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Capítulo IV – Os Dispositivos e Procedimentos de Intervenção

2. Intervenções no contexto de creche

2.2. Estratégia 2 – Reorganizando o espaço exterior: cozinha de lama

A criança é o elemento mais importante na educação de infância. De acordo com esta premissa, é crucial que os profissionais de educação tenham o hábito de refletir sobre as suas práticas, nomeadamente nas suas atitudes, nas interações, na forma como organiza os espaços e os materiais e nas suas intervenções. De acordo com Prado & Miguel (2013) citado por Gandini & Goldhaber (2002) "[…] através dessa prática reflexiva, os educadores experimentam um contínuo crescimento profissional junto com o prazer de operar e aprender em conjunto" (p. 154). Nesse sentido, tanto na minha prática como na prática da educadora cooperante, os momentos de reflexão eram fundamentais. Estes aconteciam geralmente na hora da sesta da crianças e serviam, essencialmente, para escutar opiniões, colocar dúvidas, partilhar experiências e, por vezes, até para desabafar sobre dificuldades e medos em relação à prática exercida.

Assim, foi um destes momentos de reflexão que teve como ponto de partida a segunda estratégia implementada neste contexto. Atentemos na seguinte nota de campo:

Foi a vez do W. explorar este percurso. Colocou-se em frente ao pneu e ficou parado a olhar. Observei para ver o que acontecia, mas este continuava parado apenas a olhar. Aproximei-me, com o intuito de tentar perceber o que se passava, no entanto rapidamente estende a mão, pedindo-me ajuda. Percebi de imediato que estava com receio. Apoiei-o, segurando a sua mão durante todo o percurso. Repeti-mos imensas vezes o percurso sempre com o apoio da minha mão. Talvez lhe transmitisse sensação de segurança, por isso, em momento algum a larguei. Com o passar do tempo, via-o a tentar fazê-lo sem a minha ajuda.

Este episódio relata um momento de reflexão com a educadora onde surge uma preocupação da minha parte em relação à organização do exterior. A observação foi um dos processos chaves mais importante, no que diz respeito a esta estratégia, uma vez que “aprendemos sobre as crianças ao observá-las de forma cuidadosa, ao escutá-las e ao estudar o seu trabalho. Assistir e escutar as crianças com atenção ajuda-nos a entender o que elas estão sentindo, aprendendo e pensando” (Jablon, Dombro, & Dichtelmiller, 2009, p. 13). Assim, foi possível perceber que as crianças revelavam interesse em brincar na área da cozinha, sendo que, de modo a proporcionar o contacto com o meio exterior, considerei pertinente a elaboração de uma cozinha de lama.

Esta cozinha tem a particularidade de envolver o contacto com materiais como água, terra, pedras, paus, entre outros. De acordo com White (2014) os materiais naturais, como são materiais abertos, contribuem para as principais áreas de desenvolvimento e, por isso, podem ser utilizados com várias finalidades. Esta autora complementa referindo que:

“ Há poucas coisas mais importantes no nosso mundo físico do que a terra e a água, que são coisas realmente intrigantes, especialmente quando interagimos com elas. Misturar terra, água e toda uma variedade de outros materiais naturais tem um papel fundacional na infância pelas profundas e infinitas possibilidades de proporcionar bem-estar, desenvolvimento e aprendizagem. A amplitude e profundidade do que estas experiências oferecem às crianças é verdadeiramente notável” (White, 2014, p. 6).

Hoje, durante a hora da sesta, eu e a educadora reunimos e estivemos a falar um pouco sobre o meu projeto de investigação. Expus-lhe as minhas dificuldades e também as minha opinião sobre o espaço exterior. A zona da horta era interdita às crianças, impossibilitando-as de terem contacto com a terra e a água. Embora que a educadora considerasse que esta organização não era favorável, teria ficado acordado desta forma com o resto da equipa educativa.

Já há algum tempo que estava com a ideia de implementar uma cozinha de lama no exterior face à observação das brincadeiras das crianças. Como tal, e considerando que esta zona do exterior é fundamental no que diz respeito ao desenvolvimento da criança, questionei a educadora se organizássemos o exterior de forma a colocar uma cozinha de lama, junto a este espaço, se existiria a possibilidade de este permanecer mais vezes aberto. De imediato a educadora concordou com esta ideia e, uma das grandes fragilidades deste espaço exterior que era a inutilização da zona da horta, poderia ser resolvida.

A estrutura da cozinha foi realizada com objetos inutilizáveis (paletes, restos de madeira, entre outros). Contudo, os materiais foram selecionados com a colaboração das crianças. Desta forma, foram recolhidos pelas crianças vários utensílios de cozinha, nomeadamente, pratos de plástico, talheres, tachos copos de plástico, entre outros. Estes eram o mais reais possíveis, pois assim como defende Zabalza (1998, p. 53) os materiais devem ser “ […] provenientes da vida real, de alta qualidade ou descartáveis, de todas as formas e tamanho”, com o objetivo de promover aprendizagens. Corroborando, Goldschmied & Jackson (2006) acreditam que “o equipamento de cozinha deve consistir de itens reais, e não de brinquedo, que as crianças possam identificar com o que têm em casa” (p.47).

Para além desta seleção dos materiais, tornou-se fundamental, durante o momento da organização da cozinha, constatar-se, efetivamente, que existiam materiais diversificados, adequados e em número suficiente. Malaguzzi (2001) acredita que “ […] quanto maior for a diversidade e variedade dos materiais, maiores são as possibilidades da criança se envolver em explorações, mais intensa será a sua motivação e mais ricas as suas experiências” (p.103). A educadora cooperante partilha da mesma opinião quando refere que:

[…] temos de ver se efetivamente se esses materiais existem em números suficientes, temos de nos preocupar em ir rodando os brinquedos e as oportunidades, porque ao fim de algum temos de as crianças utilizarem esses utensílios que já os conseguem explorar deixam de ser desafiantes. Por isso, temos que constantemente estar inquietos, trazer novas oportunidades, novos desafios (Entrevista Educadora A, 2020).

Antes da colocação da cozinha no exterior, foi debatido com a equipa qual o melhor local, uma vez que esta tinha de ficar perto da zona da horta, pois este sítio continha terra e uma fonte de água. Quando implementada no exterior, numa primeira fase, tanto eu como a educadora consideramos melhor dar uso ao distanciamento e ficar apenas a observar, uma vez que partilho a mesma opinião que a educadora:

“considero que é muito importante ficarmos a observar as interações deles” (Entrevista

Educadora A, 2020). Foi neste momento que recorri aos registos audiovisuais, nomeadamente às fotografias e vídeos para que, mais tarde, pudesse observar com mais atenção. Após alguns instantes, gradualmente comecei a envolver-me nas suas brincadeiras. De acordo com White (2014), o adulto tem um papel fulcral nestes

momentos, uma vez que brincar na cozinha apresenta diversos significados para as crianças.

Sem dúvida que esta cozinha potenciou uma panóplia de aprendizagens nas crianças durante o momento de exploração. Porém, irei destacar dois episódios que considero pertinentes para esta investigação. O primeiro ocorreu com cinco crianças e está inteiramente relacionado com o jogo simbólico. Assim, o episódio que se segue retrata uma brincadeira faz de conta entre as crianças, onde estas imitam e recriam o mundo dos adultos (Freitas, 2010).

Através da análise do episódio entendemos que as crianças estavam a recriar um momento de refeição. Recorrem aos materiais, que para elas representam brinquedos, para preconizar a brincadeira. Nesse sentido, entendemos que os objetos não têm necessariamente de ser requintados, pois assim como refere Silva e Sarmento (2017) “ […] o conteúdo do brinquedo não determina a brincadeira da criança; o ato de brincar, jogar e participar é que revela o conteúdo da brincadeira”(p.43).

O segundo episódio retrata uma brincadeira na zona da horta entre duas crianças. Para além de envolver algumas noções matemáticas, também envolve a coordenação motora. Atentemos no seguinte episódio:

Quando foi colocada a cozinha acabei por me distanciar e manter apenas a observar as interações. Observei a A., a B., o A., o R. e L. a irem buscar uma mesa que se encontrava distante da cozinha. Trouxeram-na para junto da cozinha, juntamente com os bancos. Esta, tinha dois compartimentos, por isso, as crianças foram buscar alguns dos elementos naturais que também foram disponibilizados (tronco de madeira e pedras). O A., o L., a B. e o R. sentaram-se na mesa enquanto que a A. referia:

-Eu vou fazer papa (…) Eu faço a papa.

A A. dirigia-se então até à cozinha, colocava um pouco de água num dos recipientes, ia até à horta pegar um pouco de terra e acrescentava ao “preparado” e ia servir às crianças. “Está aqui a papa” dizia ela, enquanto que as restantes faziam ruídos com a boca, representando que estavam a saborear a comida. (V. Apêndice 10, Img. 5).