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Em meados dos anos 1930, Mikhail Mikhalovich Bakhtin ainda não tinha grande visibilidade e participação nos grupos intelectuais de Leningrado, antiga São Petersburgo. Clark & Holquist (2008, p. 120) destacam que, nessa época, Bakhtin ainda não tinha “quaisquer filiações institucionais”, sendo “apreciado somente por um

pequeno grupo de amigos devotados e uns poucos alunos”. Em Leningrado, Bakhtin teve muitos problemas financeiros aliados aos problemas de saúde; alugava quartos ou ficava em moradas de seus amigos e sua esposa auxiliava na renda da família, fazendo animais empalhados para vender. Contrastando com essa realidade, em Niével e Vítebsk, Bakhtin trabalhou numa grande variedade de instituições governamentais, proferia palestras e participava ativamente de debates públicos (CLARK & HOLQUIST, 2008, p. 120). Mikhail M. Bakhtin formou-se em estudos literários. Antes de ser preso em 1929, “atuou como professor sem vínculos institucionais”, por causa de problemas de saúde.

Tanto em Niével e Vítebsk quanto em Leningrado, Bakhtin reunia-se com intelectuais de diferentes áreas e com essas reuniões compunham um grupo, um círculo de estudos e debates. Aliás, era muito comum, nessa época, a formação de círculos de estudos entre os intelectuais. Conforme Clark & Holquist (2008, p. 126), o Círculo composto por Bakhtin, seus amigos e discípulos era frequentado por gente “animada, energética, ambiciosa e excêntrica”, que alimentava “também o ideal da prestação de serviços à coletividade”.

O Círculo de Bakhtin, como é comumente chamado pelos estudiosos do discurso, pois na época os integrantes não se referiam aos encontros dessa maneira, não apresenta somente produções de Mikhail Bakhtin, mas também apresenta a produção de intelectuais de diferentes áreas do conhecimento que com ele participaram, na Rússia entre os anos 1920 e 1970. Levando em consideração as obras que tinham como eixo principal de discussão a filosofia e a linguagem, destacamos também outros dois autores, além de Bakhtin que contribuem atualmente para os estudos do discurso: Volochinov e Medviédev.

Segundo Clark & Holquist (2008, p. 134), Valentin N. Volochinov era professor, graduado pela Faculdade Filológica da Universidade de Leningrado em 1927, prosseguindo carreira acadêmica em trabalhos de pós-graduação “com um grupo dedicado à metodologia literária no Instituto para a História Comparativa de Literaturas e Línguas do Ocidente e do Oriente”. O Instituto “representava nos estudos linguísticos uma ‘nova abordagem marxista’ que desafiava as concepções tidas por indesejáveis como as dos Formalistas8”. Volochinov ainda lecionou história da música em instituições dedicadas à ilustração popular, publicou artigos, “resenhas de livros sobre

8 Em diferentes obras do Círculo, os autores discutem com a corrente teórica dos Formalistas russos, sobretudo no que tange questões de análise linguístico-literária.

assuntos musicais e poemas derivados do simbolismo na revista Notas do Teatro

Itinerante de Massa de Gaideburov e Skarskaia até o fechamento em 1924”.

Outro integrante importante no Círculo era Pavel N. Medviédev. Conforme Faraco (2009, p. 13), Medviédev era formado em direito e exercia docência na área de cultura, desenvolvendo “intensa atividade no jornalismo cultural”. Clark e Holquist (2008, p. 135) afirmam que Medviédev era professor no Instituto Pedagógico Herzen, ministrando “cursos sobre a literatura soviética e a do século XX”. Realizava pesquisas no Instituto de Leningrado para a Literatura Russa da Casa de Púchkin, conduzindo “seminários de pós-graduação na Academia de Estado para as Belas-Artes”. É importante ressaltar que Medviédev estava interessado em teorizações sobre autoria, “o que resultou no seu livro No Laboratório do Escritor”. Além disso, neste mesmo período, publicou e assinou um livro de polêmica com os Formalistas russos.

Os três pensadores do Círculo foram intelectuais preocupados em refletir sobre linguagem e filosofia. Por isso, suas obras são lidas e pesquisadas pelos mais diversos campos do conhecimento acadêmico. Além desses nomes, participavam ativamente do grupo a esposa de Volochinov, Vaguinov, Iudina, Kanaiev, Zaliéski, entre outros nomes como Pumpiânski e Solertínski que apenas assistiam a algumas das palestras proferidas pelos principais integrantes. Tal Círculo de estudos não tinha uma organização fixa. Clark & Holquist (2008, p. 125) destacam que o Círculo era constituído por “um grupo de amigos que gostava de encontrar-se e debater ideias”. Com certeza, esse encontro intelectual era movido por questões filosóficas que marcaram a época dos estudiosos russos e esse mote pode ser recuperado ao longo dos textos escritos pelos integrantes do Círculo.

Faraco (2009, p. 16) nos explica que o Círculo tinha como um dos grandes projetos: “construir uma prima philosophia”. O projeto da prima philosophia refere-se a problemas filosóficos verificados, pelo Círculo, em determinadas ideias literárias e linguísticas, desenvolvidas por correntes teóricas da época. Bakhtin e seu Círculo, então, se dedicaram a construir uma base filosófica do estudo da linguagem que trabalhasse com o centro a unicidade do ser. Em termos de linguagem, é preciso, sob o viés do Círculo, desenvolver uma teoria que tenha como base não só o estudo das formas (literárias e linguísticas de maneira geral), mas também e sobretudo que o estudo esteja voltado para a concretude e a singularização, sempre irrepetível dessas formas.

No desenvolvimento de suas reflexões, Faraco (2009, p. 18) entende que três temas recorrem o pensamento do Círculo, sendo o cerne das bases filosóficas

idealizadas pelos pensadores russos. A primeira temática refere-se à “questão da unicidade e eventicidade do Ser” que foi elaborado de maneira mais intensa, pela primeira vez, em Para uma filosofia do ato. A segunda refere-se à questão “da contraposição eu/outro9” e por fim a terceira temática é o “componente axiológico intrínseco ao existir humano”. Os dois últimos temas foram desenvolvidos com profundidade, pela primeira vez, no ensaio O autor e o herói na atividade estética.

Desde início, salientamos que não entraremos detalhadamente na questão da autoria dos textos produzidos pelos autores, assunto que tem despertado grande interesse por alguns pesquisadores. Entendemos que uma obra realizada, a partir de estudos de um grupo, revela o conjunto das ideias e das reflexões desse grupo. Faraco (2009) destaca que as discussões em torno da autoria das obras do Círculo se intensificam quando se trata das seguintes obras: Freudismo, Marxismo e filosofia da

linguagem e O método formal nos estudos literários. Isso aconteceu porque os dois

primeiros livros foram assinados e publicados “sob o nome de Valentin N. Volochinov e o último sob o nome de Pavel N. Medviédev” (FARACO, 2009, p. 11).

Acreditamos que os textos oriundos dos estudos do Círculo surgem a partir de um conjunto de ideias e discussões de um grupo, ou seja, houve uma colaboração autoral coletiva tanto no desenvolvimento de cada obra, quanto no desenvolvimento da totalidade das obras, do “pensamento bakhtiniano”. Desse modo, nesta tese, adotamos a forma genérica teoria dialógica do discurso para tratar do todo do pensamento do Círculo, nomeando os autores russos conforme estão assinadas nas capas dos livros consultados. No entanto, mesmo considerando que cada obra tem colaboração do Grupo, fazemos menção da referência, considerando a indicação de autoria do volume consultado.

É importante destacar que diferentes obras assinadas por Volochinov e Medviédev fazem uma aproximação entre as ideias marxistas e a linguagem, mostrando que os estudos do Círculo possuem um todo coerente de reflexão. Segundo Souza (2002), essa aproximação de marxismo e linguagem acrescenta aos estudos históricos e fenomenológicos de Bakhtin uma abordagem sociológica das questões que envolvem a linguagem. Além disso, o projeto de um método sociológico de estudo das criações ideológicas proposto principalmente em Marxismo e filosofia da linguagem, O discurso

na vida e o discurso na arte, O método formal nos estudos literários e O freudismo

9 Grifo do autor.

contribuíram para um aprofundamento das críticas do Círculo em relação à psicologia, à linguística, ao formalismo etc. (SOUZA, 2002, p. 21).

Essas discussões do Círculo estavam em grande efervescência entre 1924 e 1929, na Universidade de Petrogrado, São Petersburgo na Rússia. Nesse período, foram elaboradas quatro grandes obras: O freudismo, Marxismo e filosofia da linguagem, O

método formal dos estudos literários e Problemas da obra de Dostoiévski (CLARK &

HOLQUIST, 2008, p. 117). Além disso, uma série de ensaios foi produzida, dentre os quais destacamos: O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal, O

autor e o herói na atividade estética, O discurso na vida e o discurso na poesia.

Em 1941, era Bakhtin o único sobrevivente do Círculo Bakhtin/Volochinov/Medviédev. Conforme esclarece Souza (2002, p. 22), Volochinov veio a falecer em 1936, por causa do “agravamento da tuberculose que o acompanhava desde 1914”, e Medviédev foi preso em 1937, durante um expurgo na Faculdade da Academia Militar e faleceu em 1938. Nesse mesmo ano, Bakhtin começou a lecionar alemão em Savelovo e, em 1945, foi autorizado a lecionar russo. É importante destacar que, nesse período, acontecia a II Guerra Mundial, fase em que Bakhtin se dedicava a escrever sua tese de doutorado para o Instituto Gorki de Literatura. Sua tese foi intitulada “Rabelais na história do Realismo” e, em 1965, foi publicada com o título “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: contexto de François Rabelais”.

Os últimos anos de vida de Bakhtin foram dedicados à revisão de vários textos escritos ao longo dos anos. Tais textos, como afirma Souza (2002, p. 23), foram “publicados postumamente” em Questões de literatura e de estética: a teoria do

romance, publicado em 1975, e em Estética da criação verbal, publicado em 1979.

Bakhtin falece em 07 de março de 1975, por causa de sérias complicações de seu estado de saúde (SOUZA, 2002, p. 23).

Frente às breves considerações reunidas a respeito do Círculo de Bakhtin, concordamos com Clark e Holquist (2008, p. 29), quando se referem à obra bakhtiniana como um “signo da pluralidade”. A obra do Círculo se apresenta aos leitores “sob o mistério do um e do muitos”, sob a égide do diálogo e da dialética no que se refere à filosofia, ao sujeito e à linguagem (CLARK & HOLQUIST, 2008, p. 29). Certamente, a visão dialógica desses elementos tem nos mostrado um grande avanço no que diz respeito à visão do papel da linguagem nas diversas esferas da atividade humana. As obras do Círculo de Bakhtin nos revelam que a linguagem está saturada da diversidade

das relações sociais, relações essas que são, em essência, valorativas, ideológicas e intersubjetivas.

Na próxima seção, discutimos a respeito do princípio dialógico da linguagem, considerando a reflexão proposta em diferentes obras do Círculo. Delineamos um caminho dialógico entre as obras, a fim de se realizar uma leitura ativa e responsiva desse princípio que é espinha dorsal no pensamento bakhtiniano.