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O ESTATUTO DA NATUREZA (FOEDERA NATURAE)

2. A FILOSOFIA DA NATUREZA EM LUCRÉCIO

2.7. O ESTATUTO DA NATUREZA (FOEDERA NATURAE)

De tudo que fora exposto, pode parecer que os epicuristas propuseram, com alguns séculos de antecedência, leis de indeterminação semelhantes àquelas da moderna Física Quântica. Não se trata, evidentemente, de atribuir méritos científicos indevidos ao epicurismo. Mas, não custa rememorar que as preocupações filosóficas dos platônicos estavam voltadas basicamente para questões políticas e éticas – e, de certo modo, morais –, e suas causas finais, além de uma forte obsessão pelo pensamento matemático e pelos filósofos que já o haviam desenvolvido, como os pitagóricos. A própria música e a astronomia eram, por assim dizer, duas ciências intermediárias que combinadas realizaram a conjunção entre as qualidades do intelecto e o mundo. Para Boyancé (1963, p. 85), foi essa aquisição sistematizada e possivelmente distorcida de saberes (a matemática, a harmonia musical e a astronomia) que levou os platônicos a uma direção de pura dedução a priori, preferindo as especulações arbitrárias sobre os números às realidades observáveis, por exemplo. Mais ainda, este retorno dos epicuristas aos pré-socráticos distantes da tradição platônica, pode ser considerado como um movimento reacionário em relação à tradição inaugurada por Platão.

Para os epicuristas, tais leis deveriam ser gerais e evidentes por si mesmas, e não apenas baseados em ponderações sobre a geometria e a matemática, os quais, parece, foram a fonte das especulações filosóficas de Leucipo e Demócrito185. A própria mecânica dos corpos e a física enquanto saberes basilares para a apreensão do real se justificariam somente pelo fato de que seu método analógico era útil para investigar a causa dos fenômenos que estão sob o limite inferior dos sentidos. Dessa maneira, não há como afirmar que existe em Lucrécio (e mesmo em Epicuro) um esforço para estabelecer leis científicas que fundamentem uma filosofia da natureza. Seria mais apropriado reconhecer que tanto um como outro estabeleceram a priori alguns princípios determinados e verdadeiros, que dizem respeito à

185 Cícero (De finibus, 2, 20) deplora que Epicuro não possuísse os mesmos conhecimentos geométricos que

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existência e às características dos elementos primordiais (átomos e vazio) e aos fenômenos percebidos pelos sentidos, os quais compõem o todo, num imanentismo singular.

Outro ponto possível de afirmar é que a natureza desses princípios gerais impõe certos compromissos intelectuais, além de algumas limitações, mas, surpreendentemente, eles oferecem um tipo especial de segurança teórica e conceitual: é o “estatuto da natureza” (foedera naturae), a que se refere Lucrécio.

Depois, a massa da matéria nunca foi mais condensada, nem teve jamais maiores intervalos. Efetivamente nada vem aumentá-la, e nada se perde. Por isso o movimento que anima agora os elementos dos corpos é o mesmo que tiveram em idades remotas e o mesmo que terão no futuro, segundo leis idênticas; o que teve por hábito nascer nascerá nas mesmas condições; e tudo existirá e crescerá e será forte de sua própria força, segundo o que foi dado a cada um pelas leis da natureza. Nem força alguma pode modificar o conjunto das coisas: não há realmente lugar algum para onde possa fugir, de todo, qualquer elemento da matéria, ou donde possa vir, para irromper no todo, qualquer força nova que mude a natureza das coisas e modifique os movimentos (Da natureza, II, 294-307).

Esse estatuto define, de modo único, tudo aquilo que pode vir a ser e, por conseguinte, o seu modo de realização. Porém, há um limite para tudo o que vive: a potencialidade dos seres é uma característica que lhes é própria, mas, ao mesmo tempo, é determinada pelas foedera naturae. Tais leis determinam, por exemplo, que nenhum mundo ou alma são imortais; ou ainda, que existem espécies fixas de vegetais e animais, determinadas a partir de seus corpos primevos (átomos). Além disso, há um princípio elementar subjacente na argumentação de Lucrécio, que é o de uma uniformidade das leis: os seres humanos não ficam de fora das condições que lhes são impostas. Por outro lado, apesar do argumento indicar a ideia de regularidade na natureza, não se pode afirmar que, na passagem acima, Lucrécio se refira exclusivamente a um conjunto ordenado de fenômenos naturais. Isso seria admitir o fatum estóico, o que estaria em contradição com os princípios gerais do atomismo.

Citando Schuhl186, Boyancé (1963, p. 87) afirma que, em certo sentido, as foedera naturae se referem a uma espécie de pacto natural (semelhante ao órkon187 de Empédocles, que desempenha um papel fundamental na sua concepção de mundo)188, em que é possível perceber a projeção do social – isto é, do coletivo – na cosmologia epicurista. O inverso

186 Schuhl, 1943, p. 300. 187 Do grego ὅρκου.

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também é verdadeiro: o cosmo como um grande espelho da ação humana, em última análise, de uma ética. A tese não é estranha ao pensamento antigo, já que as discussões filosóficas tanto dos gregos como dos romanos, invariavelmente, tinham como pano de fundo uma articulação entre a natureza e o espírito; “pacto”, neste contexto, significa uma série de compromissos para a vida – no caso dos epicuristas, para uma vida equilibrada – oriundos das leis naturais. Sendo uma lei, se impõe como um dever, e para o homem antigo faz parte de uma vontade no plano ético.

Outra metáfora das foedera naturae está ligada a elementos religiosos ou jurídicos. Embora de menor importância para o contexto desta tese, esta hipótese é plausível na medida em que um dos objetivos da obra de Lucrécio é afastar do vulgo os medos e temores insensatos, causados, sobretudo, pela religião. Aliás, a época em que viveu o poeta romano foi especialmente conturbada – do ponto de vista político – e muitos direitos fundamentais dos cidadãos foram provavelmente negligenciados. No primeiro caso, a regularidade das leis naturais seria, para Lucrécio, o argumento definitivo que validaria a tese de que o mundo não sofre a influência dos deuses.

Se retiveres tudo isto, já bem conhecido, logo a natureza te aparece como livre, isenta de senhores soberbos e realizando tudo espontaneamente, sem qualquer participação dos deuses. De fato – e pelo sagrado coração dos deuses, que em paz tranquila passam um plácido tempo e uma vida serena! – , quem poderia ter mãos bastante firmes para manejar as fortes rédeas do infinito, quem poderia fazer girar harmoniosos todos os céus, aquecer com fogos etéreos todas as terras fertilizadas, em todos os lugares, em todos os tempos achar-se sempre pronto a fazer trevas com as nuvens, a abalar com o trovão os espaços serenos do céu, depois enviar os raios e abater muitas vezes o seu próprio templo, e, retirando-se para os desertos, lançar furiosamente o dardo que muitas vezes passa além dos maus e tira a vida aos que o não merecem, aos que não são culpados? (Da natureza, II, 1089- 1104).

Os deuses não são responsáveis pela criação do mundo, consequentemente, nada poderão fazer para lhe interromper a velhice e impedir o seu fim. O mundo não é eterno, embora sejam os corpora prima que formam o universo.

No segundo caso, a metáfora jurídica está relacionada principalmente à maneira como Roma tratava seus aliados e adversários, sejam eles Estados ou indivíduos (Funde, petens placidam Romanis, incluta, pacem; Nam neque nos agere hoc, patriai tempore iniquo)189. Há uma ideia subjacente de “lei”, no sentido estrito de deveres, obrigações (no

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caso dos primeiros) que incluíam a defesa da pátria (ac virtute velint patriam defendere terram)190 e restrições (no caso dos últimos). Lucrécio nos oferece, de forma implícita, pistas sobre a forma como a República se relacionava tanto com seus aliados ou patrícios, como com seus opositores. Apesar de uma provável – porém, sólida – origem jurídica para a ideia de “lei”, nesse contexto, o equivalente para “lei natural” seria uma “convenção natural” (foedus naturae)191. Esse parece ser o significado mais adequado, já que, de acordo com o contexto da passagem, Lucrécio provavelmente está se referindo à natureza negativa de tais leis, relacionadas à proibição, restrição e prescrição de direitos dos cidadãos romanos. Se for o caso, tal caráter negativo das foedera está de acordo com a utilização do termo no sentido anteriormente mencionado, além de reforçar, principalmente, as barreiras intransponíveis entre as teses de um mundo criado ao acaso e aquele surgido a partir de uma vontade divina, tornando impossível tal intervenção. Pelo que já fora exposto sobre o assunto, esta parece ser a hipótese mais adequada, de fato.

Os corpos particulares estão submetidos às foedera naturae, as quais determinam os movimentos dos seres e, por conseguinte, seus comportamentos observáveis. As “leis” funcionam como um quadro delimitador do que efetivamente tais corpos podem ou não podem realizar192. Concluímos que Lucrécio se refere a tais corpos como elementos do macrocosmo (nesse caso, especificamente aos corpos que fazem parte do grupo dos seres vivos), o que leva a outra questão: no nível do microcosmo, os movimentos dos corpora prima não são inteiramente determinados, uma vez que é necessário considerar o caráter aleatório e casual do movimento dos átomos. Há uma tensão – ou se preferirmos, um jogo – entre o determinismo imposto pelas foedera naturae aos corpos sensíveis (nascimento, crescimento, decadência e morte), e o indeterminismo e a eternidade que fazem parte dos elementos que só podem ser apreendidos pelo intelecto – os átomos – mas igualmente submetidos às leis da natureza. Resolver essa tensão e investigar o estatuto dessas duas dimensões é necessário para compreender o alcance de tais proposições, seus limites, possibilidades e impossibilidades, além de esclarecer como funciona, em detalhes, as múltiplas explicações epicuristas para o mecanismo do universo.

190 DRN, II, 641. 191 Convenção natural. 192 Da natureza, II, 297-301.

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Essa tensão é quebrada pelo clinamen, um movimento desvinculado de todos os outros, responsável por introduzir a liberdade no jogo de tais leis193. Uma liberdade limitada, já que os corpos sensíveis estão sujeitos ao desaparecimento. De certa maneira, esse parece ser o foedus naturae por excelência, da maneira como é descrito por Lucrécio. Trata-se de uma convenção em sentido estrito, não de uma lei. O clinamen já aparece a priori, com uma função razoavelmente bem definida no arcabouço na filosofia da natureza de Lucrécio: estabelecer a harmonia entre as foedera naturae do microcosmo e do macrocosmo. Mas, para que as implicações dessa harmonia possam ser entendidas de modo adequado, será necessário estabelecer outras relações que ultrapassam a análise puramente mecânica dessa hipótese. Duas delas situam-se no âmbito da complexa teoria epicurista da alma (anima) e das sensações (sensus). A outra se dirige a um estudo aprofundado da cinética dos corpora prima, o qual veremos no próximo capítulo.

193 Não se deve confundir as foedera naturae com as foedera fati (Principium quoddam, quod fati foedera rumpat, ex infinito ne causam causa sequatur), isto é, as leis do destino, as quais são quebradas pelo movimento

do clinamen (DRN, II, 254). A declinação é justamente a resposta de Lucrécio à sequência indefinida de causas, na qual se assenta o destino dos estóicos. Cf. Boyancé, 1963, p. 88.

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