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Passada a análise teórica acerca dos prejuízos manifestos do afastamento da incidência de normas infraconstitucionais nos tribunais sem declaração de inconstitucionalidade, importantíssimo é o estudo da prática dos tribunais cotidianamente, tendo em vista a verificação empírica da desvalorização da supremacia constitucional, bem como a ampliação do poder subjetivo dado ao aplicador do direito.

Desse modo, tomando como caso paradigma, será esmiuçada uma nova tendência jurisdicional no tocante a um tema de bastante especificidade, qual seja: as transferências universitárias compulsórias. Verificar-se-á o que dispõe a lei pertinente, bem como as exceções a ela impostas pelo Poder Judiciário, sem a devida observação, nos tribunais, do procedimento adequado para afastamento parcial ou total da incidência, chegando ao final com a demonstração efetiva da problemática prática diante de tal inobservância.

Não se pretende realizar uma crítica à parte da magistratura, notadamente os juízes de segundo grau, mas, sim, demonstrar a necessidade de maior apreço pela regra processual-constitucional do full bench, a qual não pode ser aplicada por mera discricionariedade jurisdicional.

4.1 Afastamento da incidência da Lei nº 9.536/97 por suposta afronta a axiomas constitucionais, sem declaração expressa de inconstitucionalidade

Dispõe a Lei nº 9.536/97, ao regulamentar o art. 49104 da Lei nº 9.394/96105,

que as transferências compulsórias serão efetivadas, entre instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer época do ano e independente da existência de vaga, quando se tratar de servidor público federal civil ou militar estudante, ou seu

104 Art. 49. As instituições de educação superior aceitarão a transferência de alunos regulares, para cursos

afins, na hipótese de existência de vagas, e mediante processo seletivo. Parágrafo único. As transferências

ex officio dar-se-ão na forma da lei.

dependente estudante, se requerida em razão de comprovada remoção ou transferência de ofício, que acarrete mudança de domicílio para o município onde se situe a instituição recebedora, ou para localidade mais próxima desta.

Percebe-se ser bastante claro o comando normativo, na medida em que estabelece uma hipótese específica, que, se verificada, dará ensejo à uma medida igualmente específica. Aplicabilidade, portanto, imediata e eficácia notadamente plena, visto que já possui todos os elementos de validade cabíveis à espécie.

Pode-se presumir algumas finalidades da legislação, primordialmente no que se refere à proteção do interesse público, já que teria o servidor público federal, ou seu dependente, de optar pela continuação dos estudos ou permanência no emprego estatal. Sendo a escolha nesse caso, qualquer que seja, prejudicial aos envolvidos e à própria administração pública, abriu-se uma possibilidade jurídica com o fito de mitigar os danos da remoção empregatícia.

Com o passar dos anos, principalmente com a persistência advocatícia em teses diversas, o comando normativo exposto no art. 1º da referida Lei passou a ser deveras questionado judicialmente, sob o válido argumento de inobservância do princípio constitucional da isonomia, na medida em que uma casta específica da sociedade obtinha um benefício que poderia ser usufruído numa maior diversidade de casos para os quais também é exigida proteção pelo Poder Público. A principal arguição nesse sentido se refere a casos de saúde, independentemente do ofício do estudante ou de seu dependente, nos quais é imprescindível para o tratamento da patologia o deslocamento do estudante para cidade diversa da instituição de origem. Nesses casos, segundo os defensores da tese, deveria ser observado o fundamento teleológico da norma, na medida em que buscaria albergar situações excepcionais que necessitariam de proteção estatal.

Diversas foram as decisões por juízes de primeira instância acolhendo a tese supramencionada, posteriormente confirmadas pelas cortes de apelação. A título exemplificativo, traz-se o entendimento do Desembargador Francisco Barros Dias, afirmando que:

“é possível a transferência compulsória em casos excepcionais, inclusive relacionados a problemas de saúde, fazendo-se uma interpretação extensiva da legislação, ponderando com outros princípios básicos garantidos pela

Constituição Federal de 1988, como o direito à saúde, educação, à proteção à família”.106

Resta indubitável que foi realizada uma interpretação que transcendeu, e muito, o comando normativo originário, fato que, a princípio, não seria proibido, visto que se está a fazer supostamente uma interpretação conforme a Constituição. A problemática é evidente quando se verifica que, apesar de haver afastado a incidência normativa, não foi instaurado o incidente da cláusula de reserva de plenário. Mais adiante serão verificados os problemas decorrentes de tal inobservância processual.

Nesse mesmo sentido, foram sendo diversificados os entendimentos jurisdicionais, agora ampliando a incidência da norma para os casos mais diversos, tais como a mera verificação de patologia psíquica do estudante (depressão),107o falecimento

dos genitores em cidade diversa108 e, até mesmo, a atestação de patologia do genitor em

vez do próprio estudante,109 constando em todas as decisões a ressalva de não aplicação

do comando exposto na Lei nº 9.536/97 sob o fundamento de superioridade dos princípios constitucionais, os quais autorizariam o deferimento da medida.

Sabendo disso, e também tendo ciência que em nenhum dos casos foi suscitado o incidente do full bench, era previsível que surgiria um problema mais adiante: a superlotação dos cursos universitários nas instituições de ensino superior localizadas em municípios com maior densidade demográfica, ultrapassando, inclusive, o limite estabelecido pelo Ministério da Educação quando da autorização de funcionamento da IES.

Tal fato decorreu, sobremaneira, em virtude da aplicação indistinta de princípios constitucionais em casos concretos, mesmo quando se tem uma norma específica reguladora, sem declará-la inconstitucional. Veja-se.

A resolução da cláusula de reserva de plenário, incidentalmente, como dito alhures, vincula todos os órgãos pertencentes à jurisdição na qual foi prolatada a decisão.

106 TRF5 – AGA 20090500000547701 – Agravo Regimental no Agravo de Instrumento – 94212/01 –

Desembargador Federal Francisco Barros Dias – Segunda Turma – DJ – Data: 25/03/2009 – Página: 347 – nº 57.

107 TRF1 – MAS 00273403620144013500 0027340-36.2014.4.01.3500 – Apelação em Mandado de

Segurança – Desembargador Federal Néviton Guedes – Quinta Turma – eDJF 1 Data: 05/08/2015, Página: 287)

108 TRF5 – AC: 8023534720134050000, Relatora: Desembargadora Federal Joana Carolina Lins Pereira,

Data de Julgamento: 12/12/2013, Terceira Turma.

109 TRF5 – APELREEX 00008804320124058100, Desembargador Federal Edílson Nobre, Quarta Turma,

Se os juízes de primeira instância estavam entendendo que o comando normativo da Lei nº 9.536/97 estava em desacordo com preceitos e axiomas constitucionais, deveria o tribunal ter suscitado, quando da sua apreciação, a questão constitucional pertinente, para que o colegiado competente analisasse a matéria e decidisse de forma vinculante, evitando entendimentos mirabolantes e aplicação irrestrita dos princípios supramencionados ao caso concreto.

Em assim não fazendo, os tribunais prejudicaram os trabalhos, principalmente, dos juízes de primeiro grau, na medida em que se verificava num determinado caso concreto uma situação fática apta a ensejar a excepcionalidade da transferência, seja em virtude de saúde, seja por qualquer motivação relevante, mas se assim procedessem estariam por inviabilizar as atividades da instituição de ensino superior, superlotada com estudantes sub judice.110 Complementarmente, prejudicaram

as partes litigantes que, de fato, necessitavam do amparo jurisdicional para prosseguimento dos estudos diante de uma situação imprevisível e não mais tinham como procedentes seus requerimentos.

Retorna-se, desse modo, à problemática mencionada no tópico anterior, segundo a qual a interpretação ativista travestida de hermenêutica conforme a constituição acaba por diminuir a supremacia constitucional na tentativa de protege-la. Ora, a partir do momento em que não se tem certeza de quando vai prevalecer a normatização constitucional ou a infraconstitucional no caso concreto, está-se diminuindo a importância das regras superiores, tendo em vista que tal dúvida não deveria sequer existir, posto que, na ideia de hierarquia normativa, o regramento constitucional é sempre e obrigatoriamente preferido em relação aos demais.

A própria ideia de segurança jurídica resta afetada na análise do caso concreto, tendo em vista que, atualmente, em demandas que tratam sobre transferências compulsórias, a decisão jurisdicional é, de certo modo, imprevisível, com turmas/câmaras dentro da mesma corte de apelação com entendimentos divergentes. Diferentemente seria caso o tribunal, quando da análise difusa, sendo verificado o afastamento da incidência

110 Cf. Decisão acerca de requerimento liminar prolatada em Mandado de Segurança nº 0804636-

51.2017.4.05.8100, da lavra do eminente Juiz Federal Ricardo Cunha Porto, na qual expressamente aduz que, se a ação houvesse sido ajuizada anteriormente, diante daquele contexto fático certamente seria por ele deferida a medida liminar, todavia, hodiernamente, não mais verifica plausível tal deferimento.

de uma norma constitucional sob preceitos e axiomas constitucionais, tivesse instaurado o incidente cabível e adequado a interpretação dentro do seu âmbito jurisdicional.