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ESTRUTURAS CLÍNICAS, CASTRAÇÃO E INTERDIÇÃO PULSIONAL

No documento Mídia, horror e vicissitudes pulsionais (páginas 37-44)

2. PRAZER NO EXECRÁVEL: UM DESTINO POSSÍVEL À PULSÃO

2.2. ESTRUTURAS CLÍNICAS, CASTRAÇÃO E INTERDIÇÃO PULSIONAL

Os destinos que podem ser percorridos por uma pulsão diz respeito à estrutura psíquica na qual o sujeito está operando. É importante trazer a

este trabalho a distinção entre as estruturas psíquicas, pois cada uma delas vai obter satisfação pulsional de forma diferente. Frente a isso, nos parágrafos seguintes pretende-se esclarecer de que forma cada estrutura reage frente à premência de uma descarga pulsional.

A organização de uma estrutura mental se inicia através dos movimentos de antecipação da mãe e precipitação do bebê. Através destes movimentos é possível a ocorrência da plena satisfação pulsional do bebê, pois a pulsão realiza todo seu circuito sem qualquer intercorrência. Porém, em um dado momento algo acontece e barra a possibilidade de descarga da pulsão; este algo diz respeito à castração.

Com a instauração da castração, frente à antecipação do Outro (mãe) a pulsão (do bebê) pode não conseguir realizar todo o seu circuito, pois existe uma interdição. O materno teve uma função importante para a construção do psiquismo do bebê, mas é o pai que, ao introduzir a lei, torna aquele bebê um sujeito, dono de seu próprio desejo. A permanência simbiótica mãe-bebê (sem a castração) poderia originar uma psicose neste último, por isso falamos que qualquer reencontro com o materno levaria à morte psíquica.

A partir disso, é preciso considerar o complexo de castração como acontecimento importante para a estruturação psíquica, pois é a partir dele que ocorre o delineamento de três estruturações: neurose, psicose e perversão. Durante o Édipo toda pulsão foi satisfeita, mas com a castração ocorre uma interdição àquela desmedida pulsional, àquele excesso de prazer; prazer que nunca mais virá da mesma maneira e será perseguido como um ideal15.

Portanto, frente à castração imposta pela função paterna, é possível que o sujeito responda de três maneiras distintas: verdrängung (recalque), verwerfung (forclusão) e verleugnung (recusa), sendo que cada uma delas promove uma estruturação, respectivamente, pela via da neurose, psicose ou perversão.

O psicótico é aquele que não ouviu a lei paterna, seja pelo fato de a lei não ter sido apresentada ou por ter sido apresentada de forma muito frágil,

15 Com a castração o grande Outro (materno) se decompõe em objeto a, objeto causa de

desejo, objeto que será sempre perseguido pelo sujeito a fim de reestabelecer sua completude. É esta busca pela completude perdida que movimenta o sujeito.

sem força suficiente para cortar o laço dual entre mãe-filho. Com isso, frente a uma determinada pulsão, o psicótico renuncia a realidade externa e constrói uma nova, e este movimento ocorre em prol da satisfação pulsional (FREUD, 1924/1996).

Para ilustrar como a psicose se dá, podemos pensar como exemplo o caso de Ed Gein, ladrão de lápides e homicida norte americano cuja história de vida inspirou personagens de filmes como: Buffalo Bill (Silence of the Lambs – 1991), Leatherface (The Texas Chain Saw Massacre – 1974), Norman Bates (Psycho – 1960), dentre outros16 (WIKIPÉDIA, [s.d.]).

Em vida, Ed Gein exumava cadáveres e com eles construía objetos para ornamentação de sua casa, tal como tigelas de sopa com crânios humanos, cinto de mamilos, seios usados como seguradores de copos, puxador de janela de lábios humanos... Possuía até mesmo uma roupa feita com a pele de mulheres, a partir da qual ele poderia também transformar-se em mulher (WIKIPÉDIA, [s.d.]).

Em seu julgamento pelos crimes cometidos, Ed Gein foi considerado não culpado pelos seus atos devido a sua insanidade e internado em um hospital psiquiátrico, local onde passou o resto de sua vida (WIKIPÉDIA, [s.d.]). Ora, a culpa é uma herança paterna, fruto de uma castração que impõe limitação a uma demasia pulsional, a um excesso de gozo. A culpa somente é sentida quando sabemos que algum limite foi ultrapassado (o limite da castração) e este limite é respeitado somente pelo neurótico.

Ed Gein, imerso em seu mundo de fantasias, não possuía qualquer parâmetro para medir a legalidade ou ilegalidade daquilo que realizava, tampouco para discernir o certo do errado. Este humano, não teve a lei paterna inscrita em seu psiquismo, por isso foi julgado incapaz de responder por seus atos. Não se tratava do direcionamento de pulsões sádicas a alguém com a finalidade de destruição, ele simplesmente não sabia o que estava fazendo. A história deste sujeito é muito interessante e importante,

16

Outro filme de grande importância para a compreensão da psicose, mas que não mantém relação direta com a história de Ed Gein, é The Shining. Lançado em 1980 sob a direção de Stanley Kubrick e baseado no livro homônimo de Stephen King é considerado hoje por alguns críticos como o maior filme de todos os tempos.

mas como não constitui foco deste trabalho, fica apenas como uma possibilidade de estudo.

O perverso é aquele que ouviu a interdição paterna, mas recusou a realidade de uma percepção traumatizante, que seria reconhecer a mulher enquanto castrada (LAPLANCHE, 2001). A saída que o perverso encontrou não foi de recusa à realidade, tampouco de recusa à satisfação pulsional; ele toma ambos simultaneamente, o que acarretou em uma divisão do ego. Ele recusa a realidade e as proibições, mas também reconhece o perigo desta realidade; cria objetos fetiche como substituto do pênis da mãe, afirmando a não castração materna e também seu próprio triunfo sobre a castração (FREUD, 1927/1996; 1940[1938]/1996).

No livro Perversão, construído a partir de autores renomados em seus estudos sobre esta estrutura psíquica, McDougall (1989 apud FERRAZ, 2010, p.89) assinala que “a castração é o mote de toda a criação perversa”. Através de casos clínicos o livro traz fragmentos de rituais na perversão em que o sujeito organiza uma cena e coloca o perigo real de ser descoberto como uma possibilidade (mesmo que remota).

A castração é reencenada em cada montagem do perverso, tendo como objetivo uma vitória (satisfação pulsional), reafirmação de sua não castração e de sua completude. O risco de ser pego em flagrante (que é o risco da castração) serve como um incremento à excitação, ela está ali, existe enquanto uma possibilidade de interromper seu prazer. Diferente do psicótico, o perverso conhece a lei, mas não quer segui-la.

Um seriado norte americano de muito sucesso pode servir como ilustração. Dexter (primeiro episódio lançado em 2006), conta a história de Dexter Morgan, um investigador da polícia de Miami e nas horas vagas serial killer. Por vezes o personagem fala em primeira pessoa, e conta que de tempos em tempos sente uma urge17 (impulso/pressão) que ele sabe que só

cessará no momento em que puder canalizar em seu alvo: o aniquilamento de sua vítima.

Trata-se de um serial killer organizado, metódico, com uma vida social perfeitamente sustentada por um falso self18 e também com um delírio

missionário: mata apenas pessoas que já cometeram algum crime e para tal, realiza uma profunda pesquisa sobre sua vítima. Seu serviço é sempre realizado em um local escondido, isolado, mas na trama geralmente está desviando de alguém (componente de risco/perigo). A capacidade de ele realizar o ato (matar; proibição máxima de uma função paterna) reafirma seu triunfo sobre a castração, a excitação interna (pulsão/urge) é descarregada e promove prazer.

O grande sucesso desta série também pode ser explicada através dos destinos pulsionais aos quais nos referimos no tópico anterior. Dexter, o psicopata assassino, recebe a projeção de nossas tendências mais perversas e, ao colocá-las em ação, faz com que o expectador frua masoquistamente da cena. Sofre por ver a morte, mas, em contrapartida também dá um destino à sua tendência destrutiva.

Para além da ficção, podemos nos reportar a Ted Bundy, um dos mais temíveis serial killers da America do Norte. Era um homem descrito como charmoso, sedutor e que utilizava como isca às vítimas um par de muletas e gesso. Bundy foi condenado à pena de morte por eletrocussão, sendo que a defesa de um dos julgamentos foi ele mesmo quem realizou; foi advogado de si mesmo. Isso nos mostra a ideia narcísica, de completude que estes sujeitos possuem, não foram castrados, não possuem qualquer falta, e por isso utilizam-se do outro apenas como objeto em seu mecanismo de repetição (repete de forma ativa o que sofreu de forma passiva) e não como alguém capaz de lhe completar.

Um dito do senso comum diz o seguinte: se um estuprador vier até ti, abrace-o. A primeira vista isso causa espanto, mas se analisarmos pela teoria, o perverso precisa estar em uma posição ativa, de sujeito da situação

18 Conforme Bogomoletz (2007) o falso self emerge frente a uma situação de desamparo

total, em que o bebê ficou por um período demasiadamente longo sem uma resposta emocional, sentindo a perda do seu cuidador e também a perda de si próprio. O falso self é aparentemente adaptado à realidade, o sujeito parece ser totalmente equilibrado, mas, na verdade busca vingança por aquilo que perdeu e tenta garantir que não haverá mais perdas. O falso self forma-se a partir da acumulação de experiências predominantemente passivas, em que o bebê fica a mercê das ações do outro. O falso self é fruto de uma deprivação e origina a tendência antissocial que poderá levar à delinquência.

para que a execução de sua cena seja efetiva para ele. Se o outro (o objeto/vítima) o desejar ocorre uma inversão de posição, pois o perverso acaba ficando em uma situação de objeto de desejo do outro. Estar em uma condição de objeto é algo que ele não suporta.

Por fim, o neurótico é aquele que ouviu a interdição paterna e que recalcou os conteúdos ligados a uma pulsão impossível de ser satisfeita de forma direta e consciente. Ou seja, o neurótico renunciou à satisfação pulsional, e as manteve no inconsciente (LAPLANCHE, 2001). Com o recalque (um dos destinos possíveis à pulsão) foi instalada uma amnésia acerca dos primeiros anos de vida e a pulsão, por mais que exerça força contra a barreira da censura, só poderá ter acesso à consciência (e promover sua descarga) de forma deformada.

A execução de atos, como aqueles citados na estrutura psicótica e perversa, são inimagináveis do ponto de vista neurótico. Transgredir a barreira da interdição erigida a partir da castração simbólica viabilizaria uma restauração da completude vivida outrora junto ao materno e um acesso completo ao gozo. Vale ressaltar que o acesso à completude, ao passo que é desejado é também impossível (e proibido), pois reposicionaria o sujeito em uma condição de assujeito, ausente de desejo e morto psiquicamente.

Ora, frente à força contínua que a pulsão exerce contra o sistema consciente e, em contrapartida, a impossibilidade de suplantar a proibição do gozo, o neurótico utiliza-se de artifícios a fim de viabilizar uma descarga de tamanha excitação. O ato não pode ser praticado diretamente, mas a pulsão pode sofrer vicissitudes, tal como foi descrito anteriormente e em diversos exemplos.

A sublimação é um destes mecanismos que serve de escoadouro pulsional ao neurótico. Esta vicissitude já foi trabalhada anteriormente e diz respeito a dar uma finalidade superior à moção pulsional, seja pela escrita, pela arte, pela direção e atuação de filmes, pelo teatro... Sublimar é suplantar a própria pulsão sádica (além de outras pulsões) de destruição, transformando-a em um veículo que dará origem aos mais incríveis contos de terror.

Mais próximo do real, perguntamo-nos de onde vêm aqueles olhares curiosos, extasiados que se aglomeram em torno de acidentes de carro, de escombros deixados pelas enchentes, de ruínas deixadas por um incêndio? O que mobiliza as pessoas a irem até um lugar marcado pela morte? De onde vêm aqueles olhares que se direcionam a imagens de corpos despedaçados, carbonizados e em putrefação constantemente compartilhadas pelas pessoas via Facebook, Whatsapp, e mesmo pela mídia? Este olhar provém do interior do próprio sujeito, diz respeito à sua pulsão.

O estranhamento que pode, muitas vezes, advir ao observarmos uma cena de grande crueldade, é mais um indicador de como nossa vida mental está atrelada a acontecimentos execráveis. Freud (1919/1996) aborda o tema do estranho como aquilo que é assustador, que provoca medo e horror. O autor assinala que aquilo que experienciamos como estranho diz respeito a algo que um dia já fez parte da nossa consciência (uma pulsão destrutiva, por exemplo), que nos foi familiar, mas que foi posteriormente recalcado. O estranhamento é a emergência de uma pulsão recalcada.

Tendo em mente as vicissitudes sofridas pela pulsão e também as polaridades da vida mental, é possível compreender que existe prazer ao olhar tais cenas ou imagens, mas trata-se de um prazer no inconsciente, um prazer que ocorre a partir do escoamento daquela pulsão que foi um dia barrada pela interdição da castração. Resgatando Freud, o prazer do neurótico não é sentido por ele como tal, é sentido ao seu contrário.

Por isso, quando Freud escreve, em diversos artigos, que “a neurose é o negativo da perversão”, trata-se de um negativo quanto à possibilidade da plena satisfação pulsional, pois a mesma teve de ser recalcada pelo neurótico frente à imposição da realidade. Enquanto ao perverso é possível a realização da satisfação pulsional sem muitos “rodeios”, o neurótico precisa deslocar, condensar, mascarar, sublimar suas pulsões para que elas consigam atingir uma descarga no consciente e levar ao prazer.

3. GOZO, MÍDIA E O ENCONTRO COM O IMPOSSÍVEL

“O homem que não sabe dominar os seus instintos, é sempre escravo daqueles que se propõem satisfazê-los”

(Gustave Le Bon).

Uma pesquisa nunca se esgota, mas é chegado o momento de delimitar aquilo que foi estudado até o momento, e também estabelecer um conjunto de conclusões, rumo a uma finalização. Para tanto, neste breve capítulo, pretende-se retomar a diferença existente entre a obtenção de prazer frente a uma cena de horror apresentado pelos filmes, daquela frente à cena de horror apresentada pelos telejornais, bem como a posição que a mídia ocupa neste vai-e-vem pulsional.

Neste capítulo também serão realizadas novas pontuações acerca da existência paradoxal inerente ao gozo. Como já foi visto nos capítulos anteriores, o gozo é aquilo que promove prazer, mas traz consigo uma carga de desprazer para o sistema consciente, haja vista que prazer em uma instância psíquica não acarreta, necessariamente, prazer em outra.

No documento Mídia, horror e vicissitudes pulsionais (páginas 37-44)

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