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OS PRAZERES E OS MEDOS DO ESPÍRITO: A RECUSA DOS BENS

3. A CINÉTICA DA NATUREZA

3.3. OS PRAZERES E OS MEDOS DO ESPÍRITO: A RECUSA DOS BENS

Na continuação do argumento, Lucrécio constata a fortiori que; se a riqueza e o poder não têm utilidade para o corpo224, também não são úteis ao espírito. A passagem é reproduzida a seguir:

Por isso, visto em nada serem os tesouros úteis ao corpo, nem a nobreza nem a glória de mandar, o que falta é pensar que também não são úteis ao espírito. Ora, é certo que o verem-se por acaso as legiões, cheias de ardor, simular a guerra no campo de Marte, com reservas numerosas, providas de armas e igualmente animadas, ou ver-se uma frota fazer-se ao largo com celeuma, em nada influi para que fujam do espírito, temerosas, as pávidas crendices, nem os temores da morte deixam o peito vazio e livre de cuidados.

E, se pensarmos que tudo isto é ridículo e vão, o que é verdade é que os terrores dos homens e os cuidados pertinazes não temem o som das armas nem os terríveis arremessos, e audaciosamente se metem entre reis e poderosos, não receando os fulgores do ouro nem o brilhante esplendor de um vestuário de púrpura; por que razão se há de duvidar de que só a inteligência o possa fazer, quando toda a nossa vida se passa labutando entre trevas? (DRN, II, 37-53).

Deixando de lado a retórica explícita da argumentação do poeta romano, a passagem refere-se a um princípio básico do pensamento epicúreo, a saber, o da dependência dos estados do espírito aos estados do corpo (os prazeres e as dores da alma nascem dos prazeres e sofrimentos do corpo)225. Essa interrelação pode ser comparada a certa economia das afecções: a dor do corpo – isto é, a dor física – é reduzida com o sofrimento atual da alma,

224 DRN, II, 37: Quapropter quoniam nil nostro in corpore gazae. “Gazae” é o termo persa para “tesouro real e

especificamente oriental”, sugerindo um poder permanente, conseguido às custas principalmente da riqueza. A posição de Lucrécio está em conformidade com o pensamento dos epicuristas sobre a riqueza. A esse respeito, ver Fowler, 2002, p. 112.

225 Cf. Cícero, De finibus. I, 55: “animi autem voluptates et dolores nasci fatemur e corporis voluptatibus et doloribus.”

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uma lembrança perturbadora de uma dor passada, ou ainda, com o receio de uma dor futura, sendo que esta última relação é a mais importante dentro do contexto mostrado.

Tal ontologia da dor é, certamente, inspirada em Epicuro (Máximas Principais). Não basta saber que as necessidades podem ser satisfeitas com facilidade, e assim, na posse de um prazer de máxima magnitude, remover a dor (esta seria a verdadeira natureza do prazer)226. É necessário afastar, pelo conhecimento, o medo de que, em algum momento futuro, possamos estar com outros sofrimentos – famintos ou sem-teto, por exemplo. Se nós sabemos que a duração da dor é finita227, não faz sentido ter medo do sofrimento físico ou da doença. Trata- se de imaginar a dor como um mínimo, em um nível no qual aquém dele, qualquer sofrimento não faria sentido.

No entanto, dois medos intimamente relacionados ainda subsistem: o dos deuses e o da morte. Tais temores podem ser reduzidos àqueles relacionados ao sofrimento corpóreo, seja neste mundo ou em outro. Mas eles não são facilmente removidos por um simples conhecimento dos mecanismos do prazer e da dor. Para afastar os medos, é necessário conhecer a verdadeira natureza dos deuses228 e da morte229. No primeiro caso, é importante destacar que os epicuristas não negam os deuses. Por outro lado, se tudo o que existe é corpóreo, e se os deuses existem230, eles são formados de corpos elementares, cuja natureza é muito sutil (DUVERNOY, 1993, p. 61). Além disso, por viverem nos intermundos, não interferem na vida mundana nem são afetados pelas ações humanas231.

No início da passagem, Lucrécio observa que a riqueza e o poder seriam inúteis contra as dores do corpo e, portanto, contra os outros medos (dos deuses e da morte). Mas, mesmo que riquezas não levem ao espírito tranquilidade e prazer, ainda podem levar benefícios, quando se trata das necessidades básicas do corpo. Minimizar a importância das riquezas para o sábio pressupõe a recusa dos bens exteriores (gloria regni)232. O argumento é particularmente interessante, uma vez que a noção de gloria está ligada às concepções políticas romanas da Antiguidade. Associada à boa reputação, é um dos valores mais privilegiados pelos conterrâneos de Lucrécio (FOWLER, 2002, p. 113). Efetivamente, era parte da tradição militar de Roma atribuir honras e glórias àqueles que prestavam relevantes

226 DL, X, 139 (III); Épicure, Lettres et maximes, III. 227 DL, X, 140 (IV); Épicure, Lettres et maximes, IV. 228 DL, X, 139 (I); Épicure, Lettres et maximes, I. 229

DL, X, 139 (II); Épicure, Lettres et maximes, II.

230 DL, X, 123: “Os deuses realmente existem, e o conhecimento da sua existência é manifesto” (Carta a Meneceu).

231 Épicure, Lettres et Máximes, p. 36-37.

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serviços ao país, especialmente se fossem traduzidos em conquistas territoriais e riquezas. Ainda que a fama em si não seja considerada um mal, para um epicurista não é algo a ser buscado nem desejado233. Assim, os reluzentes prêmios da glória seriam apenas falsas luzes, incompatíveis com o modo de vida do sábio.

A metáfora militar é retomada em forma de ironia na passagem acima, especificamente entre os versos 40 a 46. No início, Lucrécio afirma que é também possível afastar os temores do espírito observando a movimentação frenética234 do poderio militar de um exército em campo de batalha, simulando uma guerra. A linha descritiva e a exposição da analogia são bastante elaboradas, mas o fio da argumentação é construído sob uma vertente de escárnio (si non forte tuas legiones per loca campi)235, de uma pompa caricatural236. Uma possível alusão histórica a Xerxes, rei da Pérsia, pode ser considerada, embora Lucrécio possa estar se referindo aos seus próprios contemporâneos e às legiões de César. Embora a importância da análise do trecho citado seja pequena, serve para reforçar a insistência do poeta romano em analogias cotidianas, com o objetivo de demonstrar as idiossincrasias subjacentes aos desejos não naturais e não necessários (como a glória), e a sua relação com os medos. A metáfora militar é um bom exemplo da ironia com que o aparentemente sisudo Lucrécio tratava o tema.

O final da passagem é instrutivo. O poder da razão (rationi potestas)237 é indiscutível e o único que pode livrar o homem das trevas da ignorância, além de afastar os medos e os temores do espírito. O termo rationis é singular, pois, o sentido usado por Lucrécio é o de um mecanismo do pensar, e, por conseguinte, é parte do vocabulário da physiología epicúrea, sendo o equivalente do logismós238. No epicurismo, seu uso se estende a todo o pensamento racional239. O poder que se refere Lucrécio (potestas) tem, de certa forma, o objetivo de legitimar, pelo intelecto, a eliminação dos temores da morte imputados pela religião. Em um

233 Cf. Épicure, Lettres et maximes, p. 259-269.

234 DRN, II, 41: Fervere cum videas, belli simulacra cientes. O verbo fervere é utilizado em outros contextos do

DRN, no sentido de calor (I, 491; IV, 491; V, 1255 e VI, 800), mar (VI, 442) e som (IV, 608). Recorrer a imagens físicas que insinuam a mudança (do frio para o quente, o deslocamento do som), pode ser uma estratégia de Lucrécio para afirmar que as sensações físicas sempre estão em movimento. No caso da passagem reproduzida, a analogia empregada pressupõe a confusão resultante do movimento dos legionários e o som da luta.

235

DRN, II, 40. Comandar as legiões romanas era motivo de grande distinção.

236 Sobre essa interpretação, existem dificuldades textuais que fogem ao escopo desta tese. Alguns estudiosos

afirmam que há diferentes versões latinas para os versos citados, com alguns acréscimos e omissões, levando a crer que o manuscrito original foi danificado neste trecho, sendo posteriormente corrigido pelos copistas do medievo. Chega-se até a se considerar uma possível “contaminação” dos manuscritos. A esse respeito, ver Fowler (2002, p. 115) e Bailey (1964, p. 217-310).

237 DRN, II, 52-53.

238 DL, X, 132; Cf. Epicuro, Carta a Meneceu, 132. 239 Cf. Sedley, 1973, p. 89-92.

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primeiro sentido, a razão tem um poder curativo e terapêutico para as doenças da alma. Numa segunda aproximação, opera mais uma vez a escolha do sábio pelo conhecimento e a recusa da ignorância.