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(...) o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles. Não se trata de conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e inerte que o poder golpearia e sobre o qual se aplicaria, submetendo os indivíduos ou estraçalhando- os. Efetivamente, aquilo que faz com que um corpo, gestos discursos e desejos sejam identificados e constituídos é um dos primeiros efeitos do poder. Ou seja, o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu (FOUCAULT, 1999, p.183-184).

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A temática corpo sempre esteve presente no currículo educacional e vem ganhando mais visibilidade associada a temas como gênero e sexualidade, que propõem nova roupagem às discussões em espaços institucionais e fora deles (QUADRADO; BARROS, 2014). Nesse contexto, o currículo ao ser entendido como um processo que se constitui socialmente e atravessado por relações de poder poderá possibilitar indagações sobre a importância da permanência de alguns conhecimentos nos programas de ensino de Ciências e Biologia, como em outras disciplinas escolares, em detrimento de outros, ou mesmo, do tipo de sujeito que esses conhecimentos se propõem a formar.

Pensar no currículo como um campo que atua na produção de identidades, que disciplina corpos, normatiza, regula os sujeitos, implica pensar no quanto seu discurso tem poder e, na escola, como espaço de concretização de um projeto construído para um determinado tipo de sociedade e um determinado tipo de sujeito humano. “Assim, as escolhas que se faz, a seleção dos conhecimentos e das práticas que farão parte de um determinado currículo, bem como as narrativas que se produzem e circulam na escola têm efeito sobre os estudantes [...]” (QUADRADO; BARROS, 2014, p.118). A organização do currículo molda modos de vida, relações interpessoais, desejos, relação com o mundo e do indivíduo consigo mesmo.

Neste sentido, o currículo é produtivo, explica Costa (2005), por não se movimentar apenas no campo das narrativas sobre o que se deve ser; ele faz, molda condutas, disciplina, nomeia, enquadra, regula, coordena. Constitui-se como um campo de forças onde sujeitos detentores de um capital social e cultural legitimam determinadas concepções e disputam quem tem autoridade em uma determinada área, influenciando e delimitando as práticas pedagógicas e propostas curriculares válidas. Desse modo, no campo de constituição do currículo verdades são produzidas, passando assim, a serem determinantes na escolha de conteúdos a serem inseridos oficialmente nas escolas, nos cursos de formação, que passam a também delimitar quais as práticas pedagógicas válidas e a serem seguidas nas instituições escolares. Essa concepção de currículo, que teve sua origem na década de 1920, Silva (2005), que nos deparamos ainda nos dias atuais, pleno século XXI, quando temos, por exemplo, uma Base Curricular Nacional Comum que determina objetivos, conjuntos disciplinares, conteúdos e temas que podem ou devem ser trabalhados na escola.

O currículo tem significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade. (SILVA, 2002, p. 150).

Advogo que o olhar atento possibilita detectar na constituição do currículo a produção de relações de poder, que dominam aparições aleatórias e selecionam os sujeitos que falam e devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciado (SILVA, 2002). Pensar o currículo e sua constituição nos faz refletir sobre os discursos sobre corpo, por exemplo, que controlam os sujeitos, selecionam procedimentos, organizam conteúdos, especificam práticas pedagógicas e limitam os espaços de construção do conhecimento e das identidades. Propícia, ainda, pensar nos perigos do discurso descomprometido e da eficácia do poder em meio a tantas interdições.

O ensino do tema corpo humano nas escolas brasileiras, está relacionado às finalidades educacionais da Educação Básica e apresenta-se vinculado ao ensino da disciplina escolar Ciências e Biologia que se tornou parte do currículo oficial com a Reforma Francisco Campos, em 1930, já nos advertiam Quadrado e Barros em texto publicado em 2014. Desse modo, compreender a abordagem do corpo em contextos históricos é um desafio; requer a compreensão das relações de poder na constituição dos currículos e na produção de subjetividades.

O corpo é objeto de atenção das escolas. Nela ele é vigiado, controlado, delimitado. O espaço físico que os corpos ocupam nas escolas é um espaço com medidas definidas, uma arquitetura próxima a hospitais e prisões, assim especifica Foucault (1999). Com uma mobília particular, própria para sua disciplinarização, “Pensando bem, talvez, seja possível afirmar que o espaço físico da escola foi todo desenhado para o corpo, já que a inteligência não ocupa espaço. Resta saber se esse espaço foi construído para o corpo real ou para um corpo homogeneizado sob as ordens da inteligência” (SANTIN, 2006, p. 41).

Ao se reportar ao espaço temporal, Santin propõe a análise de quanto tempo há para o corpo na escola, apresentando a ditadura do tempo que se faz presente no calendário escolar, na duração de todas as atividades realizadas na escola e nos 15 ou 20 minutos de recreio, que restam para o corpo, especialmente para o atendimento das necessidades fisiológicas. Frisa, que no espaço curricular, a disciplina de Educação Física é a única em

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que o corpo é ator principal, e mesmo nesta, encontramos o desrespeito à individualidade dos corpos. Então, no espaço pedagógico, “[..] como as teorias pedagógicas são de caráter cognitivista, em princípio, ao corpo não é atribuída nenhuma participação efetiva. A herança cartesiana do dualismo mente corpo está muito presente. Acredita-se que o pensamento é uma atividade independente e autônoma”. (SANTIN, 2006, p. 45)

Como problema crucial, esse autor aponta o ato de conhecer e como ele acontece nas pessoas; ou seja, questão epistemológica. A percepção do corpo na visão do dualismo cartesiano neutraliza a participação do corpo na aprendizagem de conteúdos intelectivos, refutando sua integralidade, evidente no pensamento racional e laico sobre a natureza, ligado a história da Medicina, que encarna em nossa sociedade um saber, de certa forma, oficial sobre o corpo (LE BRETON, 2014).

Contrapondo as descobertas da neurociência, a escola continua a trabalhar o paradigma do racionalismo iluminista inspirador de uma educação disciplinadora e coercitiva, assumindo a herança cartesiana que concebe o corpo como simples extensão da mente. Gaya (2006) denuncia o discurso que esconde a ausência do corpo humano em defesa do ser humano.

[...] o discurso pedagógico contemporâneo tão rico em intenções e inovações e que tanto exalta relações de necessária interdisciplinaridade, pluridisciplinaridade, transdisciplinaridade e complexidade, permanece míope. É uma visão míope reduzir o ensino escolar apenas à formação do

res cogitans. Ora, não há mente, não há razão e não há espírito que não esteja encarnado. Sou corpo. Corpo vivido. Sou sentimentos, emoções e razões num corpo humano. (p. 251).

Sabemos do discurso pedagógico presente nas instituições escolares e da sua riqueza de intenções, mas é fato que “o corpo não vai à escola”. A supervalorização da formação do res cogitans24 despreza o corpo vivido, sentimentos, emoções e razão num corpo humano (GAYA, 2006).

Portanto, trata-se de uma pedagogia que valoriza apenas a formação intelectual. Quando oportuniza a chegada do corpo à escola, ocorre de forma estática, disciplinada, mecânica, trata-se de um corpo para ocupar um espaço. Corpo sem movimento, sem vida, sem participação no processo formativo.

Corpo aprisionado, imóvel e de costas para o mundo, vendo sombras na parede e tomando-as pela realidade, tal como na alegoria da caverna de Platão. Corpo disciplinado, ordenado, de forma que seus sentimentos, suas emoções não penetrem no mundo demasiado humano da suprema razão. Corpo desprezado. Corpo sem sentido. Razão sem corpo. Enfim uma pedagogia que acaba por resumir sua anunciada complexidade ao res

cogitans (GAYA, 2006, p. 252).

Nos planos escolares, pouco se expressam sobre a relevância do corpo para além da formação do res cogitans, da valorização da racionalidade. Para explicar essa proposição Morin (2003), ao tratar da complexidade, apresenta a racionalidade como o diálogo incessante que cria estruturas lógicas e que as aplica sobre o mundo real, admitindo a insuficiência de nosso sistema lógico quando esta lógica é insuficiente. E a racionalização que consiste em encerrar a realidade num sistema coerente, sendo desviado ou posto de lado tudo que contradiz esse sistema coerente. Corpo posto de lado.

Trata-se então, do trabalho com pedagogias que primam pela complexidade em seus discursos, mas que valorizam e põem em prática o pensamento cartesiano, fazendo emergir a prática de um ensino onde o corpo em sua complexidade não está presente. Todavia, anunciam-se novos tempos, tempo de pôr em prática o discurso de outras pedagogias e trabalhar no viés da complexidade, onde não há mente sem corpo (DAMASIO, 2000). Nesse tempo, pressupõe Gaya (2006): (1) os discursos apontam para a superação do paradigma iluminista; (2) as propostas pedagógicas procuram perspectivas interdisciplinares; (3) as novas formas de configuração curricular e de organização do espaço escolar se fazem mister. Assim, devemos superar o dualismo corpo - mente.

Portanto, reconhecer a relevância do corpo para produção de conhecimento é vislumbrar a complexidade. É sentir, tocar, emocionar-se, correr, experimentar, vivenciar, dançar, lembrar, esquecer. É superar o dualismo e reconhecer os sujeitos como seres humanos. Destruir as amarras que aprisionam e disciplinam o corpo, desprender-se da cultura que valoriza o que é apenas intelectual e menospreza o que se constitui real.

Levar o corpo em sua complexidade para a escola é a grande questão (GAYA, 2005). Como? De que forma? Quando? Isso é possível? Como desconstruir a cultura que valoriza o dualismo corpo/mente? Cabe nos planos de ensino a importância do corpo? Enfim, cabe reinventar o corpo? Como reinventá-lo não apenas nas aulas de Educação Física, mas, no trabalho interdisciplinar, transdisciplinar, pluridisciplinar a ser realizado

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nas instituições escolares? São inúmeras as indagações, poucas as certezas temporárias e infinitas as possibilidades formais e informais de levar o corpo à escola. Como iniciamos? Que tal pelo Estágio Supervisionado e pela Ciências e Biologia!

Pensando em como levar o corpo à escola e superar o racionalismo presente nos espaços escolares, vem em mente a necessidade de investimentos na formação continuada dos professores da Educação Básica e em práticas durante a formação inicial que deem suporte ao reconhecimento da constituição da articulação entre conhecimento biológico e cultura.

Consciente quanto ao trabalho com o tema “corpo” em espaços formativos, apresento, em seguida, a necessária apreensão do corpo em suas múltiplas dimensões sócio-bio-médicas-culturais e política, visto que, não podemos negar a importância do tema “corpo humano” no currículo da escola da Educação Básica, dos Cursos de Formação de Professores/as das Ciências Biológicas. Nestes espaços cabe a admissão às múltiplas culturas em movimento nos diversos espaços educacionais; admissibilidade que devem compor todos os campos disciplinares

3.3 A perspectiva bio-médico-sociocultural e política do corpo e a formação de