• Nenhum resultado encontrado

3. Niccolao Manucci, vida, percurso e obra

3.2. Niccolao Manucci e a Storia do Mogor

3.2.1. Estrutura da obra

Segundo o próprio anuncia na introdução, a obra compreende três grandes partes em que o autor conta, na primeira, dividida em dois volumes, a sua viagem desde que saíu de Veneza até chegar a Delhi, e inclui uma crónica dos reis mugores até à ascenção de Aurangzeb ao trono e a morte dos seus irmãos. Segue-se uma

294 Constatação também expressa por Irvine em Manucci, op. cit. Vol. I, p. lxvi-lxvii, sendo

acentuada por Subrahmanyam, op. cit., 2008, p. 43-45

segunda parte em que Manucci se propõe descrever as conquistas de Aurangzeb, as suas guerras e sucessos. Na terceira parte, propõe-se descrever as políticas do

Mugol, o esplendor dos Rajás e dos outros potentados do Hindustão e os seus

rendimentos, propondo-se ainda acrescentar, entre outros assuntos especiais, uma descrição da religião dos povos hindus.296

Subrahmanyam no estudo que vimos referindo297 observa no entanto que a obra, cujo original foi consultar na Biblioteca de Berlim (Staatsbibliothek zu

Berlin), «é um trabalho vasto, indisciplinado e portanto bastante confuso». A

afirmação deste autor faz algum eco naquilo que conseguimos abarcar da obra, embora a nossa curiosidade nos levasse a debruçar-nos sobretudo sobre os trechos em que Manucci se refere aos portugueses e mais particularmente aos de S. Tomé de Meliapor, distinção que se torna difícil já que a obra é abundantemente pontuada de referências aos portugueses, quer como nação em geral quer nos diversos personagens e contactos que vão ocorrendo em todos os pontos da Índia por onde andou, quer nos comentários e apreciações que vai fazendo sobre eles. E não podemos deixar de enfatizar que a própria obra manuscrita recorre em grande parte à mão e à lingua portuguesa que seriam as dos amanuenses que trabalharam com Manucci ou, presumivelmente, de religiosos portugueses que o ajudaram já que, conforme exprime a certa altura, era difícil encontrar quem tivesse letras suficientes para o poder ajudar, daí que fosse natural tê-los procurado nos meios religiosos de S. Tomé de que vivia na proximidade.

Manucci retoma frequentemente o fio condutor do seu percurso pessoal na Índia e algumas histórias e o contexto em que as situa inserem-se nesse percurso, dando-lhe côr, encadeando-as umas nas outras e por vezes com ingredientes de histórias já anteriormente contadas, mas segundo outras perspectivas e subordinadas a diferentes motivos centrais. Por exemplo, Goa surge- nos como teatro do seu grande papel de mediador entre o Vice-Rei e as forças maharatas de Sambha Ji que cercavam a cidade e a seguir, com as de Shah Alam cujos exércitos se aproximavam, e também da atribuição da condecoração

296 Manucci, op. cit. Vol I, 1907, p. 3-4

Portuguesa da Ordem de Santiago, que coroa o seu grande protagonismo em todo o processo.298 Mas referências a Goa e ao que aí lhe sucedeu, aparecem noutros momentos da obra como quando se refere a perseguições de que foi alvo.

Subrahmanyam, procurando caracterizar os enigmas sobre o personagem- autor e a sua obra, aponta também para uma mudança, que ocorre a certa altura, da orientação e das motivações de Manucci sobre os propósitos da sua Storia os quais, sendo inicialmente os de informar os leitores que esperava ter na Europa, bem como os europeus da India – chega a utilizar o termo europeanos no contexto do original em português, segundo nota Irvine – e sobretudo os da grande nação Francesa, passam a certa altura299 a ter em atenção sobretudo a Itália e a sua amada Republica de Veneza. É para Itália que vai enviar, em 1705, a segunda versão da sua Storia, fazendo um novo prefácio dedicado ao Senado de Veneza e à sua Nação, onde acentua que envia agora o verdadeiro original com uma Quarta Parte da sua História que os Jesuitas não têm já que não lhes mandei,300 a que junta ainda um outro livro com 66 figuras que representam os falsos deuses gentílicos e os hábitos destes. E acrescenta: «os referidos curiosos Reverendos esforçaram-se

consideravelmente para conseguir estes dois últimos livros e eu respondi-lhes: Não vos conheço (Nesio vos)».301 Subramanyam observa que «cada parte que Manucci acrescenta vai tornando a obra cada vez menos coerente.»302 Esta Quinta Parte, que Cardeiraz303 ainda traduziu, além de anunciar a preparação de uma Sexta Parte, continua a ser para Subrahmanyam uma curiosa confecção de histórias (classifica- as como anedotas) e um crescendo de virulentas diatribes sobre os Jesuitas,304 e abrange o período de Janeiro de 1705 até à morte de Aurangzeb.

Como já referimos, o primeiro manuscrito que Manucci enviou para França, sob o entusiasmo inicial de a dirigir ao público leitor francês, foi

298 Manucci, op. cit, reprint, 1981, Vol II, p. 244-269

299 Subrahmanyam, op. cit., 2008, p. 55

300

Id., p. 54-55

301 Ibid.

302 Id., p. 58

303

Stefano Neves Cardeiraz era um professor de leis na Univeridade de Pádua, como já referimos anteriormente, a quem o Senado de Veneza entregou os manuscritos para tradução para uma única língua.

aproveitado parcialmente por Catrou duma forma que deixou Manucci muito contrariado e que explica a sua diligência em produzir de imediato uma Quarta Parte e remeter todo o trabalho para Veneza. Explica também a sua atitude de crescente desconfiança para com os Jesuitas que se reflecte a partir de então nos seus escritos.

A Primeira Parte da Storia do Mogor compreende então uma sucessão de histórias populares em que as lendas se misturam com acontecimentos de que Manucci soube por diversos personagens como um velho médico da Corte Imperial que conheceu e lhe lia as crónicas da biblioteca.305 Segundo diz: «Vivi com os

homens mais bem informados; Conversei muito com eles e eles contaram-me a verdade.»306 Muitas das observações e histórias que relata e de que foi contemporâneo permitiram a Irvine a sua verificação, a confirmação, a confrontação de datas, nomes e factos e por vezes a discussão de versões diferentes de acontecimentos em que Manucci esteve envolvido ou acompanhou ou que refere simplesmente terem ocorrido, dando-nos Irvine conta dos resultados deste seu trabalho ao longo de toda a aparte introdutória do primeiro volume da Storia e através de inúmeras notas que acompanham o texto que traduziu. Ao encontrar por vezes discrepâncias, Irvine atribui-as mais a erros naturais de quem relata acontecimentos ocorridos 30 ou 40 anos já passados do que a invenções ou a deturpações fantasiosas, não sendo suficientes, na sua opinião, para descredibilizar a obra.307 Com efeito, incentivado possivelmente por François Martim e por M. Deslandes, personagens com quem irá privar nas suas estadias em Madras e Pondicherry - mas «não consegui resistir às insistências dos meus amigos que dão

muito crédito ao meu conhecimento do País», é como se dirige aos leitores nas

palavras introdutórias da obra308 - Manucci escreveu as três primeiras partes da

Storia do Mogor entre 1699 e 1700, a Quarta parte entre 1701 e 1705 e uma Quinta

305 Subrahmanyam, op. cit., 2008, p. 45

306 «I lived with the men best informed of any; I had long converse with them, and they told me the

truth». Tradução de William Irvine em Niccolao Manucci, op. cit., Vol.I – «Dos Reis Mugores

até ao soberano reinante, Aurangzeb», p. 114.

307 «Manucci the author and the man», in Manucci, op. cit., reprint, 1981, Vol. I, p.lxviii-lxxix,

parte ainda entre 1706 e 1709.309 Ora Manucci chegou à India em 1654, tendo partido de Veneza com 14 anos de idade segundo nos diz.310 Quando começou a escrever, seria um homem já com 60 anos a relatar factos ocorridos ao longo dos 45 anos em que viveu na Índia, passando-os então para o papel, ao longo de oito anos e recorrendo a ajudantes e amanuenses portugueses, franceses, e italianos que foi conseguindo recrutar, o que explica as diferentes linguas em que o manuscrito está escrito.

Manucci demora-se detalhadamente sobre episódios a que atribui relevância na explicação dos acontecimentos mas que para alguns leitores poderão ser considerados meramente acessórios. É exemplo o dos acontecimentos no reinado do sultão Humayun, o 7º soberano da linhagem de Timur-I-Lang,311 ocorridos na primeira metade do séc. XVI, nomeadamente a fuga de Humayun para a Pérsia e a forma como a sua mulher se lhe juntou apesar de a ter deixado para trás, nas mãos Shera, o usurpador do trono. Manucci detem-se com pormenor sobre esta situação, descrevendo até a suposta carta de Shera a Humayun ao enviar-lhe a mulher, situando pois este episódio ao mesmo nível da movimentação política da luta pelo trono mugol. É de resto uma constante na Storia esta equiparação do anedótico, das histórias e enredos pessoais dos protagonistas, ao mesmo nível dos acontecimentos históricos marcantes na história da Índia. Compreendemos no entanto a razão porque o faz, se o examinarmos à luz do que nos parece uma preocupação sua, a de historiar e explicar os acontecimentos em função do caracter dos personagens, numa procura que poderá reflectir as preocupações do europeu da época, que projecta no mundo desconhecido e fascinante do Oriente a sua procura das qualidades que devem reger o comportamento dos homens que não já as normas e preceitos doutrinários da Igreja Católica tradicional que espartilham profundamente os hábitos e condutas no Ocidente, então sob os efeitos da grande cisão que significou a Reforma.312 O esforço da Inquisição em Portugal e nos

309 Id., p. lxviii

310 Manucci, op. cit. reprint, 1981,, Vol. I, p. 5

311

«Sultan Humayun, Seventh King of the Family of Timur-I-Lang», in Manucci, Op. Cit. Vol. I, p. 112-114

312 Os acontecimentos que se sucederam na Europa após o ataque à Igreja tradicional desencadeado

países do Sul da Europa em que se incluiam a Espanha e a Itália, para conter e dominar o pensamento livre que ia surgindo por todo o lado, sobretudo nos países da Reforma, travando e perseguindo as heresias com os seus autênticos tribunais de opinião, vigiando «a pureza e a conservação da fé»313 e reprimindo os desvios, queimando livros em autos de fé, é disso sintoma. 314

É assim que uma das preocupações de Manucci no episódio que referimos incide na avaliação que faz do carácter de Shera, o usurpador do trono de Humayun, que, tendo-se feito rei, quer ser justo e mostrar compaixão com o vencido, enviando-lhe a mulher sem a molestar, a ela e à criança de que está grávida. Segundo Mannuci, Shera envia uma carta a Humanyun em que jura sobre o Corão que não atentou com a sua honra e que a esposa de Humaniun não ofendeu o marido por qualquer modo, nem mesmo em pensamento. É possivelmente sobre este nível de interpretação dos acontecimentos que se poderá situar por exemplo a sua alusão à obra de Manuel de Faria e Sousa publicada em 1666315 que aparentemente lhe terá chegado às mãos, quando exprime discordância com este autor português sobre o episódio de Humanyun, para valorizar o seu conhecimento profundo da Corte Mugol já que atribui aos outros que escreveram sobre os mugores, em que se inclui o nosso Faria e Sousa, uma visão superficial e mal informada. Irvine teve no entanto a preocupação de conferir a versão de Faria e Sousa e verificou que não é afinal discordante.316 A discordância situa-se pois ao nível daquilo que os personagens da história projectam, mais do que sobre os acontecimentos históricos em si.

e a sua relação com Deus e a Igreja, causando um grande abalo que se repercute por toda a Europa e que abre o caminho à divulgação de pensadores humanistas (Petrarca, Erasmo, Tomás Moro), e de outras atitudes perante os fundamentos da Igreja tradicional, são tratados de forma panorâmica por G. R. Elton em A Europa durante a Reforma, 1517-1559, Presença, 1982, Lisboa

313 G. Marcocci e José Pedro Pires, História da Inquisição Portuguesa, A esfera dos Livros, 2013,

citação a p. 112

314 Assunto abordado detalhadamente ao longo da História da Inquisição Portuguesa, op. cit.

315 Manuel de Faria e Sousa escreveu, sem a ter visitado, a Asia Portuguesa, em 3 tomos, sendo

publicado o primeiro em 1666, História da Índia, desde o seu descobrimento até o ano de 1538, o segundo em 1674, História da Índia, de 1538 a 1581 e o terceiro em 1675, História da Índia,

durante a dominação castelhana (1581 - 1640). Faria e Sousa recorreu aos trabalhos de João de

Barros, Diogo do Couto e seus continuadores. Existe uma versão da época em língua inglesa, em 3 volumes, com tradução do Capt. John Stevens, 1694-96, Londres, segundo Joaquim Costa em

Manuel de Faria e Sousa, Cidadão do mundo e das letras ao serviço de Portugal, Centro de

Estudos do Românico e do Território, 2012, Lousada

Mas também é caso para pensar se de facto Manucci terá lido o autor Português ou se algum preconceito já havia tomado conta dele não precisando assim de formular uma opinião sobre a obra de Faria e Sousa pois já a tinha antes mesmo de a ler. Mas a dúvida permanece pois idêntica reacção vai ter Manucci sobre a obra de François Bernier, médico francês que conheceu pessoalmente317 e que regressou a França no fim dos anos 60 de Seiscentos, publicando em 1670 a

Histoire de la dernière révolution des états du grand Mogol.318 Subrahmanyam, tal

como Irvine, acredita que Manucci leu esta obra bem como a sua continuação no ano seguinte, a Suite des mémoires du sieur Bernier sur l’empire du grand Mogol

dédiez au roy,319 em que Bernier escreve sobre o pós-guerra no império Mugol e sobre as coisas do Hindustão como a circulação do ouro e do dinheiro, as riquezas, as forças, a justiça e ainda sobre o que designa como as causas principais da decadência dos Estados da Ásia. Manucci reage na sua Storia dizendo que Bernier conhecia o Império Mugol apenas de uma maneira fugidia e superficial e que tudo o que relata obteve-o «de uma ou outra pessoa» ou conseguiu-o pelos mercados320 da India. E desassombradamente acaba por dizer que a maior parte do que Bernier conta, o ouviu do próprio Manucci, e que mesmo assim, nem sequer relata como deve ser aquilo que ele lhe contou. Ao longo das suas descrições, Manucci vai aqui e acolá afirmando o seu desacordo com afirmações de Bernier, como ao descrever uma sua visita a casa da princesa Begom Saeb, filha de Shah Jahan321 que, a ser verdadeira a condição mitológica de absoluta privacidade de que Bernier a faz rodear, nunca tal seria possível já que Manucci tivera acesso pessoal à referida casa sem sentir que existisse qualquer impedimento, o que contraria a afirmação de Bernier, na sua opinião.

Finalmente, a sua leitura, vai-nos transmitindo a consciência de que Manucci é verdadeiramente um racconteur, vai intercalando a sua descrição dos

317 Irvine discute a influência de Bernier no trabalho de Manucci bem como a relevância da

informação que este lhe prestou, sendo certo para Irvine que Manucci conhecia o que Bernier havia publicado. In Manucci, op. cit. Vol. I, p.51.

318 Obra referida por Sanjay Sbrahmanyam no trabalho de 2008 que vimos citando

319 Ibid.

320 Marketplaces no texto em inglês, nelle botteghe, em italiano no original (Subrahmanyam, op. cit.,

reprint, p. 45).

grandes personagens da história do mugores com as mais variadas pequenas histórias e episódios populares em que, conforme explicitamente se propôs, procura mostrar as virtudes e o caracter dos personagens. Todo o seu percurso é pontuado de acidentes e de estadias em diversos sítios e de situações que vai descrevendo com pormenor acrescentando a cada passo, numa ausência aparente de ordem, as histórias populares que envolvem os vários personagens que vai conhecendo ou as descrições que recolhe de figuras que conhece e a quem dá especial crédito. Descreve, além disso, os modos de vida que vai observando, o fausto das cortes dos vários principes, a composição dos seus exércitos e a estrutura política que lhe é dado perceber.

Sobressai também a impressão, para além da pretendida arrumação da sua obra nas grandes partes já referidas, que o desfiar das suas histórias se vai subordinando a uma ordem subliminar, de agrupamento pelas suas características de semelhança de situações ou de motivações, como quando fala dos portugueses, ou por ligações entre acontecimentos e pessoas, como a curiosidade do nome da mulher portuguesa que foi visitar em Agra, Maria de Taíde, e o do português com quem teve negócios em Damão, Taíde também, ou a razão por que fez uma viagem a Hugli , onde tinha negócios segundo conta ao seu amigo mugol que visita a caminho, a qual permanece oculta para nós mas que obedecerá por certo a um fio condutor, não explícito, ao longo da sua vida e da sua obra.