao afirmar que a “narração não é apenas produto da voz, mas de tudo que é aprendido na vida social”. Foi com essa aprendizagem que me deparei à medida que o grupo de estagiários/as, que compuseram o meu estudo, foram produzindo as suas narrativas. Por elas, a produção do reconhecimento do corpo em sua articulação entre o biológico e o social foi emergindo. Nesse processo de experienciar as narrativas, tendo o Estágio Supervisionado como lócus da produção das fontes da pesquisa os 25 (vinte e cinco) estagiários/as nomeados/as como E01, E02, E03,

E04, [...], E25, foram convidados(as) inicialmente a apresentar-se ao grupo e posteriormente a produzir as narrativas (imagéticas e escrita) de seu corpo, conforme já descrevi em seção anterior.

O fato de os sujeitos optarem pelo mesmo curso de graduação, no caso o curso de Ciências Biológicas, leva a perspectivar que interesses comuns entre indivíduos de diferentes municípios surgiram, em algum momento de suas vidas, e que experiências vividas podem ter sido decisórias no momento da escolha do curso de formação. Assim, com o propósito de desvelar o interesse pela área em questão, os sujeitos foram instigados a narrar durante sua apresentação ao grupo sobre seu interesse pela formação em Ciências Biológicas. Dentre os motivos mais citados por eles/as para a escolha do curso estavam: a apreciação da disciplina Ciências e Biologia; a empolgação dos professores de Ciências e Biologia; a participação em projetos escolares de cuidados ambientais. Como exemplo, apresento alguns excertos:

Sempre gostei de Ciências e Biologia (E04).

Meu professor de Ciências era muito esperto, envolvia todos na aula. Com suas explicações, a disciplina se tornava fácil. Eu adorava as aulas dele (E11).

Na escola que fiz o Ensino Médio sempre tinha projetos na área de Biologia. Os professores envolviam todos os alunos; aprendíamos a cuidar do meio ambiente, dos animais, das plantas, da vida num todo - isso me levou a escolher Ciências Biológicas (E17).

Sempre gostei de animais, plantas, do meio ambiente e das aulas de Ciências, era a minha preferida (E22).

Minha professora de Biologia era o máximo, ela trazia exemplos que faziam parte de nossas vidas, mostrava vídeos, fazia gincanas, explicava todas as imagens que tinha no livro, aprendi muito com ela e penso em ser uma boa profissional como ela, daí Ciências Biológicas (E09). Minha professora de Ciências era a melhor, fiquei louca por ciências (E12).

Minha paixão por Biologia surgiu no ensino fundamental, eu adorava os projetos de ciências desenvolvidos na escola (E15).

Tudo começou com um professor que tive no Ensino Médio, ele sabia tudo de Biologia, fiquei encantada (E19).

Eu adorava os livros de Ciências e as professores (E21).

As falas sempre estavam correlacionadas a experiências vividas com pessoas mais experientes, no caso seus/as professores/as que, de forma direta ou indireta, foi cultivando

95

o gosto pelo estudo da vida, das relações entre os seres vivos e o meio ambiente. Tratar dessa questão inicialmente, parafraseando Josso (2002, p. 51), “põe em evidência os posicionamentos do sujeito na sua maneira de estar no mundo, de agir sobre ele, de gerir a sua vida e as suas relações com o mundo, assim como a identificação das buscas que orientam uma vida”. Para os participantes, se debruçarem sobre os motivos que os/as conduziram à escolha profissional nesse processo, permitiu evidenciar o potencial de auto orientação relacionado com a capacidade de autonomização em relação a heranças pessoais, culturais, sociais, crenças, pressões sociais, imagem de si (JOSSO, 2002).

O trabalho com projetos em espaço escolar também teve sua importância diante da escolha pelo curso de formação. Os projetos ampliam possibilidades de construção de conhecimento de forma mais global, tendo como eixo a aprendizagem significativa. Também possibilita o trabalho coletivo e a proximidade com o cotidiano do aluno/a, bem como uma avaliação processual do grupo (HERNANDEZ; VENTURA, 2008). Assim, os alunos sentiram-se agraciados com o trabalho desenvolvido por docentes que desenvolveram projetos ampliando seu interesse pela área de Ciências e Biologia.

Terminada a etapa de apresentação, os/as participantes foram convidados/as a construírem sua imagem (desenho) utilizando grafite, canetinhas, coleção de cor, giz de cera, dentre outros materiais e, posteriormente, a fazer a descrição do seu corpo, com todos os detalhes e singularidade que desejassem. A construção do desenho foi um momento de descontração que se associou a algumas indagações sobre aspectos físicos que constituem cada sujeito, sua aparência, aceitação social, trejeitos, utilização de acessórios, preferência por cor, um corpo visto com defeitos e atributos. Desenhar o próprio corpo foi um desafio para alguns/mas, que logo retrucaram: “Não sei desenhar meu corpo.” (E06); “Posso

desenhar o de outra pessoa?” (E13); “Não sei desenhar!” (E25). Para outros, um

momento de concentração e busca de si mesmo. Com o passar do tempo, um silêncio interrompido apenas por frases curtas: “Passa a borracha.” (E02); “Preciso da coleção verde.” (E18); “Quem tem canetinha preta?” (E21), todos/as absolutamente imersos no

trabalho de produção dos seus corpos.

O desenho que para Porche (1982) permite aos indivíduos retratar, em diferentes dimensões, suas experiências pessoais em busca da sua identidade, permitiu a imersão interior para produção individual do corpo de cada um/a dos/as participantes. O desenho, para Pocher (1982, p. 101) é,

[...] o conjunto das atividades humanas que desembocam na criação e fabricação concreta, em diversos materiais de um mundo figurativo. Estas figuras podem ser feitas de formas carregadas de emotividade e afetividade de formas codificadas, signos de uma linguagem elaborada. Elas exigem, para a sua fabricação, da colaboração das mãos dos olhos, de instrumentos, de técnicas e de materiais.

Em resumo, a espontaneidade, a concentração, o olhar do mundo a sua volta são necessários para construção do desenho. Assim, a produção imagética individual do próprio corpo do estagiário/a aconteceu de forma descontraída e sem resistência significativa, sendo constatado, tanto no momento do encontro quanto na audiência das filmagens. A descontração esteve presente na escolha e na definição dos traços, das cores, dos acessórios que fizeram parte do corpo desenhado; esteve presente nas faces com expressões alegres e fáceis de serem percebidas e na leveza e espontaneidade do ato de desenhar. Eles/as pareciam retomar a infância e retomar o prazer de rabiscar algo que muito valor se possa atribuir. Sem resistência, pela iniciativa rápida em iniciar o desenho e buscar os instrumentos que seriam necessários para a produção, embora poucos tenham retrucado, em frases curtas, como referidas em parágrafo anterior.

Os corpos no momento da produção imagética como se encontravam? Estavam curvados na direção do papel sobre a mesa escolar (Figura 7 e 8). Nela estavam também disponíveis lápis e canetinhas. Vi olhares atentos às imagens que surgiam, na busca da perfeição de traços que compõem o corpo físico, o corpo percebido por eles/as.

Figura 7 e 8 – Momento de produção imagética do corpo do/a estagiário/a.

Fonte: Arquivos da pesquisa, 2019.

Assim, aos poucos comentários risonhos surgiram: “Fiz um cabelo muito doido,

mas, tá parecido” (E01); “Acho que não tenho a cintura fininha assim” (E16); “As sobrancelhas estão bem parecidas” (E11); “Fiz uma boca grande, minha boca é grande!”

97

(E15); “Essas pernas, sei não, ficaram tortas” (E22). Comentários registrados pela câmera

que dispus na sala. Pela imagem registrada, pude verificar a busca pela imagem que cada pessoa ali considerava semelhante a percepção do seu corpo. Os desenhos dos corpos, produzidos pelos/as estagiários/as, foram fixados por mim, em um espaço previamente reservado para esse fim, na sala de aula, e logo os comentários foram surgindo, ver Quadro 3 abaixo.

Quadro 3 – Comentários sobre a produção imagética dos corpos Comentários

“Que boca horrível E15, sua boca não é assim” “Que cabelo é esse E6? Nada a ver.”

“E9, ficou muito parecido, você desenha bem!” “E8, que pescoço é esse? Jesus!”

“Com a camisa do curso e esse cabelo, ficou fácil de te reconhecer E11.” “E7, ficou idêntico.”

“Você sempre fica com o cabelo amarrado, E11. Por que desenhou solto?” “Essa daí eu conheço, com esse bumbum, só pode ser E14.”

“Você não tem pernas tão compridas, E3.” “Seu cabelo não é dessa cor nem é liso, E13.”

Fonte: Dados da pesquisa, 2019.

Os comentários expressam o parecer dos pares sobre a produção imagética dos corpos, num processo de concordância e discordância com traços postos no desenho, e que de forma diferentes são percebidas pelos sujeitos. Assim, num processo comparativo entre o corpo do participante e o seu desenho, verifico que as produções imagéticas do corpo de quem o produziu carregam traços que definem o corpo a partir do olhar e das habilidades de quem o produz. E, com as observações dos/as estagiários/as sobre os desenhos produzidos (Figura 9 e 10), me deparo com outros olhares sobre o corpo desenhado.

Figura 9 e 10 - Produção imagética do corpo do/a estagiário/a.

Fonte: Dados da pesquisa, 2019.

Experienciando a produção imagética do corpo foi possível perceber o olhar dos/as participantes/as sobre seu corpo e o corpo do outro, num processo de percepção de si e do outro. Nele fui observando visões de mundo e de corpos circulantes naquele grupo; visão de mundo construída ao longo da vida de cada sujeito. Dessa forma, a cor do cabelo, o tamanho da boca, das pernas, do pescoço, por exemplo, pode ser considerado “normal/proporcional” para uns e “anormal/desproporcional” para outros. A ideia de normalidade que em Foucault (2003) vai estabelecer o que é considerado aceitável ou não aceitável socialmente; o corpo válido e o corpo a ser combatido.

A exposição oral do corpo, produzido (desenhado) pelo/a estagiário/a, foi organizada por ordem alfabética e ocorreu com a escuta atenta pelo grupo e por mim. Eles/as, após as apresentações de cada desenho, não conseguiam ficar calados/as e logo começaram a fazer perguntas, como: “Por que você fez pés tão pequenos?” (E12); “Nunca te vi de vestido, você veste vestido?” (E02); “E esse cabelo onde você arrumou?” (E17); “Cadê os acessórios? Você usa muitos” (E21); “Você tem um rosto afilado, por que fez arredondado?” (E18); “Cadê seu óculos? Nunca te vi sem óculos” (E11).

Com as perguntas e comentários, a apresentação de percepções distintas sobre a imagem dos corpos apresentados foi emergindo e com ela à manifestação de aceitação ou não das imagens em correspondência com a percepção elaborada do seu corpo e do corpo do outro. Naquele instante verifiquei, através da expressão corporal dos sujeitos, a aceitação ou não da visão do outro sobre seu corpo. A aceitação da opinião do outro sobre seu corpo veio acompanhada de sorrisos, inclinação da cabeça no sentido de concordância e acréscimos de justificativas num processo de correção do desenho; e a não aceitação da

99

visão do outro foi acompanhada da expressão facial, franzir a testa e do balançar da cabeça no sentido da discordância do manifestado.

Os desenhos apresentaram a concepção de corpo dos/as participantes. Na observância dos desenhos verifiquei corpos com marcação de gênero, assim, cinco desenhos são de corpos do gênero masculino (E06, E07, E08, E09, E10) e 20 de corpos do gênero feminino. A marcação do gênero masculino se evidenciou pelos traços do cabelo, que se encontra curto ou desarrumado, nas vestimentas que não variam de bermudões, calça, camiseta, tênis e chinelo e não estão coladas ao corpo – traços que culturalmente são atribuídos na região que estamos como masculino ou de homem. Também se apresentou no contorno do corpo, onde os ombros aparecem mais largos, um tronco mais retilíneo e sem definição de cintura, com pernas posicionadas abertas, braços soltos ou próximos ao corpo ou com uma das mãos presas ao bolso, gesto típico da figura identificada como masculina. Ver figura 11, 12, 13, 14, 15, a seguir.

Figuras 11, 12, 13, 14, 15 - Produção imagética do corpo dos estagiários E06, E07, E08, E09, E10.

Fonte: Dados da pesquisa, 2019.

É importante ressaltar que os gêneros, segundo Louro (2000, p. 34), “não se definem propriamente pelas características biológicas, mas são o produto de tudo que se diz e se representa dessas características”. Significa considerar as construções culturais historicamente construídas e isso inclui o modo como as características biológicas dos corpos são tomadas e apropriadas pelas culturas. Assim, a produção do masculino, do que é ser homem está associada a construções culturais, incluindo-se nelas dados da biologia,

que constituem os espaços em que estamos inseridos/as. No universo cultural no qual os/as estagiários/as e eu (pesquisadora) estamos inseridos/as a produção do masculino, do homem e da masculinidade é definida pelas vestimentas e posições corporais próprias desse grupo. Perceber isso, através dos desenhos produzidos, me possibilitou ampliar as reflexões sobre a relação corpo -gênero. Relações que se fazem e desfazem continuamente, ao logo de sua existência, da história e da cultura.

Com os desenhos também foi possível detectar os marcadores que identificam a mulher e a feminilidade. O relato e desenhos apresentam participantes do sexo feminino e a identidade mulher. Os desenhos produzidos por esse grupo apresentam cabelos sempre arrumados, sejam eles curtos ou longos, cacheados, ondulados ou lisos, estejam presos ou soltos, sejam pretos, castanhos ou loiros. O corpo em sua maioria apresenta curvas que definem a cintura e quadril, ombros estreitos, pernas encostadas uma na outra ou entreaberta, braços soltos ou na cintura expondo delicadeza. As vestimentas desenhadas variam entre short, calças, saias, vestidos, blusas de diversos tipos, sapatinhos, tênis e alguns utilizam acessórios como brinco, colar, pulseira, bolsa e batom. Ver figuras 16, 17, 18, 19, 20, 21, abaixo.

Figura 16, 17, 18, 19, 20, 21 - Produção imagética do corpo das estagiárias E01, E04, E15, E17, E18, E22.

Fonte: Dados da pesquisa, 2019.

Pelos desenhos entendo que, de modo igual, a masculinidade a feminilidade são produzidas de distintas formas, pois diversificados modelos, padrões e imagem, de

101

diferentes contextos configuram o processo de representação do homem e da mulher, considerando o modelo binário de gênero (RIBEIRO, SOARES, 2013, p. 26). O modelo hegemônico instituído para feminilidade apresenta a delicadeza e a fragilidade como atributos dessa identidade de gênero. Assim, as mulheres tem um caminho delimitado a ser percorrido onde as atividades predeterminadas a elas excluem a agilidade, rapidez, destreza, força, poder criador destinados ao gênero masculino. Para Ribeiro e Soares (2013, p. 27), “institui-se as estereotipias de gênero, reveladora do tipo de sociedade e cultura em que os sujeitos estão inseridos.” Os acessórios e vestimentas próprios ao sexo feminino são constructos sociais relacionados às estereotipias – processo de atribuição repetitivo de estereótipos (imagem preconcebida).

Os desenhos apresentam as representações33 culturais de gênero (re)produzida,

(re)significada em diversos espaços sociais e culturais. Nesse contexto, compreendo com Silva e Magalhães (2013, p. 32), que não existe uma única forma de viver a feminilidade e masculinidade, assim como “não existe a mulher e o homem, mas várias e diferentes mulheres e homens que não são idênticos/as entre si, mas que aprenderam a ser de determinado jeito, a apresentar e valorizar determinadas características no interior de um grupo social”.

Os desenhos não apresentam o corpo apenas em sua dimensão biológica, mas um corpo produzido socialmente e com marcadores culturais. Dessa forma, identifico nos desenhos corpos constituídos com características observáveis (fenótipos) como a cor da pele, do cabelo, dos olhos, a estatura, o tamanho das pernas, pés, mãos, dentre outras partes do corpo; corpos constituídos de características culturais regionais que definem modo de vestir, apresentar-se e estar no mundo. O fato de optarem por roupas mais leves, possivelmente está relacionado ao tipo de vestimenta típico de uma região de clima quente e seco como o Piauí. A representação do tipo de calçado - sandálias/chinelo e sapatilhas também estão relacionadas ao tipo de clima da região.

As produções imagéticas (desenhos) expressam as singularidades dos sujeitos na busca do conhecimento de si pela produção de sua imagem, dessa forma cada um apresenta seu corpo como o percebe em meio a sua historicidade.

33 Modo de produção de significados através da linguagem – sons, palavras escritas, imagens impressas,

objetos, gestos, dentre outros – que, ao se representarem os signos – modelos, objetos, desenhos, imagens -, dão sentido aos nossos pensamentos, sentimentos, valores, ações, quem somos e a que grupo pertencemos (HALL, 1997).

Na construção do eu a ser apresentado em imagem ocorreu, o que identifico como a rememoração de vivências que ajudam a selecionar o que deve ser apresentado e constituir-se verdade para quem desenha e para quem visualiza o desenho, num processo de (re)significação dos signos e (re)construção da imagem. Assim, a narrativa imagética expressa a imersão de cada estagiário/a em sua subjetividade em busca do corpo que representa a sua identidade.

Após a apresentação oral do corpo produzido, que representa o como eu me vejo, os/as participantes fizeram uma produção escrita descrevendo seu corpo, momento em que a reflexão tornou-se o suporte para a produção da narrativa. Nele, o processo de rememoração fez emergir aspectos antes não percebidos pelo grupo, e, de forma seletiva, foram utilizados por eles/as. Assim, busquei subsídios na discussão sobre narrativa apresentada em seção anterior, para a produção do entendimento da articulação do corpo biológico-cultural nas imagens e falas do grupo.

Naquele momento, com o olhar atento, observei o quanto foi difícil para os estagiários/as descreverem seu corpo, trazer à tona seu corpo de forma escrita, fato esse, que evidencia o pensar a vida social, ser sujeito no espaço-tempo. Nesse contexto, a prática da escrita passa a ser prática educativa e um momento singular de partilha de experiências que possibilitavam a produção de novos saberes, mediados pela linguagem escrita.

A narrativa escrita do corpo permitia refletir, voltar no tempo, ressignificar experiências, partilhar, contextualizar, adentrar as situações, em um movimento de compreensão de si e do outro. Diante desse processo, produzir o corpo escrito tornou-se um desafio. “Por onde devo começar?” (E04); “É muito difícil falar do meu corpo.” (E07); “Não sei se devo escrever isso” (E11); “Meu corpo, sei não!” (E13); “Vixe, como é difícil falar de mim!” (E17). E as indagações surgiram provocando inquietações que

estão relacionadas aos significados atribuídos pelos sujeitos às suas vivências e experiências. Assim, retomei Larrosa para lembrar que,

(...) O sentido do que somos depende das histórias que contamos a nós mesmos (...), em particular das construções narrativas nas quais cada um de nós é, ao mesmo tempo, o autor, o narrador e o personagem principal (...) Talvez os homens não sejamos outra coisa que um modo particular de contarmos o que somos. (LARROSA, 1994, p.43).

103

E nesse processo de construção da escrita, os textos foram tecidos à luz de reflexões e ressignificações de objetos, cores, ritmos, comportamentos, teorias, aceitações, exclusões. A escrita narrativa aos poucos foi se tornando prazerosa, subjetiva, intrigante, permissiva, pois, a concentração foi encontrada e ali, mais uma vez, os corpos estavam debruçados sobre a folha de papel na carteira; os olhos atentos a escrita e os braços encobrindo algo que agora não deveria ser revelado (Ver Figura 22). O sorrir pra si mesmo surgiu, como forma de apresentação do encantamento/direcionamento do texto. E a narrativa foi sendo construída.

Se considerarmos agora a narração em um sentido reflexivo, como narrar- se, poderíamos decompor as imagens associadas nos seguintes elementos. Em primeiro lugar, uma cisão entre o eu entendido como aquilo que é conservado do passado, com um rastro do que viu de si mesmo, e o eu que recolhe esse rastro e o diz. Ao narrar-se, a pessoa diz o que conserva do que viu de si mesma. Por outro lado, o dizer-se narrativo não implica uma descrição topológica, mas uma ordenação temporal. Assim, o narrador pode oferecer sua própria continuidade temporal, sua própria identidade e permanência no tempo (embora sob a forma de descontinuidades parciais que podem ser referidas a um princípio de reunificação e totalização) na mesma operação na qual constrói a temporalidade de sua história. Por último, a autonarração não pode ser feita sem que o sujeito se tenha tornado antes calculável, pronto para essa operação na qual a pessoa presta contas de si mesma, abre-se a si mesma à contabilidade, à valoração contável de si. (LARROSA, 1994, p.69).

Nas narrativas dos corpos pudemos encontrar o que nos ajudava a compreender a produção das concepções de corpo nos diversos espaços sociais e a reprodução de tais concepções em meio às atividades educativas desenvolvidas em espaço escolar. A significação das teorias e práticas vivenciadas e a valoração de determinados artefatos, comportamentos, preferências, em detrimento de outros.

Figura 22 - Produção escrita do corpo do/a estagiário/a.

A possibilidade de pensar sobre as ideias de corpo trabalhadas no espaço escolar e na articulação conhecimento biológico e cultural foram fatores indissociáveis na constituição da investigação.

Os textos produzidos pelos participantes apresentam a articulação Biologia-cultura,