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AS ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA

Os socioeducandos, como já mencionado, são avaliados no início do cum- primento da MSEI por uma equipe multidisciplinar, responsável pela pro- dução do PIA, que visa traçar os objetivos a ser alcançados com a medida durante o seu cumprimento. Contudo, o CNJ (2012), em suas inspeções nos estados, constatou que o PIA dificilmente é elaborado e raramente cumprido, demonstrando que não há individualização no tratamento ofe- recido para os socioeducandos, dispensado então “no atacado”, sem aten- tar às particularidades de cada um, como exige o SINASE.

Destaca-se que, em complementação ao PIA e para verificação de sua execução, são elaborados relatórios de acompanhamento de cada socioe- ducando, durante o cumprimento da internação, encaminhados à Justiça e analisados pelo Magistrado competente. Essas peças balizaram a decisão de concessão ou não das saídas e da liberação dos adolescentes e jovens em cumprimento da MSEI. Esses relatórios influenciam no comporta- mento dos jovens privados de liberdade, por lhes transmitirem a noção de que o seu conteúdo influenciará a duração da MSEI e as saídas tempo- rárias do centro. Assim, surge o chamado “sistema de privilégio” (SOUZA;

1 A internação é medida socioeducativa privativa de liberdade aplicada ao adolescente, sujeita aos “princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em de- senvolvimento”, com prazo máximo de três anos de duração. (BRASIL, 1990, arts. 112 e 121)

COSTA, 2012, p. 93-94), igualmente previsto por Goffman (2001), nas ins- tituições, baseado na recompensa após o cumprimento das regras impos- tas, apesar de nada significarem para os internos. Estes, aliás, exibem uma mudança de comportamento superficial e interesseira. Há, de certa forma, um acordo implícito e recíproco entre internos e servidores/educa- dores, apenas para tornar mais fácil a vida de ambos, sem resultados mais relevantes na reeducação/ressocialização ou como se queira denominar a função da medida. Segundo as autoras, os adolescentes e jovens privados da liberdade frequentam as atividades profissionalizantes e a escola para garantirem as saídas quinzenais e a liberação das medidas socioeducati- vas, sem que estas alcancem outro valor. Eles se comprometem a cumprir a medida de internação para não causarem mais sofrimento à família.

Há relatos e flagrantes de violações de direitos no dia a dia das insti- tuições, em todas as pesquisas analisadas. (AGUINSKY; CAPITÃO, 2008; MONTE; SAMPAIO, 2012; ROSA; RIBEIRO JÚNIOR; RANGEL, 2007; ROSA, 2013; PADOVANI; RISTUM, 2016; SCISLESKI et al., 2014; SCISLESKI et al., 2015; SOUZA; COSTA, 2012; TEIXEIRA, 2009; ZAPPE; RAMOS, 2010) Esse desrespeito engloba desde a ausência de escolaridade e profissionalização adequada à falta de projetos de lazer, de infraestrutura adequada à fun- ção pedagógica da medida e mesmo à estigmatização. Concorda-se com Coutinho e colaboradores (2011, p. 113) que a forma como a sociedade vê o adolescente privado de liberdade e as condições dessa privação ofere- cidas pelo Estado dificultam o alcance dos objetivos do Ecriad. A escola- ridade e a profissionalização são passos decisivos para o adolescente e o jovem interno alcançarem a “cidadania” pretendida pela sociedade. A des- centralização do cumprimento da medida deve ser outro fim a ser perse- guido para que o socioeducando não se afaste dos seus vínculos afetivos, alijando-se ainda mais da comunidade.

Na prática, o próprio Estado guardião desrespeita os princípios e garantias assumidos na sua legislação e nos tratados internacionais, res- saltando a política de atendimento prevista no art. 87 do Ecriad. As obri- gações do Estado são, de fato, direitos e garantias que o interno não perde no cumprimento da medida. Mas a afronta inicia-se na prestação das medidas protetivas, negadas a esses socioeducandos pelo atraso na idade- -série escolar da grande maioria dos entrevistados, o que é percebido por Scisleski e colaboradores (2013, p. 673) ao afirmarem que as políticas públicas não são preventivas, “mas de combate ao crime e ao perigo que os jovens oferecem à sociedade”. Não há atuação preventiva com a finalidade de afastar o adolescente do “crime”.

Como observam Scisleski e colaboradores (2015), tal como nos presí- dios e penitenciárias dos adultos em cumprimento de pena, dividem-se os jovens internos nos “alojamentos” correspondentes à sua vinculação a facções, para que não sofram retaliações dos rivais. Na realidade, no inte- rior dos centros, ainda precisam se associar para garantir a integridade física pessoal, atribuição do Estado que lhe segregou a liberdade. A negli- gência se perpetua e a segregação só enfraquece ainda mais os laços com a sociedade.

A exemplo das penitenciárias e dos presídios dos adultos, outra forma de sobreviver às condições insalubres e degradantes do sistema socio- educativo é a rebelião ou motim, como salientou Galvão. (2005 apud SAMPAIO; MONTE, 2012) As rebeliões foram muito comuns nas unida- des do estado de São Paulo nos anos de 1990, nacionalmente conheci- das por Fundação do Bem-Estar do Menor (Febem), tendo sido ampla- mente divulgadas pelos meios de comunicação e, em virtude disso, pro- pulsoras da sua reorganização, descentralização e mudança de nome para Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA), em 2006. (TEIXEIRA, 2009, p. 168-169) Na apuração dos fatos, compro- vou-se o desrespeito às normas do Ecriad, expresso na falta de proposta pedagógica da MSEI, na ausência de estrutura física e na superlotação. No último relatório de acompanhamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), intitulado Um olhar mais atento nas unidades de inter- nação e semiliberdade para adolescentes – Relatório da Resolução 67/2011 (2015), enumeraram-se os principais motivos das rebeliões nas unidades de internação, destacando-se a falta de infraestrutura adequada, a ausên- cia de diálogo com a diretoria da instituição, a guerra entre facções rivais, os excessos cometidos por profissionais da entidade, a promoção de fuga em massa e a superlotação.

Outro fator a que se deve “sobreviver” é o estigma da sociedade no olhar para os adolescentes e jovens internos. (PADOVANI; RISTUM, 2016) Para Goffman (1988, p. 13), estigma é “um tipo especial de relação entre o atributo e o estereótipo”, geralmente relacionado com algo “pro- fundamente depreciativo”, mas relativo, pois o que representa estigma para uns pode não o ser para outros. O estigma social é tão cruel quanto as condições precárias dos centros de internação e as violações de direi- tos vivenciadas, provocando nos próprios jovens a crença de que se afas- tar da criminalidade é quase impossível. (PADOVANI; RISTUM, 2016, p. 617). Essa estigmatização dificulta a ressocialização, ao impedir a rein- tegração do adolescente infrator no seio da sociedade, que não o quer

mais no seu convívio. O estigma é cruel para quem o impõe e para quem o sofre, pois perpetua o medo do primeiro e impede o desenvolvimento do segundo. Como descreve Goffman (1988, p. 22), “faltando o feedback saudável do intercâmbio social quotidiano com os outros, a pessoa que se auto isola possivelmente torna-se desconfiada, deprimida, hostil, ansiosa e confusa”. Dessa forma, os adolescentes e jovens internos criam as “tribos urbanas” (ROSA, 2007, p. 87), nas quais os excluídos compar- tilham frequentemente os estigmas da marginalidade, formando suas próprias relações e inserções sociais.

Salienta-se, por oportuno, que caberia aos socioeducadores e demais servidores modificar essa visão da “identidade pessoal e social” estigmati- zada. Contudo, a descrença na transformação dos internos pelos próprios socioeducadores e demais servidores do sistema é outro fator que dificulta a criação do ambiente acolhedor e protetor previsto no Ecriad, pois, na sua visão, a medida é meramente punitiva, perpetuando antigas concepções, como indica Souza e Costa (2012). Não foi relatado formação específica e adequada desses servidores para a transformação da realidade social e a influência positiva nos socioeducandos. O resultado é a visão igual- mente estigmatizada e o desrespeito aos direitos humanos. Verifica-se essa “resistência” também nas escolas e programas de saúde para os quais são encaminhados os socioeducandos. (SCISLESKI et al., 2015, p. 507) A contratação e o aperfeiçoamento desses técnicos são demandas urgen- tes do sistema educativo. A conscientização dos socioeducadores quanto à importância do trabalho desenvolvido deve mudar a compreensão dos fatos trazida do senso comum. É necessário até mesmo que a intenção de entrada no sistema se estabeleça, para esses profissionais, como possibi- lidade de obtenção de emprego “digno e honesto”, evitando-se o pensa- mento do trabalho transitório, de modo a valorizar a carreira e contribuir com a melhoria das condições de trabalho e de salários.

Não há “interesse e investimento” nos atendimentos aos socioedu- candos como há para os adolescentes e as crianças em situação de vul- nerabilidade, ditas vítimas. (SCISLESKI et al., 2015, p. 513) Conforme os autores, esse tratamento diferenciado foi resultado da dicotomia inserida no Ecriad, já exposta, que restringe a atuação dos profissionais nas situ- ações envolvendo aqueles primeiros, cumprindo-se a lei sem nenhum entusiasmo ou empenho. Habitualmente se entende que a “culpa” e a res- ponsabilidade pelos atos infracionais praticados cabem, quase que exclu- sivamente, aos socioeducandos, indicando o enquadramento no segundo tipo de estigma indicado por Goffman (1988, p. 14): o da “culpa de caráter

individual”. É perfeitamente possível, no entanto, mesmo com recur- sos limitados, evitar a reincidência da maioria dos internos, oferecendo ensino e qualificação profissional, atraindo-os sinceramente para tais ati- vidades, já que se encontram ociosos e abertos a mudanças, quando ofere- cidas de forma correta e atrativa.

Ante as violações de direitos e a violência estigmatizante descritas, verificou-se a existência de grupos de rap em algumas unidades de inter- nação. Por meio dos versos, os socioeducandos denunciam os abusos e as violações sofridas, extravasam a sua dor, os seus objetivos, a vivência diá- ria durante o cumprimento da internação e a rotina que possuía antes da privação da liberdade. O rap é o principal estilo musical dos internos, tido como identidade social. (ROSA, 2013, p. 116-120) Esse espaço de exposição do sentimento é um campo fértil para a compreensão dos seus anseios, medos e necessidades, constituindo um meio de alcançar e traçar as metas e objetivos da MSEI, devendo ser mais valorizado e utilizado como instru- mento de aproximação da realidade dos socioeducandos.

De posse do conhecimento das demandas e das estratégias de sobre- vivência dos internos, deve-se questionar quais são os caminhos a trilhar para modificar a realidade do cumprimento da MSEI, alertando-se, ainda, para a necessidade de “uma interligação entre as diferentes demandas”, como educação, saúde, justiça e serviços sociais para o alcance da resso- cialização dos adolescentes e jovens. (RIGON, 2012, p. 185)

ALTERNATIVAS PARA A SUPERAÇÃO DO CARÁTER PUNITIVO DAS