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Mídia, horror e vicissitudes pulsionais

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

CAROLINE CHITOLINA

MÍDIA, HORROR E VICISSITUDES PULSIONAIS

Santa Rosa 2014

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CAROLINE CHITOLINA

MÍDIA, HORROR E VICISSITUDES PULSIONAIS

Monografia apresentada junto ao Curso de Psicologia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Psicologia e Psicólogo.

Orientadora: Ms. Iris Fátima Alves Campos

Santa Rosa 2014

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CAROLINE CHITOLINA

MÍDIA, HORROR E VICISSITUDES PULSIONAIS

Monografia apresentada junto ao Curso de Psicologia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Psicologia e Psicólogo.

Banca examinadora:

... Prof: Ms. Luciane Gheller Veronese

Conceito:

... ...

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DEDICATÓRIA

Dedico este Trabalho de Conclusão de Curso à minha família e a todos que, através de sábias palavras, contribuíram no meu percurso acadêmico.

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AGRADECIMENTO

Agradeço a todos os mestres que foram capazes de transmitir a mim a semente da dúvida, da vontade de pesquisar e de aprender. É somente a partir da dúvida que o conhecimento se constrói.

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Em nossa obscuridade, no meio de toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo delinear os desdobramentos psíquicos que viabilizam o deslumbramento do sujeito neurótico frente aos atos de selvageria transmitidos pelas mídias de comunicação em massa. Para tanto, fez-se um percurso histórico a fim de apontar que este tipo de prática se estende desde a antiguidade até os dias atuais, constituindo um costume demasiadamente humano, pois tem suas origens atreladas aos movimentos pulsionais inerentes a todo e qualquer sujeito. Para responder a questão central deste trabalho utilizou-se como metodologia o estudo bibliográfico, elegendo como pontos nodais a serem articulados: a tendência da mídia na utilização do sensacionalismo e dos Fait Divers e as vicissitudes que a pulsão realiza para atingir sua finalidade. As mídias, rapidamente, compreenderam que a audiência (meio pelo qual advém a lucratividade) é prontamente alcançada quando são colocadas no ar notícias que provocam comoção, indignação ou mesmo horror. Com um aparelhamento que prioriza os Fait Divers e o sensacionalismo, as mídias oferecem, dentre outros, um objeto pelo qual a pulsão escópica atingirá sua satisfação: o horror. A partir do material pesquisado é possível inferir que o olho constitui uma zona erógena, de cuja fonte emanam pulsões que necessitam de um escoamento. Em síntese, há expectadores porque as imagens provocam gozo naquele que assiste, promove prazer (no inconsciente) mesmo que promova desprazer (no consciente) e este paradoxo prazer/desprazer é uma das imagens do gozo.

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ABSTRACT

This paper aims to outline the psychological unfolding that allow a fascination of neurotic in front of acts of savagery transmitted by the media of mass communication. For that, it was made an historical route in order to point out that this practice extends from antiquity to the present day, and it regards to a too human habit, it has its origins tied to instinctual movements inherent in any person. To answer the central question of this work it was used the bibliographical study as methodology, chosen as nodal points to be articulated: the trend of media use the sensationalism and Fait Divers, and the vicissitudes that the instincts performs to achieve its purpose. The media quickly understood that the audience (means by which comes profitability) is readily achieved when they place in the air news that cause commotion, indignation or even horror. With a rigging that prioritizes Fait Divers and sensationalism, the media offer an object for which the scopic drive reach your satisfaction: the horror. From the researched material is possible to infer that the eye is an erogenous zone, whose source emanate instincts that require an outflow. In summary, there are spectators because the images cause jouissance, promotes pleasure (to the unconscious) even promoting displeasure (to the conscious) and this paradox pleasure/displeasure is one of the sightings of jouissance.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

1. O ESPETÁCULO DO HORROR AO LONGO DOS TEMPOS ... 10

1.1. IDADE ANTIGA – O COLISEU DE ROMA ... 10

1.2. IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA – O CORPO SUPLICIADO ... 13

1.3. IDADE CONTEMPORÂNEA – OS FREAK SHOWS ... 17

1.4. HOJE – AS MÍDIAS DE COMUNICAÇÃO EM MASSA ... 22

2. PRAZER NO EXECRÁVEL: UM DESTINO POSSÍVEL À PULSÃO ... 27

2.1. A PULSÃO E SEUS DESTINOS ... 28

2.2. ESTRUTURAS CLÍNICAS, CASTRAÇÃO E INTERDIÇÃO PULSIONAL 36 3. GOZO, MÍDIA E O ENCONTRO COM O IMPOSSÍVEL ... 43

3.1. A MÍDIA ENQUANTO MEDIADORA DE UM GOZO IMPOSSÍVEL ... 43

CONCLUSÃO ... 51

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INTRODUÇÃO

Vivemos um momento histórico em que o público e o privado confundem-se, e neste cenário emerge a mídia enquanto um mecanismo que nos permite ter acesso às informações de todo o planeta. Tragédias, mortes e sofrimento, que antes eram preservados no seio da família, são hoje um prato cheio para a mídia vender ao telespectador e aumentar seus índices de audiência.

É fato que notícias que envolvem horror, comoção, calamidade pública atraem o olhar do espectador, e a mídia apresentar algo ao público a fim de obter audiência e lucratividade não é algo novo. Perguntamo-nos, a partir disso: o que leva o sujeito a permanecer fixado frente ao horror, ao sofrimento alheio? Este é o nosso problema de pesquisa e este trabalho será organizado de forma a responder tal questionamento.

A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica, que consiste na investigação e análise de estudos publicados acerca do tema da pesquisa. Desta forma, foram utilizados recursos como livros, periódicos científicos e diversos outros materiais que puderam fornecer subsídios para a condução deste trabalho de conclusão de curso.

Esta produção tem como aporte teórico a psicanálise e está organizada em forma de capítulos. No primeiro capítulo foi realizado um resgate histórico acerca do espetáculo que se produz a partir de uma cena de horror, tendo como objetivo mostrar ao leitor que esta prática está presente ao longo da história da humanidade. No segundo capítulo foi realizado um estudo sobre as pulsões, relacionando este prazer de ver as vicissitudes pulsionais. Por fim, no terceiro capítulo, propõe-se uma retomada e integração das ideias explanadas ao longo do trabalho.

Pretende-se, a partir desta construção, apresentar os mecanismos psíquicos que viabilizam (a todos os humanos) o estado de deslumbramento frente ao execrável transmitido pelas mídias de comunicação em massa. Nossas pulsões perversas precisam de um escoadouro e a mídia nos dá um objeto pelo qual a pulsão pode se satisfazer: o horror.

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1. O ESPETÁCULO DO HORROR AO LONGO DOS TEMPOS

“A crueldade é um dos prazeres mais antigos da humanidade" (Friedrich Nietzsche).

Ao longo da História, as pessoas possuíram diferentes formas de divertir-se, contudo algo se mostrou presente em grande parte dos episódios relacionados à diversão. Tanto o rebaixamento do outro a um objeto quanto a iminência da morte (ou mesmo a morte), são temáticas recorrentes em registros históricos quando se trata de “diversão”. Ou seja, a partir destes registros é possível verificar certa afinidade entre “divertimento” e “abjeção do outro”.

Observar o semelhante em padecimento acompanhou todos os ciclos de desenvolvimento da nossa sociedade, e é possível nutrir esta relação a partir, justamente, de fragmentos históricos. Os anfiteatros da era antiga, a execução de determinadas leis penais da era medieval e moderna, bem como a ascensão dos circos dos horrores na idade contemporânea são exemplos que fornecem um panorama acerca das práticas as quais nos referimos neste trabalho.

Nos parágrafos seguintes será realizado um breve apanhado destas formas de práticas “demasiadamente humanas” a fim de compreender de que forma o horror foi absorvido pela comunidade e transfigurado em algo passível de diversão. Pretende-se encontrar, em cada período histórico, elementos que justifiquem esta prática como presente em todos os meandros históricos.

1.1. IDADE ANTIGA – O COLISEU DE ROMA

Inicialmente denominado Anfiteatro de Flávio (Amphiteatrum Flavium), o Coliseu de Roma teve sua construção finalizada em 80 a.C e passou a ser chamado por esse nome devido a sua proximidade com o colosso de Nero, uma enorme estátua em suas imediações. Com capacidade para acolher 50 mil espectadores, recebia um público das mais diversas classes sociais, tal

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como os senadores, os sacerdotes, os altos funcionários, o imperador e a sua família e também a plebe (SCHNEIDER, 2003).

Ambiente de alta procura para festas romanas e grande válvula de escape para as multidões delirantes e sedentas de diversão, o Coliseu possuía entrada gratuita a todos os cidadãos livres, tanto mulheres quanto homens. Quando a festa acontecia à noite “um círculo de luzes baixava sobre o anfiteatro. Bandas de músicas alegravam os intervalos. Nos instantes mais dramáticos dos combates entre os gladiadores e as feras, a orquestra aumentava o volume, eletrizando o ambiente” (SCHNEIDER, 2003, p.89).

No Coliseu eram expostos bárbaros vencidos, inimigos que se opuseram à ordem romana, bandidos, marginais e, por vezes, cristãos ao suplício; todos eram lançados às feras e oferecidos como espetáculo (GUARINELLO, 2007). Contudo, para além desta forma de “execução da lei”, o mais estimulante dentre os espetáculos do Coliseu era o duelo entre os gladiadores.

Inicialmente os gladiadores eram compostos por grupos de escravos desobedientes, criminosos condenados ou prisioneiros de guerra, porém, Guarinello (2007) defende que na época do Império homens livres e até mesmo imperadores compunham este grupo, pois a gladiatura tratava de um momento de verdade, momento este em que a morte deixava de ser uma ameaça terrível e passava a ser parte da vida; “deixava de ser objeto de angústia para se tornar objeto de honra” (p.129). Schneider (2003) também se refere a este assunto, citando que estes guerreiros voluntários arriscavam a própria vida em busca de fama e fortuna.

Tanto nas lutas entre gladiadores quanto no suplício, a morte fora transfigurada pelos romanos em um espetáculo; pode-se observar este cenário em uma das passagens de Guarinello (2007, p.127), quando o autor cita uma passagem da obra Confissões de Agostinho. Esta passagem conta a história de Alípio, que é levado “forçadamente” ao anfiteatro pelos amigos:

Chegaram, sentaram-se como puderam, todo o anfiteatro ardia com as mais selvagens paixões. Alípio, fechando seus olhos, proibiu seu espírito de participar dessas atrocidades. Pena que não tenha

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também abafado seus ouvidos. Pois aturdido pelo grito tonitruante de toda a multidão após a queda de um dos gladiadores, foi vencido pela curiosidade e, como se estivesse preparado para suportar e desprezar o que fosse que estivesse acontecendo, abriu seus olhos e recebeu em sua alma uma ferida mais severa do que o gladiador recebera em seu corpo, e caiu mais miseravelmente que o homem cuja queda suscitara o grito. Pois quando viu o sangue, imediatamente sorveu a selvageria e não virou o rosto, mas fixou-se na imagem que via e absorveu a loucura e perdeu seu senso crítico e deleitou-se com a luta criminosa e embebedou-se num funesto prazer. Não era mais o homem que tinha ido ao espetáculo, mas um membro da multidão, um verdadeiro companheiro daqueles que o haviam trazido [...].

Garraffoni (2005) teoriza que ao voltarmos o nosso olhar a uma época em que centenas de homens e de animais eram mortos em arenas romanas, temos desconforto e estranhamento. Da leitura de Garraffoni nos perguntamos sobre o que entendemos ser paradoxal: nossa sociedade estranha aquilo produzido pelos romanos enquanto vive um momento de pós-guerra, em meio a violações de direitos humanos, civis e sociais? Parece- nos que horrorizar-se com os coliseus de outrora, mostra nossa incapacidade de vislumbrar a própria realidade.

É importante retomar que, ao contrário do pensamento leigo, a partir da leitura de Garraffoni (2005) e Guarinello (2007) é possível compreender que as lutas entre gladiadores não tinham um mero sentido político de controlar as massas e diverti-las na base de “pão e circo”; esses eventos também desempenhavam importante papel na constituição de uma identidade romana frente aos povos conquistados. Nas palavras de Guarinello (2007, p.128) “os anfiteatros funcionavam como uma espécie de microcosmo da sociedade romana, como parte e reflexo da vida cotidiana”.

No Coliseu, o duelo é uma representação, um teatro da vida social e das relações de poder e dominação, sendo também uma representação dos valores sobre os quais o Império se funda. Conforme Garraffoni (2005, p.16) “o que está em jogo nos munera1, [...] é muito mais do que a vida de um

1 Os eventos dos anfiteatros eram geralmente categorizados como ludi ou munera. Ludi eram

jogos públicos organizados pelo Estado, enquanto munera eram trabalhos públicos organizados e pagos por cidadãos ricos. Os gladiadores nem sempre eram escravos, por vezes homens livres disponibilizavam-se ao Estado a fim de se tornarem gladiadores. Isto era provavelmente feito devido ao dinheiro e, apesar deles estarem basicamente dando a sua vida, lutas até a morte não eram tão comuns quanto se poderia esperar. Lutas de

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gladiador: são os valores fundamentais de uma sociedade, seus sentimentos, seu sistema de honra e vergonha, sua própria razão de ser assim: isto é, ‘romana’ e não ‘outra’”.

Os jogos se originaram em Roma em 264 a.C e extinguiram-se por volta do século V d.C. por influência da Igreja que, ao firmar sua posição no Império Romano, determina a proibição dos jogos circenses. O ano de 404 d.C assinala o término dos combates nos anfiteatros, os quais atravessaram seis séculos de existência (GARRAFFONI, 2005; SCHNEIDER, 2003).

1.2. IDADE MÉDIA E IDADE MODERNA – O CORPO SUPLICIADO

Ao longo dos períodos históricos, é possível inferir que a lei penal tem sido executada das mais diversas formas, na maioria das vezes com o objetivo de punir aqueles que descumpriram a lei, e também amedrontar e ensinar à comunidade que contravenções penais ou crimes mais graves trariam consequências. A prática do suplício está presente em diversos períodos históricos, tendo sido utilizada de forma mais entusiástica nos períodos que compreende tanto a era medieval quanto a moderna.

Conforme Foucault (1987), suplício é o nome que se dá à pena corporal, de cunho doloroso e “mais ou menos atroz” (p.31), é um fenômeno fora do alcance da imaginação humana no que tange à barbárie e crueldade. Retomando Foucault, o autor ainda cita que o suplício faz parte de um ritual e a morte-suplício é “a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em ‘mil mortes’”, obtendo-se assim, antes do último suspiro, a mais requintada das agonias2.

Ao contrário do que se pensa, os suplícios não constituíam práticas frequentes, a maior parte das condenações penais consistiam em banimento ou multa. Vale ressaltar que a pena de banimento era, em alguns casos, precedida pela exposição e marcação com ferrete, e a multa, por vezes, era acompanhada de açoitamento; esta situação coaduna com o propósito de gladiadores eram eventos públicos pagos pela elite romana (munera) e a morte de um gladiador poderia custar caro (ALEXANDER, 2014). Tradução livre feita pela autora.

2 Tradução livre feita pela autora a partir do fragmento “the most exquisite agonies” da obra

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que qualquer pena um pouco mais séria deveria incluir algo de suplício (FOUCAULT, 1987).

Foucault (1987) nos traz que apesar de tratar-se de uma prática de difícil compreensão, ela não é selvagem e tampouco irregular; trata-se de uma técnica, a qual não deve ser comparada aos extremos de uma raiva sem lei. A partir do referido autor e parafraseando Rebello (2013), para que uma pena possua o status de suplício ela deve obedecer a critérios, como: produzir certa quantidade de sofrimento, ser a morte o término de uma graduação calculada de sofrimento e levar à completa agonia.

Conforme Santiago e Castro (2012), em tese a Lei Penal na Idade Média tinha a finalidade de provocar medo na comunidade. Sob o comando da Igreja surgiram as Orgálias ou “juízos de Deus”; com isso os acusados eram submetidos aos mais variadas tipos de torturas e, caso os mesmos não superassem as provas (se não sobrevivessem às torturas), era devido ao fato de que Deus não estava com eles. Com as torturas, esperava-se que a comunidade fosse assolada pelo medo, contudo as mesmas eram vistas como verdadeiros espetáculos. Grego (2011, p.46 apud SANTIAGO; CASTRO, 2012 p.4) nos diz que

a multidão se regozijava com o sofrimento, com os gritos do condenado, com a arte com que os torturadores manejavam seus instrumentos. A dor era o combustível que mantinha o público ávido em assistir a essas “distrações públicas”.

Para o condenado, a morte, enquanto medida punitiva, não era o suficiente e o suplício possuía justamente esta função: de prolongamento do sofrimento para que o condenado sentisse na própria carne a culpa (REBELLO, 2013). Desse modo, a sociedade era capaz de perceber a efetivação da justiça. Impossível não lembrar neste momento da obra de Franz Kafka, Na Colônia Penal. Nesta novela, o autor fala sobre uma cidade cujos métodos de execução penal consistem em um flagelo do corpo em forma de suplício.

Nessa obra, Kafka (1996) nos apresenta uma máquina de grande engenhosidade, arquitetada pelo antigo comandante da cidade. O aparelho era composto por três partes: a parte inferior levava o nome de Cama e nela

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o condenado era disposto; na parte superior, o Desenhador, era colocado o desenho do antigo comandante, uma espécie de molde que orientaria os movimentos de inscrição; entre a Cama e o Desenhador oscilava uma cinta de aço denominada Rastelo, o qual compreendia um sistema de agulhas que “dançavam sobre a pele” (p.45) do condenado e que eram responsáveis pela verdadeira execução da sentença.

A máquina funcionava ininterruptamente por doze horas, gravando sobre o corpo do condenado o dispositivo legal que ele mesmo violou. O moribundo não possuía saber algum sobre sua sentença, não tivera direito à defesa e tampouco sabia que seria supliciado. Após seis horas sob a máquina, o homem seria capaz de decifrar, não com os olhos, mas com as feridas, a inscrição e compreender qual fora seu crime (KAFKA, 1996).

[...] então chegava a sexta hora! Era impossível atender a todos os pedidos para ficar olhando de perto. O comandante, com a visão que tinha das coisas, determinava que sobretudo as crianças deviam ser levadas em consideração; eu no entanto podia permanecer lá graças à minha profissão; muitas vezes ficava agachado no lugar com duas crianças pequenas no colo, uma à esquerda e outra à direita. Como captávamos todos a expressão da transfiguração no rosto martirizado, como banhávamos as nossas faces no brilho dessa justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia! Que bons tempos aqueles, meu camarada! (KAFKA, 1996, p.28-29).

No cerimonial do suplício, o protagonismo do povo é essencial, sua presença é requerida para tal realização. Um suplício anônimo não possui sentido, pois se procurava, de um lado, dar o exemplo de que mediante qualquer infração a ameaça da punição era iminente, e também provocar certo terror na plateia “pelo espetáculo do poder tripudiando sobre o culpado” (FOUCAULT, 1987, p.49).

Não basta que as pessoas saibam, é necessário que elas testemunhem, e este é um direito que elas possuem e reivindicam, de forma a garantir que a punição seja realizada com toda a sua severidade. O povo exige seu direito de presenciar o suplício e de saber quem é o supliciado, de forma que todos protestam quando, no último instante, a vítima é retirada dos olhares dos espectadores. A premência da punição é tamanha que, se o carrasco for capaz de decapitar com apenas um golpe, a plateia em êxtase o ovaciona e o aplaude; mas caso fracasse, pode sofrer punições (FOUCAULT, 1987).

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Refletindo ainda sobre a novela de Kafka, Foucault (1987) traz elementos condizentes com o que se apresenta naquela obra, registrando que em relação à vítima o suplício deve ser marcante, ele traça sobre o corpo do condenado sinais que não devem se apagar, a memória guardará a lembrança da exposição, da tortura e do sofrimento. Pelo lado da justiça, o suplício deve ser ostentoso e visto como seu triunfo.

Foucault (1987) atesta que as violências exacerbadas são parte integrante da glória jurídica, de forma que os gemidos ou gritos do supliciado não constituem algo secundário e vexatório, justamente o contrário, “é o próprio cerimonial da justiça que manifesta em sua força” (p.32). Por este motivo, o referido autor crê que os suplícios se prolongam após a morte (queima de cadáveres, cinzas jogadas ao vento, corpos expostos à beira das estradas...), pois mostra que “a justiça persegue o corpo além de qualquer sofrimento possível” (p.32).

É importante trazer à discussão que o crime cometido, além de atacar a vítima, também ataca o soberano, visto que a lei vige a partir da vontade do soberano, “a força da lei é a força do Príncipe” (FOUCAULT, 1987, p.41). Desta forma, ainda conforme Foucault, o suplício, além de sua função jurídica, possui uma função política, de reconstituir a autoridade lesada. A execução pública se insere em um encadeamento de grandes rituais do poder e, acima do crime que dilapidou o soberano, ela exibe a todos uma força vigorosa e invencível.

Por volta do período que compreende 1830 a 1848 o espetáculo do suplício foi escamoteado, a encenação da dor e o castigo foram deixados de lado. Se antes o homem expiava seus pecados através do suplício, agora a punição atua em um nível mais profundo, na alma do condenado. Aos poucos a punição deixava de ser uma cena e “[...] a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro [...]” (FOUCAULT, 1987, p.13).

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1.3. IDADE CONTEMPORÂNEA – OS FREAK SHOWS

Freak Shows são comumente conhecidos, em uma tradução livre, como show dos horrores ou mesmo show das aberrações. Consistia na apresentação de pessoas com nanismo, microcefalia, gigantismo, mulheres barbadas, gêmeos siameses, pessoas com membros amputados ou mesmo com membros extras, etc. Todas e quaisquer formas que não se encaixassem nos padrões ditos humanos, acabavam sendo absorvidas pelos freak shows, sendo, muitas vezes, a única forma destas pessoas se estabelecerem financeiramente.

O ano de 1840 é considerado por Bogdan (1988) uma data importante para situar como início dos freak shows enquanto uma prática formalmente organizada para exibição de pessoas com anomalias físicas (supostas ou reais), mentais ou comportamentais para diversão e lucro. O autor ainda pontua ser importante este conceito de prática “formalmente organizada” para distinguir os freak shows de anteriores exibições de atrações isoladas que não estavam vinculadas a organizações, tal como os circos ou parque de diversões.

O ano de 1840 é uma data importante porque ocorre uma transição de exibições humanas isoladas para freak shows e também porque, próximo a esta data, Phineas Taylor Barnum tornou-se o proprietário de uma organização em Nova York, o Museu Americano, que agiganta na história da América os freak shows. Foi este estabelecimento que trouxe os freak shows à proeminência como uma parte central do que em breve constituiria a indústria da diversão popular (BOGDAN, 1988).

Uma vez que as exibições humanas foram anexadas a organizações, diferentes padrões de construção e apresentação dos freaks puderam ser institucionalizados, convenções estas que perduram até os dias atuais. Assim, os freak shows juntaram-se às crescentes e populares indústrias de divertimento, e as organizações que alavancaram aquela indústria, criaram uma profissão com uma abordagem especial para o mundo, desenvolvendo um modo particular de vida. Esta cultura é crucial para compreender a fábrica de freaks (BOGDAN, 1988).

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Barnum entra no mundo do entretenimento exibindo uma mulher negra, cuja idade seria de 161 anos, a qual teria sido babá do primeiro presidente dos EUA, George Washington. A partir desta atração peculiar, Barnum anuncia algo que se convencionou a chamar de “circo dos horrores”. Foi em 1841 que, no Grande Museu Americano, passou a exibir, conforme cartaz da época, as 500 mil curiosidades de todos os cantos do globo (DEURSEN, 2008).

Deursen (2008) nos mostra que no ano de 1865, o Grande Museu ficou em ruídas em decorrência de um incêndio, porém foi prontamente reconstruído. Três anos depois ocorreu um novo incêndio que consumiu o prédio mais uma vez. Foi no ano de 1870 que Barnum novamente teve seu auge, com a apresentação de O Maior Espetáculo da Terra. Citando Marco Antônio Bortoleto, Deursen (2008) ainda nos diz que esta prática de mostrar curiosidade sempre esteve presente em nossa sociedade, e, muitas vezes, como partes de shows públicos, sobretudo na Idade Média.

A indústria cinematográfica foi capaz, por meio de diversas produções, de nos mostrar em que consistiam estes freak shows. Uma produção que contempla esta temática é O Homem Elefante (No original: The Elephant Man) de 1980, longa-metragem baseado na história verídica de Joseph Carey Merrick, cidadão inglês que possuía o que hoje os pesquisadores acreditam ser a Síndrome de Proteus. Na trama, que remonta à era vitoriana, John Merrick (o homem elefante, interpretado por John Hurt) é encontrado pelo médico Frederick Treves (interpretado por Anthony Hopkins) em um empreendimento que passava pela cidade e que tinha o homem elefante como atração principal (THE ELEPHANT..., 1980; BBC BRASIL, 2014).

Ao longo de todo o filme, alternando-se os singelos momentos em que é visto enquanto humano, John Merrick é tido como monstro, como algo curioso e passível de ganho financeiro sobre suas deformações. Inicialmente, era exibido por Bytes em seu “circo”, e mais tarde no hospital em que estava sob cuidado, era exibido aos curiosos por um dos funcionários do hospital em troca de dinheiro. Em um dado momento, até mesmo o médico, Dr. Treves, se questiona se ao permitir à alta sociedade fazer visitas ao Sr.

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Merrick, ele não estava fazendo o mesmo que Bytes, o dono do “circo” (THE ELEPHANT..., 1980).

A tensão maior ocorre quando Bytes encontra Merrick, seu tesouro, o sequestra e o leva de volta ao “circo”. Comovidos com os maus tratos que seu amigo sofre, os outros monstros do “circo” fornecem ajuda a Merrick, de forma que todos conseguem escapar. Em sua tentativa de voltar ao hospital em que estava sendo cuidado, Merrick é caçoado por um grupo de moleques na estação ferroviária, dos quais ele tenta fugir; em sua fuga derruba uma criança pequena, dando início à confusão (THE ELEPHANT..., 1980).

Pessoas começam a correr atrás dele e arrancam os panos que cobrem sua face, expondo suas deformações. A multidão fica atônita, múltiplas expressões se estampam naquelas faces frente à tão inconcebível aparência. Merrick não consegue fugir e é encurralado pelas pessoas. Não tendo para onde ir, com bastante medo de sofrer agressões dispara: “No! I’m not an elephant! I am not an animal! I am a human being! I am a man!3” (THE

ELEPHANT..., 1980). Merrick é levado ao Hospital de Londres, local que o acolhe até o fim de sua vida.

Outra produção importante é O Corcunda de Notre Dame, trata de um longa-metragem que teve várias produções no cinema, desde filmes mudos (de 1923) até animação gráfica produzida pela Disney (em 1996). Será tomada como referência, neste trabalho, a produção de 1997 (The Hunchback) que, baseada no romance de Victor Hugo, conta a história de Quasimodo (interpretado por Mandy Patinkin), um homem aleijado, surdo e com deformações na face que foi abandonado pelos pais para morrer nos degraus de uma igreja de Paris, mas foi salvo pelo Reverendo da época, Dom Frollo (interpretado por Richard Harris), que o criou como filho.

Logo no início da trama, está acontecendo na Praça de Notre Dame o “Festival dos Tolos”, uma data de grande festividade, na qual até mesmo o Rei participa. Chega o momento em que o cidadão mais feio do local deve ser coroado como o “Rei dos Tolos”. Quasimodo, que estava observando a festa, acaba sendo coroado. Esta não é a única cena em que o corcunda é

3 “Não! Eu não sou um elefante! Não sou um animal! Eu sou um ser humano! Um homem!”

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chacoteado ou ofendido por sua aparência, em diversos momentos é chamado de monstro ou mesmo de aberração (THE HUNCHBACK, 1997).

Quasimodo, na tentativa de salvar uma mulher de uma emboscada, foi pego pelas autoridades e acusado de atacar Esmeralda, uma cigana muito bonita que atraia os olhares de todos com sua dança; por tal crime recebe 50 chibatadas em praça pública, mesmo sendo inocente. Esmeralda é a única pessoa que se compadece, tenta salvá-lo, rogando ao Rei que pare com o castigo; mas todo seu esforço foi em vão, restando-lhe apenas dar-lhe água para apaziguar seu mal estar (THE HUNCHBACK, 1997).

Dom Frollo sente uma grande paixão por Esmeralda, mas impedido pelo celibato de ter tais sentimentos, arma um plano para que a cigana seja morta na forca. É muito grande o carinho que Quasimodo sente pela moça que lhe deu água quando estava exposto ao público, logo após as chibatadas. Assim, tenta salvá-la da forca e a leva ao alto da torre, santuário onde pode ficar protegida. Dom Frollo fica bastante irritado com a situação, chama Quasimodo diversas vezes de monstro ou mesmo de aberração (THE HUNCHBACK, 1997).

O enredo é bastante rico, não sendo possível, nem um foco, neste trabalho, trazer todos os elementos que compõe esta belíssima história. Resta destacar que apesar de ser vislumbrado enquanto um monstro, Quasimodo é um homem erudito, mantenedor de fragilidades e paixões e, assim como no filme The Elephant Man, nos comove ao manifestar os sentimentos mais profundos e humanos. Pode-se verificar isso no presente diálogo que Quasimodo mantém com Dom Frollo, após este último entregar Esmeralda à forca:

- FROLLO: Quasimodo, ela provocou a morte do Ministro. Ela me fez fazer aquilo. A loucura em meu corpo foi ela quem criou. Ela me transformou em um assassino, e por isso ela deve morrer.

- QUASIMODO: Ela deve morrer por seu crime? Você não tem

piedade?

- FROLLO: Piedade? Piedade? Ah Quasimodo, piedade de mim! Por ser um homem de Deus e amar uma mulher, amá-la mais do que a Deus. Por amá-la com toda a fúria da minha alma! E sentir que daria meu sangue, minha reputação, minha salvação, minha imortalidade... A eternidade! Pelo menor de seus sorrisos, e saber que tudo o que posso oferecer-lhe é uma imunda batina de um padre. Para senti-la, dia e noite, em seus sonhos, e vê-la

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apaixonar-se por outro! Ver aquele corpo, cujos contornos arderão em ti, e aqueles seios, com toda a sua suavidade - aquela carne, que palpita e treme sob os beijos outro! Você sabe a tortura que é suportar através de longas noites um coração explodindo?

- QUASIMODO: Por que você acha que eu não sei de tais coisas? A sua busca por luz tornou-lhe cego?

- FROLLO: Ela destruiu meu trabalho! Meus votos! Ela se colocou entre mim e Deus! Ela provou que eu tenho vivido uma vida desperdiçada... Que eu não era digno da obra de Deus. Piedade de mim, Quasimodo.

- QUASIMODO: Você é digno de pena, mas não tenho pena de você. Você não é Santo Agostinho. [...] Venha, vamos contar a história à Justiça.

- FROLLO: Não!!! Eu vou me livrar dela! [...] Ela amaldiçoou você também, ela transformou nós dois em assassinos! Tolo! Você pensou que ela pudesse te amar?

- QUASIMODO: Pai...

- FROLO: Eu não sou seu pai! Seu pai foi mais esperto do que eu! Ele te abandonou, largou você para morrer! Fui eu quem lhe deu vida. Você é um monstro!

- QUASIMODO: Eu não sou um monstro4 (THE HUNCHBACK, 1997,

grifo da autora).

Não faltam exemplos de filmes que trazem pessoas com deformações físicas, como aberrações da natureza, como algo a ser zombado, agredido ou mesmo apresentado às pessoas como curiosidades para obtenção de dinheiro. Para finalizar, dado o contexto, cabe resgatar o filme Freaks de 1932. O longa provocou o maior estardalhaço na época em que foi lançado, tendo sido proibido em muitos países, só na Grã-Bretanha por aproximadamente 30 anos (MALCOLM, 1999). A trama ocorre em um “circo”, que tinha como atração pessoas com nanismo, gigantismo, microcefalia, com braços e pernas amputados, mulheres barbadas... Um legítimo freak show.

O filme conta a história de Cleópatra, uma bela trapezista que mantém um relacionamento amoroso com Hércules, um homem bastante forte. Hans, um homem com nanismo, se apaixona por Cleópatra e faz de tudo para conquistá-la, mesmo tendo um relacionamento amoroso com Frieda (também anã). A trapezista não está interessada nos cortejos do rapaz e apenas se aproveita de sua afeição, para pedir benesses e presentes caros. Porém, quando descobre que Hans possui uma grande herança casa-se com ele (FREAKS, 1932).

Na festa do casamento, os freaks, bastante alegres, propõem um ritual em que todos devem beber da mesma taça, de forma que Cleópatra será

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aceita como “um deles”. Quando chega a vez da trapezista beber da taça, toda a cena muda, ela chama seus colegas de monstros imundos e não admite ser vista como um deles. Os freaks descobrem que Cleópatra está envenenando Hans para poder ficar com sua fortuna, e tramam uma forma de salvar o amigo; vingam-se da mulher grande e bonita, transformando-a finalmente em um deles, em um monstro (FREAKS, 1932).

Conforme Russell (2002), no contexto em que foi lançado provocou fortes reações do público por seu elenco bizarro, grotesco e anormal. O filme, conforme diz Malcolm (1999), foi um fracasso, mas serve, hoje, como um antídoto ao culto da perfeição física e também como um extraordinário tributo à comunidade que compôs seu elenco – os denominados freaks.

Retornando à corrente histórica, por volta de 1940 os freak shows ficaram à beira da falência, a organização pública de exibição de pessoas com anomalias físicas, mentais e comportamentais tinha começado a se tornar menos lucrativa e mesmo divertida (BOGDAN, 1988).

1.4. HOJE – AS MÍDIAS DE COMUNICAÇÃO EM MASSA

Por meio deste breve histórico, foi possível examinar que ao longo de toda a nossa existência, a forma de relacionamento que as pessoas ditas normais mantinham com pessoas com algum tipo de anomalia física, mental ou comportamental, estava muito mais no nível da curiosidade ou da zombaria, do que no nível da humanidade. No passado, o humano com deformações era colocado no lugar de abjeto, contudo não podemos nos orgulhar tanto da realidade em que vivemos, os tempos mudaram, mas persevera a forma com que lidamos com os outros.

Com a eclosão dos rádios e mais efusivamente da televisão, o conteúdo informativo pode ser disseminado de forma massiva. Se antes, para assistir a um espetáculo era preciso comprar o ingresso e ir ao local de apresentação, hoje basta ligar a televisão e sentar-se, confortavelmente, na sala de estar. Nem todos os programas televisivos atraem a atenção do espectador com o mesmo fervor; nem todos provocam a mesma audiência...

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Continuamos a assistir derivados daquilo que nossos antepassados viam nos Coliseus, nos Freak Shows e nos Supliciados – o horror.

No que tange às mídias televisivas, é preciso compreender que as informações transmitidas são construídas a partir dos índices de audiência com relação a um determinado eixo informativo. Winch, Medeiros e Petermann (2012, p.3) confirmam este fato ao dizer que é por meio “dos índices de audiência que as emissoras podem planejar e adequar suas programações de acordo com os gostos dos telespectadores”.

Uma forma de atrair a atenção do público, e que a mídia soube ocupar muito bem, diz respeito à espetacularização das informações por meio daquilo que o jornalismo denomina “sensacionalismo”. Em alguns telejornais é comum aquele apresentador que faz uso de uma linguagem coloquial, informal chegando a utilizar-se de gírias e palavrões – recursos estes utilizados com a finalidade de construir uma proximidade com o telespectador e envolvê-lo na história (REIS, 2012).

Também é preciso salientar que, conforme Reis (2012), o apresentador explora exaustivamente um conteúdo, porém de forma superficial. Conforme a autora citada, os jornais sensacionalistas fazem grande uso de assuntos fúteis, polêmicos, impregnados de carga emotiva; prendem a atenção do público, mas não promovem qualquer aprofundamento crítico acerca dos condicionantes socioeconômicos e políticos que levaram ao fato ocorrido. Conforme Patias (2006, p.97 apud REIS, 2012, p.83), “a espetacularização das notícias subverte a ordem de importância e veracidade dos fatos”.

O sensacionalismo, conforme explica Angrimani (1995 apud CALMON, 2004), é o termo utilizado para designar um conjunto de matérias que suscitam respostas emocionais e, segundo a autora, é encontrado inclusive em telejornais considerados mais tradicionais e com grande reconhecimento nacional, como o Jornal Nacional, transmitido pela rede Globo e o Jornal da Band, transmitido pela rede Bandeirantes. Ainda, conforme Calmon (2004), significa dizer que notícias que suscitam reações emocionais são mais exploradas em detrimento daquelas que provocariam reações racionais.

Os telejornais estão imersos em uma dinâmica em que indicadores elevados de audiência são capazes de atrair anúncios publicitários e, em

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decorrência disso, o lucro – que é o que os mantêm. Desta forma, a notícia transforma-se em uma mercadoria, um bem de consumo que, se vende bem, se for aderido pelo público, dá audiência às emissoras, impulsionando mais investimento publicitário e com isso mais dinheiro à emissora. Certamente, conforme Calmon (2004), nem tudo o que ocorre a nossa volta transforma-se em notícia, existe um conjunto de critérios utilizados para verificar se um fato possui (ou não) condições de transformar-se em notícia e gerar audiência.

Não é novidade que fatos que provocam um apelo emocional costumam vender e atrair mais espectadores. Calmon (2004) explica que estas são características marcantes daquilo que conhecemos como sociedade do espetáculo5: “Uma sociedade alinhada por estímulos emocionais, por

interesses superficiais, por fatos indiferentemente grandes e pequenos, importantes ou banais, todos destinados a exaurir a atenção do público sem deixar marcas” (LIVOSLSI, 1979 apud CALMON, 2004, p.22).

Frente a esses assuntos que despertam o interesse do público e que chamam a sua atenção, é preciso trazer ao trabalho o conceito de Fait Divers que é a base do noticiário sensacionalista. Fait Divers diz respeito a um conjunto de notícias variadas que possuem uma carga de interesse humano e de circunstancial importância e que são utilizados nos meios jornalísticos para atrair o telespectador, promovendo exclusiva e unicamente a emoção gratuita (CALMON, 2004).

Para Angrimani (1995, p.25 apud CALMON, 2004, p.23), os Fait Divers trazem “em sua estrutura imanente uma carga suficiente de interesse humano, curiosidade, fantasia, impacto, raridade, humor, espetáculo, para causar uma tênue sensação de algo vivido no crime, no sexo e na morte”. Este mesmo autor ainda cita como exemplos de Fait Divers,

[...] pequenos escândalos, acidentes de carro, crimes terríveis, suicídios de amor, operários caindo do quinto andar, roubo a mão armada, chuvas torrenciais, tempestades de gafanhotos, naufrágios,

5 Sociedade do Espetáculo diz respeito ao conceito desenvolvido pelo escritor francês Guy

Debord em sua obra A Sociedade do Espetáculo. Para o referido autor, o espetáculo surgiu a partir das condições modernas de produção e refere-se a uma relação social mediatizada por imagens. Segundo este autor, o que antes era diretamente vivido, atualmente se esvai na fumaça da representação (DEBORD, 2011).

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incêndios, inundações, aventuras divertidas, acontecimentos misteriosos, execuções, casos de hidrofobia, antropofagia, sonambulismo, letargia (ANGRIMANI, 1995, p. 25 apud CALMON, 2004, p.22).

Dentro da categoria de notícias consideradas como Fait Divers encontramos a violência: temática que os telejornais sabem da atração que provocam no público. Não é por acaso que atos de selvageria são apresentados com tamanha frequência, eles sabem que a violência é algo que seduz a plateia e que também vende (CALMON, 2004). Szpacenkopf (2003 apud NEGRINI, 2011) acredita que o excesso de violência, além de já fazer parte dos agendamentos dos telejornais, também consiste em um dos temas que mais interessam ao espectador.

Conforme uma reportagem do portal de notícias da Veja (2014b), imagens que têm relação com violência estão no topo das mais vistas, tanto na internet em geral quanto em sites de emissoras de notícias. Emoções como terror, culpa, medo ou satisfação se sobrepõem e se misturam no momento em que as cenas estão sendo assistidas; ao passo que provocam horror, também parecem hipnotizar com um magnetismo irrecusável.

Negrini (2011) pontua que os espetáculos compostos por violência e morte atraem o grande público, e Szpacenkopf (2003 apud NEGRINI, 2011) afirma que mesmo aqueles que dizem não gostar de violência terminam por serem fisgados e se interessando por notícias com tal conteúdo. Isso ocorre “[...] seja porque querem estar informados, seja porque precisam saber o que pode lhes acontecer, seja porque defensivamente podem ver na tela o que poderiam fazer, mas que são os outros que fazem” (SZPACENKOPF, 2003, p. 257 apud NEGRINI, 2011, p.4).

É fato que a apresentação da morte nos telejornais é muitas vezes solapada por ingredientes que se sobrepõem à mera apresentação do fato ocorrido. Conforme Negrini (2011), vão ao ar cenas que exibem as emoções, aflições e angústias dos familiares ou amigos; também são mostrados depoimentos e sentimentos dessas pessoas para com a morte. Calmon (2004) pontua que a vida das pessoas passa a ser expetacularizada e que isso é um desrespeito com a intimidade daqueles que sofrem.

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Não faltam exemplos bastante recentes de como a mídia se utiliza destes instrumentos com a finalidade de garantir a audiência e manter o público extasiado em frente à televisão.

Por semanas, o filme do soco que o astro do futebol americano Ray Rice deu em sua mulher ou o vídeo das decapitações dos jornalistas americanos James Foley e Steven Sotloff estiveram entre os mais vistos em sites de notícias e emissoras de televisão ao redor do mundo. No Brasil, milhares de pessoas buscaram ver atrocidades como o menino Bernardo gritando por socorro, o garoto que teve o braço arrancado por um tigre no Zoológico de Cascavel, no Paraná, ou o bárbaro ataque que matou uma menina de 6 anos em São Luís, no Maranhão, mostrando que, ao mesmo tempo em que denunciam a barbárie, essas imagens provocam um fascínio (VEJA, 2014a, [não-pag.]).

Existe uma gama de eventos que podem ilustrar a dinâmica existente no sensacionalismo midiático. Pode-se citar como exemplos o Caso Richthofen (2002), o Caso Isabella Nardoni (2008), o Caso Pesseghini (2013) e, o mais recente, Caso Bernardo Boldrini (2014). De tempos em tempos, um novo espetáculo emerge e o espectador é convocado a contemplar este show dos horrores, seja pela televisão ou mesmo em sites de notícias.

Uma coisa é certa, se não houvesse espectadores, a mídia não insistiria em noticiar acontecimentos trágicos. O espectador é uma figura chave, sem ele tamanha ostentação não teria ocorrido, as emissoras não teriam arrecadado tanto dinheiro e a dimensão da tragédia não teria tomado tamanha proporção. Como diz um antigo provérbio alemão: “quando dois brigam, o terceiro fica contente”, adágio que exprime em palavras a dinâmica exibicionista e voyeur que ocorre nas amarras midiáticas.

Ressalta-se que a questão central do presente trabalho não é meramente afirmar a existência de um gozo escópico6 viabilizado pelos veículos de comunicação em massa, tampouco reduzir aqueles que assistem a seres de essência perversa. Pretende-se, acima de tudo, encontrar elementos que elucidem o motivo que os leva a ficarem presos nesta imagem, neste horror. Tal investigação será realizada nos próximos capítulos.

6 Gozo escópico diz respeito à satisfação da pulsão escópica, cuja excitação emana do olho

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2. PRAZER NO EXECRÁVEL: UM DESTINO POSSÍVEL À PULSÃO

“A crueldade animal não se aparenta à dos homens, uma vez que é instintiva e nunca assimilável a um gozo qualquer da crueldade” (Elisabeth Roudinesco).

A partir da leitura do capítulo anterior, é possível observar uma convocação ao espectador no que tange ao acompanhamento de atos de crueldade ou violência. Há uma premência em torno de atos brutais, premência esta que opera com uma força recíproca, vem tanto do lado daquele que quer mostrar, quanto daquele que quer ver. Conforme pontua Szajnbok (2014), não basta saber sobre o crime, é preciso ver os pedaços, quer-se saber sobre os detalhes em uma “voracidade especular diante das imagens da violência”.

Frente aos movimentos discursivos contemporâneos, volta à tona antigos questionamentos acerca da essência do humano. Seria o homem, assim como pontua Jean-Jacques Rousseau, bom por natureza de forma que a sociedade seria sua corruptora? Ou seria o homem, conforme teoriza Freud, escravo de suas pulsões, cabendo à cultura civilizá-lo? Tais questionamentos podem ter diferentes respostas, dependendo do referencial teórico utilizado.

Neste trabalho optamos pelos pressupostos psicanalíticos, que compreendem o homem como um ser que passa por um processo de subjetivação que se dá no meio cultural. O bebê não nasce com seu aparelho mental pronto, ele está em uma condição de vir a ser, tornando-se humano a partir da vinculação estabelecida com seus cuidadores. O vínculo afetivo se constrói entre o bebê e as figuras parentais a partir da suposição, por parte destes últimos, de que há um sujeito no interior daquele corpo.

Com esta suposição de um sujeito no bebê, suas manifestações orgânicas são compreendidas pelo outro materno7 como um chamado, como um pedido por algo que aplaque sua dor. O ato de dar um sentido à

7 Materno não diz respeito restritamente à mãe, mas sim a qualquer pessoa que realize a

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necessidade orgânica (ex.: fome) e promover uma ação que reduza tal tensão originária (ex.: alcançar o seio/alimento), permite, segundo Dor (1989), o arranjo da primeira vivência de satisfação e a construção de um traço mnésico no aparelho mental do bebê. Neste traço mnésico a experiência de satisfação estará relacionada à imagem/percepção do objeto que promoveu tal satisfação.

No momento em que a tensão pulsional reaparecer este traço mnésico será reativado, a manifestação pulsional do bebê não será mais apenas no nível da necessidade, será de uma necessidade relacionada a uma representação mnésica de satisfação. O desejo é aquilo que tem por modelo a primeira vivência de satisfação e que permite ao sujeito orientar-se na busca de um objeto capaz de proporcionar tal satisfação (DOR, 1989).

Ressalta-se que o desejo não possui objeto na realidade, mas a pulsão, sim; e o bebê utiliza-se da imagem mnésica para conduzir as suas buscas na direção de um objeto de satisfação na realidade, haja vista que tal objeto real de satisfação manteria afinidade com a imagem mnésica. A imagem mnésica, portanto, constitui um modelo acerca daquilo que será buscado na realidade com o intuito de satisfazer à pulsão (DOR, 1989).

Freud forjou o conceito de pulsão para distingui-lo do instinto8 (presente nos animais). O homem é regido por pulsões que buscam uma satisfação, uma descarga da excitação psíquica. Para atingir a satisfação o sujeito pode utilizar-se de objetos/situações externas como um meio de alcançar tal finalidade. Esta forma de conceituar a pulsão é uma âncora que permite compreender o elo entre o horror apresentado pela mídia e o espectador sedento por mais daquele espetáculo, tal como pretendemos demonstrar a seguir.

2.1. A PULSÃO E SEUS DESTINOS

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905/1996, p.159) conceituou a pulsão como

8 Apesar desta distinção entre pulsão e instinto, algumas traduções optaram pela utilização

de instinto em vez de pulsão, o que poderá aparecer, por vezes em citações diretas utilizadas neste trabalho.

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[...] o representante psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui continuamente, para diferenciá-la do “estímulo”, que é produzido por excitações isoladas vindas de fora. Pulsão, portanto, é um dos conceitos da delimitação entre o anímico e o físico. [...] O que distingue as pulsões entre si e as dota de propriedades específicas é sua relação com suas fontes somáticas e seus alvos. A fonte da pulsão é um processo excitatório num órgão, e seu alvo imediato consiste na supressão desse estímulo orgânico.

Compreendendo, portanto, o humano como um ser pulsional e a pulsão como fronteiriça, situada entre o psíquico e o somático, é importante recorrer ao texto Os instintos e suas vicissitudes. Neste texto, Freud (1915a/1996) caracteriza que a fonte da pulsão (sua origem) emerge no interior do próprio organismo (é endossomática) e não no exterior dele e, por este motivo, não é possível que o sujeito realize um movimento motor de afastamento desta excitação. Desta forma, a excitação deve ser escoada, processo pelo qual a tensão do psiquismo é liberada, promovendo a manutenção de sua homeostasia.

A pulsão, conforme pontua Freud (1915a/1996), é regida pelo princípio de constância, ou seja, o aparelho mental tem a função de livrar-se da persistente estimulação ou, pelo menos, reduzi-la ao nível mais baixo possível, promovendo a livre descarga e redução do desprazer. Neste mesmo artigo, Freud ainda assinala que o desprazer está relacionado a um aumento dos estímulos, enquanto o prazer está relacionado a sua diminuição, e isso nos mostra o valor do escoamento pulsional.

Além da fonte (Quelle), a pulsão possui outras propriedades: objeto (Objekt), finalidade (Ziel) e pressão (Drang). A pressão é uma característica presente em todas as pulsões e compreende seu fator motor, ou seja, a medida de força de trabalho que a pulsão necessita para atingir sua finalidade, que é sempre da satisfação. Com isso, a satisfação só é possível através da eliminação do estado de estimulação na fonte pulsional (FREUD, 1915a/1996).

A finalidade é sempre a mesma: a satisfação, e para tanto a pulsão pode tomar diferentes caminhos ou objetos para atingi-la. O objeto compreende “a coisa em relação à qual ou através da qual” (FREUD, 1915a/1996, p.128) a pulsão pode atingir sua finalidade, ou seja, objetos

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são os meios pelos quais a pulsão pode ser satisfeita. Os objetos podem ser tanto estranhos como parte do próprio corpo, e são substituídos quantas vezes for necessário para que a pulsão se satisfaça (FREUD, 1915a/1996).

Ressalta-se que a satisfação da pulsão nunca é completa, e é justamente esta incompletude que nos move em direção a novos objetos que supostamente nos reposicionaria a um estado de totalidade, antes experienciada com o materno (e perdida com a castração9). Desta forma, as situações que se colocam contrárias à satisfação da pulsão viabilizam a manutenção da insatisfação, da incompletude e, por conseguinte, da posição de um sujeito desejante.

Como foi dito anteriormente, para que a pulsão atinja seu objetivo é possível que ela sofra algumas vicissitudes as quais abordaremos a partir de agora. Freud (1915a/1996) acredita que nossa vida mental é regida por três polaridades antagônicas: atividade/passividade, sujeito/objeto, prazer/desprazer. Tais antíteses estão ligadas umas às outras, apresentam-se em todas as vicissitudes e nos ajudam a pensar este vai-e-vem pulsional em sua tentativa de alcançar a satisfação.

Uma vicissitude sofrida pela pulsão em que podemos observar a inversão das polaridades é a reversão ao oposto. Neste processo uma finalidade ativa (olhar e torturar, por exemplo) é transforma em uma atividade passiva (ser olhado, ser torturado). Conforme menciona Freud, exemplos clássicos desta vicissitude são os pares opostos como o sadismo/masoquismo e a escopofilia/exibicionismo (FREUD, 1915a/1996).

Tomando como exemplo o sadismo/masoquismo, aquele que antes era um sujeito, passa para a condição de objeto, permanece em uma condição de passividade e procura um agente externo para realizar a função de sujeito e ativo. Mesmo ocorrendo sofrimento (no sistema consciente) há um prazer no sistema inconsciente, pois a pulsão está sendo satisfeita.

Aplicando este ponto teórico ao objeto de análise neste trabalho, temos que, na relação entre os veículos de mídia e seus expectadores ou leitores,

9 Castração é o nome dado à operação da função paterna em sua ação de cortar o laço

fusional entre mãe e bebê a fim de possibilitar, a este último, uma ascensão à autonomia, tornando-o capaz de sustentar o próprio desejo. Castração é o nome dado a uma interdição realizada pela função paterna na conflitiva edípica. Ao longo deste trabalho serão realizados outros esclarecimentos acerca deste conceito.

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este processo se mostra presente: enquanto de um lado ocorre exibição, do outro ocorre a contemplação, o olhar. Olhar para algo diz respeito a um destino sofrido pela pulsão, destino que promove um escoamento daquela tensão originada no interior do organismo.

Eu olho o objeto (neste caso o horror) que é apresentado a mim porque, na contraparte, este objeto demanda o meu olhar. Ambas as partes estão sustentadas por uma dinâmica pulsional: mídia (passiva – me olhe) versus expectador (ativo – eu olho). Freud (1915a/1996) assinala a existência de uma atividade na passividade, pois aquele que quer ser visto deve instigar o olho do outro, este olho podemos ver sendo estimulado pelo anúncio do jornalista: “e no próximo bloco...”.

Cabe neste momento ressaltar a diferença entre o sujeito exposto involuntariamente ao público e aqueles que por vontade própria fornecem seu depoimento em meio aos infortúnios pelos quais estão passando. No que tange ao primeiro caso, é praxe da mídia mostrar pessoas comovidas, abaladas... Isso faz parte do sensacionalismo que se pretende vender ao telespectador.

No segundo caso, daqueles que falam às câmeras, pode-se dizer que estão em uma vinculação sadomasoquista com o telespectador, de forma que a mídia funciona como uma mediadora entre, respectivamente, expectador/entrevistado, ativo/passivo, sujeito/objeto. A TV abre um canal para o escoamento de uma pulsão, e não se faz mais necessário que os pares estejam próximos, o prazer ocorre por meio da tela, da virtualidade.

O mesmo ocorre nos reality shows; a barreira que antes imperava entre a vida pública e a vida privada foi diluída e passou a ser explorada pela mídia. Existe uma relação de escopofilia-exibicionismo neste vínculo com o reality show, enquanto existem aqueles que querem exibir também existem aqueles que querem olhar. Trata-se de um gozo consentido, e a mídia oferece um espaço para que o prazer ocorra.

Ainda pensando a relação dos veículos com seus consumidores, no que tange à polaridade sujeito/objeto ou ego/não-ego, Freud (1915a/1996) diz que a relação do sujeito com o objeto é passiva no momento em que o ego é excitado pelo objeto. Mas o ego passa ao polo de uma atividade quando

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reage a estes estímulos. O expectador (ego/passivo) recebe os estímulos da mídia (objeto/ativo), e se reporta para o polo da atividade quando opta por permanecer (ou não) enquanto expectador.

Por fim, temos as polaridades prazer/desprazer, as quais podem ser compreendidas a partir do princípio de constância, pois mantêm relação com a economia pulsional. A partir da obra de Freud entendemos que o desprazer do neurótico é um prazer que não pode ser sentido como tal devido a uma interdição que nos impede de obter prazer consciente através do horror alheio. O prazer desencadeado ao olhar uma cena de horror diz respeito ao prazer do inconsciente, ocorre prazer devido ao escoamento pulsional e redução da excitação interna.

O prazer está relacionado à capacidade de manter um equilíbrio interno através da satisfação de uma pulsão. Quando maior a excitação interna maior o desprazer no inconsciente e quando menor a excitação menor o desprazer. Prazer em uma instância psíquica (inconsciente) não provoca, necessariamente, prazer em outra (consciente), e é exatamente o que presenciamos ao olhar o expectador de uma cena de horror: do lado do consciente uma indignação, mas do lado do inconsciente um prazer.

Retomando, outro destino que a pulsão pode tomar é do retorno ao próprio eu do indivíduo, ou seja, se antes o objeto era externo, agora passa a ser o próprio organismo. Freud (1915a/1996) pontua que o masoquismo nada mais é que o sadismo redirecionado contra o próprio eu, enquanto o exibicionismo abrange o olhar para o próprio corpo. É possível compreender melhor este processo a partir da seguinte representação proposta por Freud:

(a) O sadismo consiste no exercício de violência ou poder sobre uma outra pessoa como objeto.

(b) Esse objeto é abandonado e substituído pelo eu do indivíduo. Com o retorno em direção ao eu, efetua-se também a mudança de uma finalidade instintual ativa para uma passiva.

(c) Uma pessoa estranha é mais uma vez procurada como objeto; essa pessoa, em conseqüência (sic) da alteração que ocorreu na finalidade instintual, tem de assumir o papel do sujeito (FREUD, 1915a/1996, p.133).

Da mesma maneira que sentir dor pode transformar-se em uma finalidade masoquista, provocar dor a outrem pode também transformar-se

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em uma finalidade sádica. Enquanto as dores estão sendo infligidas a alguém (objeto/passivo), elas também estão sendo fruídas, masoquistamente, por aquele que executa a ação (sujeito/ativo), visto que ocorre uma identificação com o aquele que está em sofrimento (FREUD, 1915a/1996).

Aprofundamento sobre o jogo da atividade e passividade pode ser encontrado no artigo Além do princípio de prazer. Neste texto, Freud (1920/1996) estabelece que situações que foram experimentadas de forma passiva por um sujeito tendem a ser repetidas, por mais desagradáveis que sejam, pois proporcionam que este se torne senhor da situação. O autor ainda pontua que quando o sujeito passa da passividade para a atividade, a experiência desagradável é transferida a outrem, permitindo que ocorra uma vingança em um substituto.

Esta situação é frequente em casos de perversão, em que o perverso subjuga o outro a uma condição de objeto. Há na perversão uma fantasia de vingança que visa transformar um trauma infantil em um triunfo adulto. A passividade sofrida em tempos primitivos transforma-se em atividade atuada e a vingança é efetuada sobre um objeto que o perverso escolhe para representar a criança vitimada que um dia ele foi (FERRAZ, 2010).

Stoller (1984 apud COUTO; CECCARELI, 2004) igualmente nos aponta que o perverso, por meio da passagem ao ato, promove uma inversão de papéis, revive situações primitivas que sofreu de forma passiva e transforma-as em um triunfo. Bacelete (2013, p.17), por sua vez, aponta que a vingança marca um sofrimento que precisa ser compensado e tratado na perversão, tal vingança aparece como “ecos de um pedido de socorro não atendido, feito pela criança que ele foi na época do trauma”.

O neurótico10 não é capaz de repetir traumas infantis como o perverso, mas possui mecanismos para aliviar sua tensão interna, e casos trágicos, como do menino Bernardo11, podem servir de exemplo para pensarmos as

10 “Neurótico” diz respeito ao sujeito que se situa em uma estrutura psíquica neurótica, e

difere dos perversos (estrutura psíquica perversa) e do psicótico (estrutura psíquica psicótica). Ao longo do trabalho estas diferenças ficarão mais claras.

11 Bernardo Uglione Boldrini, 11 anos, foi encontrado morto em 2014 na cidade de Frederico

Westphalen às margens do rio Mico. A investigação aponta que o menino foi assassinado pelo pai e pela madrasta.

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vicissitudes da nossa pulsão. Dada que a situação é real, sua veiculação ostensiva na mídia permite que o expectador utilize a figura do pai do garoto e de sua madrasta (ativos da situação) como bodes expiatórios para a projeção de suas pulsões perversas/sádicas. O casal cuidador da criança deixou suas pulsões sádicas escoarem na via real, por sua vez, o expectador deslocou-se para a posição passiva e, em vez de gozar sadicamente, goza masoquistamente da situação. Goza12 masoquistamente da situação, pois ao ver o horror da tragédia, sofre (no consciente), mas goza (no inconsciente).

Acerca deste fato de as pessoas projetarem suas pulsões sádicas em outrem para, posteriormente, identificar-se e gozar masoquistamente da situação, Roudinesco (2008) assinala que nós apontamos como bodes expiatórios aqueles que são capazes de traduzir, em atitudes estranhas ou mesmo bizarras, as tendências inconfessáveis que habitam em nós, mas que nós recalcamos. Esta revelação causa horror, mas é a realidade de nossa vida mental.

É a partir das oposições inerentes à vida psíquica (ativo/passivo; sujeito/objeto; prazer/desprazer) e também dos destinos que a pulsão pode sofrer que podemos pensar no gozo que emana daqueles que olham para assassinatos, aberrações humanas, trágicos acidentes... Ou mesmo aqueles que percorrem quilômetros a fim de presenciar situações de enchentes, terremotos, desastres de toda sorte.

Retomando, quando a pulsão encontra resistências que procuram torná-la inoperante, diz-se que ela sucumbiu ao recalcamento. Apesar de a satisfação pulsional ser sempre agradável, pois reduz a tensão interna, esta vicissitude ocorre quando a consecução da finalidade pulsional produziria mais desprazer do que prazer; mais precisamente, causaria prazer em uma instância psíquica (inconsciente) e desprazer em outra (consciente) (FREUD, 1915b/1996). Veremos, adiante, que esta propriedade de provocar prazer em uma instância e desprazer na outra é uma das imagens do Gozo.

Ainda é assinalado por Freud (1915b/1996) que a essência do recalcamento compreende o afastamento de determinado conteúdo do

12 Gozo é para Lacan aquilo que Freud denominou pulsão de morte e diz respeito à

premência de uma descarga das tensões psíquicas, mesmo que esta descarga promova desprazer no consciente, promove prazer no inconsciente (pois reduz a tensão).

Referências

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