• Nenhum resultado encontrado

as heterOnímIas gráfIcas de antónIO sena

No caso de António Sena, as suas pinturas e desenhos possuem de comum ao longo dos anos uma insis- tência que confere à imagem fixada no suporte um destino ideal de comunicabilidade, que nunca se chega a concretizar. Por isso esta pintura habita uma condição de ilegibilidade, norteada pelo pressentimento céptico de que a comunicação se tornou inútil. Ou então é necessário lutar, persistir, até que ela faça sentido. Ema- ranhado de frases e palavras que se apresentam como novelos de obscuro sentido, arquétipos de palavras chave, ou de algarismos dispostos em séries cabalísticas, um infinito trabalho destinado a preencher a me- mória. A própria noção de suporte é mimada em várias pinturas do artista (designadamente da década de 70), criando no espectador a sensação de estar perante ardósias e quadros tingidos, reescritos, saturados. Estamos face a uma ideia de tempo ao longo do qual se repetem gestos, inscrições, uma quase paciência do dizer, todavia um tempo que não deixa outras marcas na pintura que não sejam as que decorrem do acto de pintar. E em António Sena este acto envolve uma exegese, como se cada quadro dependesse apenas daqui- lo que possa ser dito/pintado. Não há aqui pintura sem grafia. Cada quadro consiste num acumular de sinais entrelaçados, sobrepostos em camadas de sedimentação. Uma hábil retórica visual percorre estas obras onde os rabiscos se encavalitam compulsivamente, até ensaiarem um vocabulário pessoal cujo destino é o palimpsesto.4 Este último pode funcionar como uma crítica da imagem e da escrita, aprisionadas num jogo

de contaminações recíprocas onde o pictórico e o literário se interligam. Estamos perante a demarcação de tradições modernistas, pois a pintura enriquece-se com a incorporação de episódios de escrita. Conciliar a banalidade quotidiana das anotações e a excepcionalidade da pintura faz parte das preocupações deste artista que se “distancia da condição de anti-arte detectável nas atitudes dos primeiros modernismos, as- sim como da apologia de autonomia romântica do gesto e da expressão poética associável às linguagens expressionistas ou informais” (Fernandes, 2003:39). A especificidade de Sena baseia-se numa tensão entre “autografia” e “heterografia” (idem, ibidem) o mesmo é dizer entre o escrever-se, na acepção que leva aquele que pinta a revelar-se, e expor-se (uma grafia do “eu”) e uma heteronímia gráfica, a escrita relativa a outros sujeitos ficcionados no teatro dessa mesma pintura.

Observa-se uma constância e uma coerência no trabalho de António Sena de certo modo orientadas por uma questão: o que pode fazer uma palavra no meio da pintura, ou então se uma palavra é um desenho, a passagem dessa palavra à pintura será ainda um desenho? Não há uma transformação, uma superação, mas um encami-

4 Palimpsesto é um termo essencial para descrever uma aproximação à obra de António Sena. “A mim, os quadros de António Sena recordam muitas coisas: as frondes encaracoladas da avenca-cabelo-de-vénus, os palimpsestos dos graffiti nas paredes dos edifícios (...) os rabiscos das crianças nos seus cadernos e blocos sujos de tinta “ (David Medalla, “A Arte de António Sena”, in António Sena Pintura / Desenho 1964-

2003, Fundação de Serralves, Porto, 2003, p.33). Ou, segundo João Fernandes (op. cit. p. 39) “um palimpsesto onde o desenho irrompe da

nhamento e não sendo essencialmente técnica, a questão é poética. Tal como a pintura, a escrita (o desenho) pode ser uma evidência. Esta torna-se cada vez maior, à medida que a necessidade de traduzir no exterior, isto é no espaço de leitura (e não já na intimidade auto-reflexiva do pensamento), se desenvolve, sempre de acordo com uma lógica própria, da qual depende uma gramática com as regras em aberto. O tipo de automatismo presente nesta obra não decorre de uma busca surrealista, mas da determinação em tornar visível a matéria constitutiva do traço, o ritmo é prolongamento do próprio real na linguagem. A inclusão de folhas de papel no quadro, em traba- lhos dos anos 70, também pode ser vista como meio de impregnar de real a pintura. Estamos perante uma “intro- missão” que envia para uma “crise de representação”. Não há objecto, mas apenas marcas do seu deslizar, um vislumbre da sua presença, em suma lidamos com um manuscrito. “A contínua reflexão sobre as possibilidades e as práticas de uma pintura manuscrita converte as grafias de Sena numa permanente interrogação metapictórica e matalinguística, numa experimentação incessante dos seus possíveis limites” (Fernandes, 2003: 45).

Este esforço contínuo, a obsessão em saber como se pode falar da linguagem e da pintura usando as con- dições de uma e de outra, dão lugar a um discurso que produz um tipo de poesia visual capaz de acolher um elogio do silêncio: não encontramos palavras, mas a memória delas, a impossibilidade fonética de as pronunciar. A questão liga-se também ao interesse que Sena revela, em duas pinturas, ambas Sem Título (1968 e 1969) por um poema de Man Ray, considerado uma obra percursora da poesia visual. No poema de Man Ray não existem palavras, mas linhas que demarcam o ritmo e a métrica de um poema (originalmente publicado em 1924 na revista dadaísta 391). Na obra de Man Ray observamos segmentos negros sob fundo branco e nas pinturas de Sena aparecem linhas brancas sob fundo negro e alusões à assinatura. “O silêncio do poema dada vê-se transferido para o silêncio desta pintura” (Fernandes, 2003: 47). Na ausência da men- sagem o objecto plástico não evoca um texto, antes afirma a sua “mudez”.5

Uma série de trabalhos de Sena datados no final da década de 70 apresentam gráficos de barras que testemunham uma grafia sem referente,6 simulação possível de uma abordagem escrupulosa do mundo,

mas impossível de se realizar e por isso mesmo rasurada. Nesta perspectiva são desenhos de uma frieza irremediável. Se colhermos a sugestão relativa ao facto de serem percorridos por “o labor intenso e secreto do desassossego dos escritórios ignorados”, e partilharem assim uma condição inglória de efemeridade, compreendemos que remeterem para uma beleza que advém da sua condição solitária (Fernandes, 2003: 53). Vemos então aflorar outras possibilidades de escrita que ao assumirem a forma de uma recusa, ainda e sempre recusa de comunicação, podem evocar Bartleby, o escrivão de Melville, que, a cada solicitação para desempenhar uma tarefa que não fosse a estipulada, invariavelmente respondia: “Preferia não o fazer”.7

É também esse lugar do escrivão que Sena ocupa. Ou melhor, da “parábola” da própria escrita, porque ela permite uma estranha permanência, como afirma o personagem de Melville: “Gosto de estar no mesmo sítio. Mas não sou exigente” (Melville, 1988: 70). Para Sena os borrões, que valem como protestos no escritório onde Bartleby desempenhava a sua tarefa, não são causa de impertinência, nem fruto de uma desatenção, mas antes um meio de configurar os limites da escrita, ou o seu metamorfosear-se em pintura.

5 As pinturas em questão encontram-se reproduzidas em António Sena Pintura / Desenho 1964-2003, Fundação de Serralves, Porto, 2003, pp. 92-93.

6 Algumas delas reproduzidas em António Sena Pintura / Desenho 1964-2003, Fundação de Serralves, Porto, 2003, pp. 239-249.

7 Bartleby foi publicado pela primeira em 1853, na revista Putnam´s Monthly Magazine. Seguimos aqui a tradução de Gil de Carvalho que numa nota alerta o leitor para o facto desta novela convocar “diversos paralelos possíveis e ressonâncias, a parábola legal da escrita, será interessante somente como confronto entre verificação e metamorfose – e as suas transformações”.

As linhas de papel, os cadernos, a ênfase nos efeitos de visibilidade, deixando para segundo plano a hipóte- se da perceptibilidade, são características identificáveis em trabalhos dos anos 80, paródias de rascunhos e gatafunhos. Um universo de esquissos e de pinturas, com recurso à colagem e utilização de recortes de jor- nais, e elementos típicos de jogos de palavras cruzadas. Os valores da escrita, da página e do texto servem estratégias de ocultação, e de “camuflagem do gesto e da palavra” (Fernandes, 2003: 53). Em obras mais recentes do final do século XX, o artista submete o seu processo a uma influência da literatura, nomeada- mente de Kafka, e a pintura ganha um pendor aforístico, “as palavras cruzadas do passado convertem-se no tabuleiro de xadrez das questões perenes da arte” (Idem, 57). Há nesta obra uma procura do essencial dado a ver como escrita, mostrado, mas sem que possa ser decifrado. Um mistério, uma incerteza, a probabilida- de a confirmar-se sob o efeito da passagem do tempo, de onde resulta uma “mineralização” (Idem, ibidem), ou a quietude por debaixo da aparente desordem que cobre as coisas mais concretas.

De cadernos se pode ainda falar a propósito de série Books (2007-08) que toma por referência o texto do Génesis e um outro de Voltaire sobre o terramoto de 1755, Poème sur le desastre de Lisbonne (48), e na qual o artista prossegue e reinventa uma estratégia criativa onde a gestualidade e o palimpsesto ocupam uma posição nuclear. O pintor utiliza o texto, copia-o (e estamos de novo perante o universo do escrivão de Melville), cobre as frases com tonalidades sépia, deixa ficar algumas palavras esborratadas. E sugere que um texto se lê num outro lugar, fora da sua materialidade. Desta vez, as relações entre linha e plano, entre signo e significado, tomam como material de eleição textos cujo alcance cultural envolve a fundação, a origem, a turbulência e o desastre. Ideias que fazem parte da obra de Sena e do seu impulso para instruir e reconstituir o espaço da significação, em contextos de cepticismo comunicacional. Esforço e tentativa de revitalização da palavra, ou do seu poder para criar versões das coisas, e da pintura, naturalmente.

Outline

Documentos relacionados