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Este texto é parte integrante do projecto-livro “Uma Luva na Língua”, com ensaios sobre António Barros [em preparação].

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1 Este texto é parte integrante do projecto-livro “Uma Luva na Língua”, com ensaios sobre António Barros [em preparação].

exemplo, é formado pelas letras ‘P EX’ alinhadas verticalmente, com ‘P’ negro sobre a forma oval branca (que sugere o ‘O’) e ‘EX’ em branco sobre fundo negro. Na sua configuração gráfica e espacial aqueles signos constroem simultaneamente uma alusão ao movimento PO.EX (com a figuração do ovo a evocar, adicionalmente, obras de António Aragão e Silvestre Pestana, e o acrónimo a referenciar a afirmação retros- petiva do movimento ‘poesia experimental’ realizada no final da década de 1970); uma recriação da memória do autor como observador e participante na exploração do concetualismo e da processualidade na criação artística; e uma referência ao processo político de dissolução da soberania da identidade associada ao ‘P’ pictogramático afixado nos automóveis como abreviatura de Portugal. A força ilocucionária destes signos enquanto língua em ação depende de uma rigorosa configuração material capaz de concetualizar múltiplos estratos referenciais e simbólicos.

Idêntica estratificação semântica surge na gestualidade enunciativa de outros objetos que articulam a refe- rência ao real social e político com a memória individual, através de associações paradoxais e enigmáticas, como acontece na obra ‘Com Pés de Vegécio’ (2012). As palavras nas palmilhas dentro dos sapatos, os sa- patos e os grampos que os prendem ao livro-suporte mantêm entre si o nexo oblíquo necessário para gerar um fluxo indecidível de sentido. Graças a isso, a obra ganha a presença do inconsciente que a torna capaz de exceder aquilo que diz e aquilo que faz. A fisicalidade do real sedimentado na memória pode surgir ainda associada à perceção dos objetos no mundo e do mundo como objeto. Na instalação «Valsamar» (2010) a experiência do lugar é evocada por meio da contiguidade material das inscrições fotográficas e fonográficas e pela presença da própria água e das areias vulcânicas. A materialidade do real é designada e convocada através da sua reinscrição sensorial nos olhos e nos ouvidos em interação com a prótese abstrata das pala- vras. Refletindo o painel vertical de fotografias do mar a preto e branco dentro da sua caixa preta horizontal, o espelho de água torna-se num correlato da presença vestigial de uma perceção singular do mar num lugar da memória, mas também uma projeção imaginária do desejo de estar diante do mar como se nunca antes o tivesse visto.

Para compreendermos um pouco mais o modo como a obra de António Barros joga com a performatividade da significação, devemos considerar ainda o movimento simétrico de objetualização da palavra. Se uma intervenção material de deformação e transformação de um objeto quotidiano o transforma num signo tri- dimensional, a intervenção gráfica sobre a palavra tem o efeito de objetivar a linguagem, tornando-a visível e tangível. O movimento em torno de objetos ressignificados como escultura ou instalação encontra o seu equivalente no movimento em torno da palavra objetualizada. O espaço concetual do sentido ganha um corpo material diante do sujeito, como se os processos metafóricos e metonímicos de reassociação de signi- ficantes pudessem traduzir-se num espaço tridimensional e cinético de objetos-signos e palavras-objeto em interação percecionável. Objetos e palavras inscrevem a sua presença gestual no real, chamando a atenção para a sua ação na produção das possibilidades de mundo. Ao apontarem para si próprios, auto-referencian- do-se, sugerem a coincidência consigo próprios (como se a linguagem pudesse naturalizar a ligação entre signos e referentes), mas também o movimento de substituição simbólica que, a partir de uma intervenção material, desencadeia um novo processo de sentido.

Num poema visual como ‘E s c r a v o s’ (1977), por exemplo, a possibilidade de transformação social sim- bolizada no período revolucionário através da palavra ‘cravos’ é ironicamente traduzida como um breve interregno entre uma ordem social anterior opressiva e uma ordem social posterior em que as condições iniciais se reconstituem. A imagem de uma outra forma de organização social, contida no próprio interior da palavra usada para significar uma ordem política opressiva, surge já como memória de uma possibilidade não realizada. A estrutura da palavra funciona como homologia da estrutura social, revelando a persistência de uma ordem de coisas e de sentido, mas também o potencial de transformação contido nessa ordem. O

desenho tipográfico da letra evoca as inscrições e palavras de ordem grafitadas no espaço apropriado das paredes nas ruas, tornando-se materialmente contígua da expressão de liberdade manifesta nessas inscri- ções. A repetição oferece na temporalidade do texto uma imagem concentrada da passagem do tempo, que documenta o seu tempo histórico e se oferece, ao mesmo tempo, como crítica do presente que expõe a brutal persistência retórica da palavra ‘cravos’.

Um trabalho similar de decomposição, recomposição e transformação da palavra ocorre em ‘Revolução’ (1977). A dinâmica do processo revolucionário é mimetizada graficamente através do apagamento gradual da letra ‘v’, substituída pela letra ‘s’, de novo por ‘v’ e, finalmente, através do apagamento da letra ‘r’. A longa tira que se prolonga da parede pelo chão fora evoca na repetição cinética das diferentes palavras a passagem do tempo. A transformação de ‘revolução’ em ‘evolução’, depois de um conjunto de estágios in- termédios em que a palavra procura uma ‘solução’, recapitula o intenso processo de lutas políticas e sociais e termina com uma alusão à reconstituição das estruturas de poder no Portugal pós-revolucionário. Na pala- vra ‘evolução’ está contida, por apagamento, a memória da palavra ‘revolução’ mas também a constatação do fracasso da mudança social. A transformação cinética de umas formas nas outras é a descrição de um processo histórico e ao mesmo tempo a presença da forma anterior da palavra como inconsciente reprimido da forma presente.

Interpelado pelo dinamismo da intersecção objeto-palavra e palavra-objeto, o sujeito apreende a ação e o efeito do sentido. O ato de fala, enquanto modo particular de ação social mediado pela língua, é alargado à presença performativa dos objetos na dinâmica social e na memória do sujeito. Ao decomporem e deforma- rem palavras e objetos, ao justaporem objetos e palavras, poemas-objetos e objetos-poemas materializam uma intervenção performativa do sujeito sobre a semiótica social, subvertendo os modos de produção e cir- culação de sentido quotidiano dos signos. Não se trata de fazer coisas com palavras ou de dizer coisas com objetos, refuncionalizando-os de acordo com uma pragmática pictográfica, mas de criar uma experiência da ação e do fazer poético como instanciação da singularidade percetiva numa forma material. Fazer poemas com objetos (e com as palavras como objetos) é dar-nos a possibilidade de percecionar o poema como ex- periência, que abre um espaço sentido e de imaginação de um outro mundo.

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