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O INFINITO E O ILIMITADO NO UNIVERSO ATOMISTA

2. A FILOSOFIA DA NATUREZA EM LUCRÉCIO

2.6. O INFINITO E O ILIMITADO NO UNIVERSO ATOMISTA

Após a análise dos elementos constituintes da natureza, faz-se necessário investigar, na doutrina epicurista, algumas questões ligadas ao ilimitado. No pensamento atomista, não é possível conceber para o universo qualquer limite. Se fosse possível existir átomos em número infinito, caindo em um vazio finito, o espaço não poderia contê-los. Pode-se dizer que

171 Cf. Giussani, 1896, p. 59. 172

DRN, I, 615-616.

173 Lucrécio não utiliza esse termo composto para denotar a vontade livre, mas os versos sobre o clinamen – que

serão analisados no próximo capítulo – apontam para que parece ser uma escolha possível. Libera voluntas significa a vontade autônoma, portanto, livre dos seres vivos. Alguns especialistas de língua inglesa, principalmente, o utilizam como uma tradução para “livre arbítrio”. Apesar não existirem diferenças semânticas significativas entre a “vontade livre” e o primeiro, optamos por utilizar libera voluntas conforme a tradução expressa no texto. O objetivo fora demarcar a noção, deixando-a circunscrita à Antiguidade, já que “livre arbítrio” é uma terminologia própria do medievo, dando margem a interpretações teleológicas que certamente não são compartilhadas pelo poeta romano.

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o silêncio dos espaços infinitos é a garantia de tranquilidade para o sábio, comprovando a ausência dos caprichos do divino na ordem natural do mundo. Mas, para afirmar o infinito dos átomos, é necessário antes estabelecer outra hipótese que corrobore com tal afirmação, a saber, o infinito do universo e do espaço.

O todo é ilimitado, qualquer que seja a direção; do contrário, deveria ter um fim. Ora, não pode haver fim algum a nada, sem que haja, para além, qualquer coisa que o limite, de modo que exista um ponto para além do qual é impossível aos sentidos segui-lo. Ora, tem-se de reconhecer que para lá do conjunto das coisas nada existe: não tem extremidade; carece, pois, de fim e de limite. E não importa a região em que se possa estar: qualquer que seja o lugar em que se esteja, sempre se deixa o todo imenso alargar-se por igual a toda parte.

Depois, se se aceitar que todo o espaço é finito e alguém chegar correndo aos últimos bordos e daí lançar um volátil dardo, achas que, arremessado com toda força, se dirigirá aonde foi atirado, voando ao longe, ou te parece que alguma coisa o poderá impedir ou deter? Tens de escolher um lado ou outro; ora, qualquer deles te impede a fuga e te obriga a conceder que não há limite.

Efetivamente, quer haja um obstáculo que o impeça de atingir o ponto aonde foi arremessado, aí parando, quer prossiga a carreira, o que é certo é que não partiu do extremo limite: continuarei sempre com a mesma razão e, qualquer que seja o lugar onde coloques os limites extremos, perguntarei o que sucede por fim ao dardo. O que vai acontecer é que nenhum limite poderá estabelecer-se: fugas numerosas prolongarão sempre o espaço livre.

Além disso, se todo o espaço universal estivesse cerrado de todos os lados e fosse limitado, já há muito a massa de matéria, arrastada pelo peso, se teria reunido no fundo, e nada se poderia passar sob a abóbada do céu, nem haveria mesmo céu, nem a claridade do Sol: de fato, toda a matéria acumulada por sedimentação no decorrer da eternidade jazeria inerte. Mas não existe descanso algum para os corpos elementares, porque não há fundo nenhum a que possam confluir e em que possam estabelecer-se. Tudo anda sempre em contínuo movimento e por todos os lados; e do infinito se precipitam, sem cessar, os elementos da matéria (Da natureza, I, 958-997).

O universo é o agregado de todas as coisas, sendo ainda o todo (tó pan). Visto ser infinito, ele não pode ser limitado por qualquer outra coisa174. Se fosse possível estabelecer um limite para o universo, seria o mesmo que separá-lo de si, dando origem a dois universos, o que não faz sentido. Mesmo se existisse qualquer coisa que o limitasse, seria necessário afirmar a sua participação no todo. Esse raciocínio levanta ainda a questão do referencial, em se tratando do ilimitado. Em um universo infinito, não há extremidades nem centro, já que o centro está em toda parte175. Dito de outro modo, não há um centro absoluto, mas um ponto

174 Da natureza, I, 963-964. 175 Idem.

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que pode ser atribuído arbitrariamente. Dessa forma, ele se torna relativo. Sendo assim, se o vazio é infinito, é impossível estabelecer um lugar absoluto no espaço.

Pelas análises precedentes, é possível deduzir que o infinito não é considerado apenas em sua totalidade, mas também como um espaço indeterminado176. E o espaço é, verdadeiramente, infinito, já que não há nada fora do todo, e assim não há nada fora do espaço. O espaço é, de certa forma, o próprio todo, assim, existe apenas um único espaço, com diferentes átomos em número infinito e movimentos localizados em lugares diferentes no mesmo espaço177. O espaço é indivisível, independente da sua grandeza e, em sentido estrito,

não é possível atribuir-lhe um tamanho, exceto em um caso especial. A passagem de um infinito enquanto qualidade para o infinito quantitativo só é possível quando lhe é acrescentado um limite, ou seja, quando este espaço é ocupado por um corpo.

Podemos inferir que esse princípio de limite de deslocamento indefinido do espaço (aumentar e diminuir de tamanho, conforme a localização espacial dos átomos), demonstra que tal limite não pode ser um atributo absoluto do espaço, mas deve ser estabelecido em relação a um espaço que só pode ser limitado por outro constituinte, no caso, os átomos. Lucrécio mostra que, se o espaço for considerado finito, ao lançar um dardo a partir da sua borda (isto é, do seu limite), alguma coisa iria deter esse objeto ou prosseguiria em seu movimento178. Ou o dardo encontraria um espaço vazio ou um espaço ocupado, ou seja, o próprio espaço. Como resultado, para que os átomos possam ser um dos constituintes das coisas, deve-se assumir um espaço ilimitado.

Se os átomos estão em constante movimento, numa queda de cima para baixo, o vazio é a exigência desse movimento. O espaço vazio (o espaço não ocupado), enquanto constituinte infinito da natureza, é a própria condição de sua continuidade ilimitada. Se o espaço tivesse um limite, isso faria com que os corpora prima ficassem retidos inertes na parte inferior do universo: “a massa de matéria, arrastada pelo peso, se teria reunido no fundo, e nada se poderia passar sob a abóbada do céu”179. Nada na natureza poderia ser criado. Dessa maneira, é o movimento infinito dos átomos que garante a agregação e a desagregação dos corpos compostos, ou seja, o movimento e a vida do próprio universo. É necessário compreender que isto só é possível se não houver limite para o universo e para o espaço.

176 Idem. 177

Só é possível afirmar que os átomos são infinitos em número apenas quando estão em queda no vazio igualmente infinito, isto é, antes de se juntarem e formarem os corpos sensíveis.

178 Da natureza, I, 970-975.

179 DRN, I, 985-987: Finitumque foret, jam copia materiai, undique ponderibus solidis confluxet ad imum, nec res ulla geri sub caeli tegmine posset.

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Por outro lado, não faz sentido falar de um movimento no vazio infinito atribuindo um ponto (ou instante) inicial ou final. Tanto um como outro podem ser considerados como o centro desse vazio, dessa forma, não há movimento em relação ao espaço180. Logo, é possível afirmar um movimento eterno dos átomos181. No atomismo epicúreo, se faz necessário admitir um número infinito de átomos em movimento eterno no vazio, a fim de explicar como se formam os corpos fenomênicos e compostos, os quais, por sua natureza, têm um limite de magnitude. Mas, uma vez que os corpos sensíveis são limitados no espaço, é necessário que, após se formarem, tenham um número finito de átomos.

Lucrécio poderia justificar a composição do mundo a partir de um número finito de átomos, o que já seria suficiente para a sua argumentação inicial acerca do ilimitado, mas não o faz. Segundo Marcel Conche (1967, p. 48), se assim fizesse, o poeta romano teria que apelar a um poder divino para a criação do mundo sensível. Os átomos que compõem os corpos sensíveis não estão dispersos, mas juntos (coniuncta)182, de forma organizada e ordenada. Seria praticamente impossível que um número finito de elementos dispersos no vazio infinito pudessem se reunir e se agregar, e assim, não haveria qualquer possibilidade dos átomos formarem um conjunto ordenado como o mundo. Para tanto, se faria necessário justificar a natureza das coisas através do sobrenatural e de um plano estabelecido a priori183, o que, evidentemente, foge ao objetivo de Lucrécio.

Portanto, para que se possa pensar que a partir de um agregado de átomos, em um movimento de queda vertical no vazio, possam se combinar e produzir os corpos compostos do universo, deve-se admitir que o número de átomos seja infinito184. Dessa forma, os elementos primários se misturam e se reorganizam das mais variadas formas possíveis, produzindo as combinações estáveis e os mundos. O todo organizado nada mais é do que uma configuração especial de átomos agrupados, com todas as suas combinações e agregados possíveis, dentro dos limites e possibilidades impostas pelas condições iniciais.

Sobre os postulados do atomismo acerca do infinito, será necessário assinalar que os argumentos têm o objetivo de justificar a ausência de um ponto fixo referencial. “No infinito

180 Cf. Conche, 1967, p. 48. 181

A conclusão de Conche é correta, mas há outro aspecto que deve ser mencionado, no que diz respeito ao movimento no vazio: só é possível falar de um movimento em relação ao espaço infinito caso se possa, arbitrariamente, atribuir relações topológicas – isto é, de lugar – nesse mesmo espaço. Isso significa determinar um “alto” e um “baixo” em relação a outro ponto qualquer, como faz Lucrécio. Caso contrário, a tese epicurista do movimento não responderia adequadamente aos paradoxos eleatas da imobilidade dos corpos. Obviamente, a dificuldade persiste: ao atribuir tais relações, o conceito de infinito é enfraquecido.

182DRN, I, 449.

183 Da natureza, I, 1021-1022. 184 Da natureza, I, 1023-1038.

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não se dão nem centro nem periferia”, conforme Mondolfo (1968, p. 452). Não há um lugar natural no universo, no sentido de um espaço determinado (alto e baixo) e teleológico. O próprio movimento dos átomos no vazio não está submetido a uma razão do destino: a ordem é substituída pela aleatoriedade, pelo efêmero e pelo indeterminado.