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Estratégias metodológicas para investigação em cibermeios e game studies

O objeto aqui proposto para estudo e análise se configura como uma rede de indivíduos interligados em constantes processos de trocas simbólicas, cujo espectro inicia-se no ciberespaço, potencializado por dispositivos móveis de comunicação, ou artefatos técnicos, e estende-se para o espaço físico das cidades, tomando forma de hibridizações possíveis entre essas duas esferas, ou seja, criando assim novas camadas essencialmente informativas, que carregam em sua estrutura uma nova forma de experiência das cidades, incentivando práticas de espaço.

Estas novas formas de habitar a urbe parecem representar uma nova forma de ocupação do espaço público, agora configurado sob uma perspectiva híbrida, formada a partir de imbricações entre nossa dimensão física e biológica, e os espaços fluidos e imateriais do ciberespaço, transformando-o em “espaços intersticiais” (SANTAELLA, 2007, p. 217). Tal fato surge após um período em que se temia que a internet e a crescente comunicação via redes digitais causaria um desinteresse pela vivência de uma camada material à qual pertencemos e estamos definitivamente capturados, mas que, agora, é potencializada pelo desenvolvimento de redes móveis e da popularização desses artefatos digitais portáteis e das conexões entre indivíduos possíveis através dos mesmos.

Assim, a partir de sua utilização, criam-se rastros individuais das caminhadas pela cidade, compondo discursos subjetivos, mas ao mesmo tempo, coletivos, uma vez que são compartilhados em rede e parecem criar novas

escrituras e registros essencialmente informacionais, não possuindo produtores e espectadores, mas sim, indivíduos interagindo e envolvidos em intercâmbios de trocas simbólicas (CERTEAU, 1998). Tais registros originam tessituras que, enquanto doadoras de sentido sobre si mesmo e sobre o mundo, demandam estratégias metodológicas específicas ao seu entendimento.

O próprio campo onde essa dissertação se insere, os game studies, configura-se como interdisciplinar e ainda em formação, permitindo de tal maneira uma diversidade de abordagens, própria de seu caráter incipiente. Embora por muito tempo perdurassem duas correntes principais que nortearam os estudos nessa seara, a ludologia e a narratologia, com base nas obras consultadas para a construção do referencial metodológico desse trabalho, podemos afirmar que, hoje, tais estudos se apropriam de diferentes áreas do conhecimento e de estratégias de investigação, como das ciências humanas, sociais e sociais aplicadas (MÄYRÄ, 2008; MITSUISHI, 2006; TEIXEIRA, 2005).

Aarseth (2003) estabelece que, em relação aos mesmos, especificamente no tocante àqueles digitais, podem-se adotar três diferentes enfoques, os quais, vale lembrar, não são excludentes e podem ser mesclados, como é o caso desse trabalho. O primeiro concentra-se no sujeito que joga, ou seja, no estudo das suas apropriações do jogo e das relações possíveis advindas de tal prática e as suas estratégias para o desenvolvimento da atividade, seu comportamento e o seu papel na construção de formas simbólicas pelo jogo; a segunda perspectiva foca-se na estrutura do jogo, ou seja, busca identificar as regras, limites e possibilidades a partir do entendimento da própria concepção do mesmo, sendo necessário, para tal, conhecer o seu funcionamento e as dinâmicas de sua estrutura interna; já a terceira possibilidade é uma análise estética, os elementos narrativos e artísticos ligados ao próprio mundo do jogo em questão, entendendo-o como um texto a ser decodificado pelo jogador. Essencialmente ludológica, essas diferentes formas de se olhar para o objeto constituem o princípio mesmo da concepção do jogo em suas bases onto- fenomenológicas, ou seja, em sua jogabilidade, as regras que lhe são próprias e o cenário do jogo (TEIXEIRA, 2005, p. 473).

Tal classificação, proposta por Aarseth (2003), é corroborada por Mäyrä (2008), Mitsuishi (2006), e Teixeira (2005), os quais também frisam que os mais recentes estudos na área buscam mesclar estas três possibilidades de análise, a partir de abordagens que busquem analisar tais aspectos de forma integrada, entendendo-as como inseparáveis na experiência do sujeito no ambiente simbólico do jogo. Ou seja,

uma vez que um jogo é um processo e não um objecto, não pode existir um jogo sem jogadores a jogar. Dado que estes jogos tratam do controlo e exploração de uma representação espacial, o jogo deve desenrolar-se num cenário claramente definido. E, uma vez que todos os jogos tem regras para avançar ou perder, as regras inerentes à estrutura do jogo talvez consistam no mais fundamental dos três elementos. Sem regras para estruturar acções, mas com um cenário (virtual), teríamos jogo livre ou outras formas de interacção, mas não jogabilidade (AARSETH, 2003, p. 13, grifos do autor).

Especificamente no caso do presente trabalho, trabalharemos sob uma perspectiva que considera o jogo como um sistema complexo que envolve a existência de um sistema de regras próprio e variável, de acordo com o tipo de jogo e a sua concepção. Além disso, todo jogo, em maior ou menor grau, possui uma narrativa necessária de decodificação pelo jogador para a sua inserção no mundo do jogo em questão – sendo, assim, intrinsicamente ligadas essas duas esferas; ou seja, sob o ponto de vista de Pinheiro e Branco (2011, 2012), o estudo do jogo pode considerar esses dois vieses, pois eles não excluem-se mutuamente.

O propósito de estudar uma expressão tão particular da cultura contemporânea, a saber, os jogos em meios de comunicação digitais e conectados em rede – especificamente os jogos móveis locativos, e, no objeto desse trabalho, a rede social Foursquare abordada como tal – configura-se como um desafio, uma vez que se trata de um recente objeto de pesquisa; e, além disso, haja vista que o fenômeno que observamos e buscamos aqui examinar não se trata de um jogo propriamente dito, mas sim possui dinâmicas lúdicas que fundamentam o seu funcionamento, adotaremos um viés fenomenológico no modo como olhamos para o objeto, não buscando primordialmente explicá-lo, mas sim descrevê-lo através do desvelamento de suas características, bem como dos modos de uso, ou seja, das possibilidades de apropriação pelos seus usuários. Em relação a isso, Teixeira (2005, p. 468) afirma que tal perspectiva fenomenológica entende que os jogos

ultrapassam a mera dimensão lúdica que lhes é própria, constituindo-se assim como elementos primordiais nas relações entre o homem e o mundo, sobretudo na contemporaneidade, a partir da constatação de que, hoje, tal problemática parece ocupar um papel central na sociedade.

Para investigação do objeto aqui proposto, utilizamos como aporte metodológico uma análise etnográfica voltada para cibermeios, definida como netnografia, ou etnografia virtual, proposta por Hine (2000). Angrosino (2009, p. 30) entende a etnografia como “[...] a arte e a ciência de descrever um grupo humano – suas instituições, seus comportamentos interpessoais, suas produções materiais e suas crenças”, ou seja, como uma forma de conhecer os indivíduos participantes de uma coletividade, compartilhando práticas e valores comuns. Assim, a etnografia consiste na inserção do pesquisador nesse grupo, e na observação, tomada de notas e em uma posterior análise e exposição do material coletado durante o processo. Amaral et al (2008) entendem, baseadas em Hine (2000), que

[...] a etnografia, em sua forma básica, consiste em que o pesquisador submerja no mundo que estuda por um tempo determinado e leve em consideração as relações que se formam entre quem participa dos processos sociais deste recorte do mundo, com o objetivo de dar sentido às pessoas, quer esse sentido seja por suposição ou pela maneira implícita em que as próprias pessoas dão sentido às suas vidas.

Tal adaptação do método antropológico para o estudo de meios digitais em comunidades potencializadas pelo ciberespaço busca analisar tal fenômeno juntamente com os artefatos tecnológicos necessários a tais práticas, ou seja, a netnografia deve ser considerada tanto a partir dos próprios dispositivos, quanto a partir de sua apropriação pelos sujeitos e a sua transformação em práticas sociais e manifestação cultural, uma vez que as esferas informacionais e materiais nas quais ela se desenvolve estão intrinsicamente ligadas e de forma cada vez mais complexa (HINE, 2000, p. 39). A esse respeito, Jones (1995, p. 16) defende que a comunicação em redes globais não é somente uma ferramenta, uma vez que ela é o próprio meio por onde essas relações se dão na contemporaneidade, ao mesmo tempo em que estruturam as relações sociais e se tornam o espaço onde as mesmas ocorrem.

Lemos (2002, p. 258) corrobora essa ideia, afirmando que a cibercultura, uma das vertentes da cultura contemporânea, não nasce somente a partir da presença maciça cotidiana de aparatos como computadores e dispositivos móveis de comunicação, mas sim a partir da imbricação existente entre eles e os sujeitos que deles se apropriam. Isso quer dizer que tal fenômeno possui sempre duas dimensões: uma técnica, ou seja, tanto o próprio artefato em si, em sua materialidade, também relacionada às habilidades necessárias para manejá-lo, sejam estas motoras e cognitivas; e outra simbólica, surgida a partir da subjetividade e do compartilhamento dessas formas simbólicas que emergem a partir da apropriação e da sua transformação em cultura.

Muito embora existam divergências em relação ao termo que define esse tipo de abordagem quando do uso da etnografia na investigação de meios digitais, o qual depende principalmente do referencial teórico utilizado para a construção do método, parece-nos que elas convergem no tocante à impossibilidade de estudo do fenômeno isolado da materialidade que lhe é necessária à existência, ou seja, “[...] a etnografia virtual se dá no/de e através do online e nunca está desvinculada do

offline, acontecendo através da imersão e engajamento intermitente do pesquisador

com o próprio meio” (FRAGOSO et al, 2011, p. 173). Além disso, como as autoras também afirmam, a perspectiva netnográfica permite uma maior adaptação em relação àquilo que se planeja estudar, justamente por não ser uma metodologia rígida, pois ela é diretamente ligada ao contexto no qual se desenvolve. Tal perspectiva também parece ser corroborada por Rocha e Montardo (2005, p. 10), pois elas entendem que

[...] cabe ao pesquisador-etnógrafo contemporâneo escolher corretamente o que lhe é mais apropriado, em termos de técnicas e ferramentas de pesquisa, para auxiliá-lo como testemunha de um mundo que também se desenrola no ciberespaço e que tende, a cada dia, diminuir concretamente a fronteira entre real e virtual.

Hine (2000, p. 63) expõe que um dos princípios norteadores para a pesquisa etnográfica realizada na internet é a impossibilidade de capturar a totalidade dos fenômenos que nela ocorrem. Uma vez que as possibilidades de análise nesse meio sejam as mais variadas, dependendo assim da abordagem que o pesquisador deseja, para a autora, é ele quem deve definir os aspectos relevantes dentre o

universo em questão, haja vista que uma das características dos meios digitais é justamente a multiplicidade de perspectivas. Assim, ela adverte no sentido de tentar abranger todos os aspectos de objeto de pesquisa, o que, segundo seu ponto de vista, é impraticável – sendo possível apenas capturar parcialmente o objeto (2000, p. 63).

Assim, uma vez que o objeto aqui analisado parece radicalizar a convergência existente entre a esfera informacional própria da internet, e a materialidade necessária à sua existência – nesse caso, tanto dos próprios artefatos e dispositivos tecnológicos, quanto da própria infraestrutura espacial das cidades, através da transformação de sua materialidade em espaço de jogo – parece-nos a netnografia (KOZINETS, 2010) uma abordagem pertinente para este trabalho.