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Bakhtin e seu Círculo, ao longo das obras, propõem uma visão diferente da linguagem até então propagada, já que os estudiosos combatem fortemente a ideia de uma linguagem transparente, objetiva, pura e que reflete a realidade, conforme algumas correntes da Linguística da época. Para o Círculo de Bakhtin, a linguagem é marcada pelo princípio do diálogo, pelo princípio da interação verbal, ou seja, a linguagem é marcada pela presença incondicional do eu e do outro. A alteridade é, nesse sentido, a chave para o entendimento da complexidade da metáfora do diálogo, proposta pela concepção bakhtiniana.

A metáfora do diálogo não se limita ao diálogo em sua forma composicional, no sentido de ser uma conversa face a face, nem tampouco como uma forma positiva de resolução de conflitos entre os sujeitos. Na amplitude postulada pela teoria bakhtiniana, a linguagem em uso é vista como um diálogo sem conclusão e inacabável, pois parte de diversas enunciações já ditas no meio social, encontrando o locutor que lhe dará sempre um novo sentido. Aliás, conforme Bakhtin/Volochinov ([1929], 2010), a estrutura da enunciação e da atividade mental do eu são de natureza social. Assim, a língua só pode ser constituída na base da interação verbal, “realizada através da enunciação ou das

enunciações” (BAKHTIN/VOLOCHINOV [1929], 2010, p. 127)10.

Observando a enunciação no terreno da interação verbal e tendo colocado o social como a base dessa interação, Bakhtin/Volochinov ([1929], 2010) explicam que

o diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido amplo, isto é, não apenas com a comunicação em voz alta, de pessoas 10 Grifos do autor.

colocadas face a face, mas de toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja (BAKHTIN/VOLOCHINOV [1929], 2010, p. 127).

Evidentemente, ao ampliarem a noção de diálogo, os autores abrem espaço para o estudo de diferentes discursos, colocando-os no âmbito da comunicação social. Com efeito, o diálogo se dilacera em elos de uma imensa corrente de comunicação ininterrupta que é histórica e cultural. Além disso, é preciso considerar também o vínculo intrínseco entre a comunicação e a situação concreta dessa interação. Segundo Bakhtin/Volochinov ([1929], 2010, p. 128), “a comunicação verbal não poderá jamais ser compreendida e explicada fora desse vínculo com a situação concreta”, visto que a própria língua “vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes”.

Esse princípio de encontro com o outro nas situações de comunicação é observado em diferentes reflexões do Círculo. Em diversos momentos, Bakhtin desenvolve a ideia de linguagem sob a égide da alteridade. A relação eu – outro, locutor – interlocutor é, nessa ótica, um lugar de encontro, mas um encontro social, tenso e, por natureza, dialógico. O locutor e o interlocutor constroem cada qual um universo de valores em que ambos atribuem sentidos às enunciações. Conforme Bakhtin (2003, p.379), o eu vive em um mundo repleto de palavras do outro e toda a sua vida “é uma orientação nesse mundo”. A palavra do outro coloca diante do eu a tarefa de compreendê-la, e mais, a tarefa de atribuir-lhe uma contrapalavra(BAKHTIN, 2003, p. 379).

No entanto, engana-se quem pensa que essa compreensão é passiva e sem nenhum atravessamento valorativo. A compreensão postulada pelos estudos bakhtinianos é ativa e responsiva, no sentido que apontam Bajtiín/Voloshinov ([1929- 1930], 1993), quando diz que cada enunciado está dirigido não só a um ouvinte, mas também está dirigido para a sua compreensão e para a sua resposta, ou seja, o enunciado é dirigido ao centro valorativo do outro, o qual se configura no auditório do dizer do eu. É conveniente notar que, quando os autores falam de auditório, estão tratando de algo que é pressuposto em qualquer enunciação, tanto que ampliam a ideia dizendo que até mesmo as enunciações verbais mais íntimas, como o discurso interior, são totalmente dialógicas, estando impregnadas da valoração de um interlocutor em potencial (BAJTÍN/VOLOSHINOV [1929-1930], 1993, p. 251).

A compreensão, nesse sentido, nasce no meio de um processo dialógico. Conforme Bakhtin (2003, p. 271), toda a compreensão do enunciado vivo e real “é de natureza ativamente responsiva”, considerando-se, é claro, o grau de variabilidade, desse ativismo. Toda a compreensão dos discursos proferidos em sociedade é “prenhe de resposta”, instaurando-se nesse processo um movimento dialógico de linguagem: o eu espera a resposta do outro e a alternância desses sujeitos coloca o ouvinte como falante e assim se completa a cadeia de comunicação. Bakhtin (2003, p. 275) explica que antes do início de um enunciado temos “os enunciados de outros e depois de seu término, o enunciado responsivo de outros”.

Esses enunciados de outros a que o filósofo russo se refere podem ser consideradas as vozes sociais que se engendram em nossos discursos, em nossa memória discursiva social. Os nossos dizeres estão impregnados de já-ditos de outros aos quais respondemos ativamente. Segundo Bakhtin ([1975], 2010, p.86), encontramos o objeto do nosso dizer já “desacreditado, contestado, avaliado” e muitas vezes o encontramos envolvido “por uma névoa escura” ou, então, “iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele”. Do ponto de vista bakhtiniano, o objeto do nosso dizer está sempre no emaranhado das ideias sociais sobre ele, ou seja, o objeto está sempre mergulhado nas apreciações dos outros e nas suas entonações (BAKHTIN [1975], 2010, p. 86).

Tais vozes são, portanto, históricas, ideológicas e revelam as diversas posições que circundam um discurso. Em todo o discurso percebe-se um meio flexível de discursos de outrem em pelo menos duas dimensões: entre o discurso e o objeto do dizer e entre o locutor e o objeto. O meio flexível existente entre esses elementos é formado por uma “massa de discursos” de outrem que orientam uma apreciação sobre o objeto. É nesse processo de mútua interação entre locutor, objeto e discursos de outrem que o discurso se individualiza e se elabora estilisticamente (BAKHTIN [1975], 2010, p. 86).

Esse processo de mútua interação entre locutor, objeto do dizer e discursos de outrem acontece no terreno das relações dialógicas. Bakhtin, em Problemas da Poética

de Dostoiévski (BAKHTIN [1929-1963], 2010b), levanta reflexões a respeito das

relações lógicas e dialógicas. Somente as relações dialógicas são relações de sentidos que acontecem no campo do discurso. Já as relações lógicas (relações entre os elementos fonéticos, lexicais, sintáticos e semânticos) acontecem no campo da língua, ou seja, no campo da potencialidade que se encontram os elementos linguísticos antes de entrarem em enunciações concretas. As relações lógicas só se tornam relações

dialógicas no momento em que se materializam, recebendo um autor e sua posição avaliativa. Nesse sentido, ocorrem relações dialógicas entre “enunciações integrais (relativamente)” (BAKHTIN [1929-1963], 2010b, p. 210) e ocorrem ainda relações dialógicas entre pontos de vista sobre o objeto do discurso.

Podemos entender que as relações dialógicas acontecem em duas dimensões: no interior do enunciado, ou seja, os elementos linguísticos e discursivos mobilizados no enunciado se engendram, criam um tecido de relações e dialogam tensamente, a fim de refletir e refratar sentidos no discurso. O jogo de reflexos e refrações do enunciado concreto é atravessado por relações dialógicas reverberadas de outros enunciados proferidos na sociedade, e os sentidos desses enunciados, então, se interconectam nas diversas esferas da atividade humana e são materializados nos diferentes gêneros do discurso, mantendo entre si relações que ultrapassam as relações lógicas dos elementos abstratos da língua.

As discussões do Círculo em torno do princípio dialógico da linguagem sempre envolvem relações dinâmicas e de interdependência entre o abstrato e o concreto, entre o natural e o social. As reflexões bakhtinianas mostram que a dialogia constitui esses elementos em via de mão dupla. Em Apontamentos 1970-1971, um dos últimos textos escritos por Bakhtin, são discutidas várias questões que envolvem a linguagem, entre elas o autor destaca três tipos de relações.

O primeiro tipo de relações evidenciadas pelo autor são as relações entre objetos, entre coisas, entre fenômenos físicos, químicos, relações matemáticas, lógicas e linguísticas. O segundo tipo são as relações entre o sujeito e o objeto. Por fim, o terceiro tipo de relações são as relações entre os sujeitos, relações pessoais, relações dialógicas. O terceiro tipo de relações abrange ainda as relações entre enunciados, relações éticas, entre verdades e mentiras, entre influências mútuas, entre saberes, entre confiança e desconfiança, entre julgamentos de valor (BAKHTIN, 2003, p. 374).

Compreendemos que o componente dialógico se estende para além da interação verbal, atingindo níveis que englobam desde o sujeito em contato com outros sujeitos até elementos abstratos da língua. A divisão de “relações” elaborada por Bakhtin nos permite considerar que, como se tratam de “relações”, existe uma interdependência constitutiva entre elas. O terceiro tipo de relação (entre sujeitos), por exemplo, precisa que os sujeitos participantes entrem em relação com o objeto e esse objeto, por sua vez, pressupõe-se que já tenha estabelecido relações entre si. Discursivamente, nessa perspectiva, o sujeito falante entra em contato com sua língua

(2º tipo de relações), que por si só já se apresenta a ele com seus elementos relacionados, por meio de sua organização morfológica, sintática e semântica (1º tipo de relações). Tal sujeito, imerso nesse jogo de relações, está organizado dialogicamente para manter diversas relações sociais e culturais com outros sujeitos falantes (3º tipo de relações).

É importante destacar que Bakhtin, em vários textos, se debruça a estudar os efeitos das relações dialógicas em textos literários. Decorre desse estudo a elaboração de alguns conceitos que circulam na obra bakhtiniana, tais como plurilinguismo e polifonia. Sublinhamos, no entanto, que esses conceitos podem ser entendidos para além do discurso literário, levando em conta justamente que Bakhtin elabora suas concepções em torno de uma visão dialógica da linguagem materializada em diferentes gêneros do discurso.

As relações dialógicas se materializam nos discursos sob diferentes maneiras. Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin discute a respeito dos elementos que envolvem a polifonia. É relevante retomarmos esse conceito, sobretudo quando se trata do princípio dialógico da linguagem, pois, embora Bakhtin não tenha mais tratado da polifonia em seus últimos textos, é um conceito bastante difundido entre os leitores de Bakhtin e com essa difusão caminham também algumas confusões conceituais.

Analisando principalmente os textos de Fiódor Dostoiévski, Bakhtin ([1929- 1963], 2010b, p.05) afirma que “Dostoiévski é o criador do romance polifônico”, ou seja, um gênero romanesco novo. Segundo o filósofo russo, a obra dostoievskiana marca o surgimento de um herói “cuja voz se estrutura do mesmo modo como se estrutura a voz do próprio autor no romance comum”. Assim, as vozes na polifonia possuem plenitude e igualdade de valores, não havendo nenhuma subordinação da voz do herói em relação à voz do autor. Além disso, a voz do herói não é intérprete da voz do autor, criando o efeito de como se as vozes caminhassem lado a lado como plenivalentes (BAKHTIN [1929-1963], 2010b, p. 05). No romance polifônico, há a multiplicidade de vozes, mas conforme explica o autor

não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo e uno, à luz da consciência do autor, se desenvolve nos romances; é precisamente a multiplicidade de consciências11 equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de 11 Grifos do autor.

acontecimento, mantendo a imiscibilidade (BAKHTIN [1929-1963], 2010b, p. 04).

Destacamos das palavras de Bakhtin, nesse trecho, duas questões importantes e que distinguem a característica polifônica da plurivocalidade ou plurilinguismo. A primeira questão é que na polifonia as múltiplas vozes participam do diálogo em equipolência, ou seja, em pé absoluta de igualdade, em igual valor de poder e de sentidos. A segunda questão é que esse diálogo de vozes acontece sem haver a mistura, a fusão ou sobreposição de vozes. Esses dois aspectos da polifonia já não acontecem no plurilinguismo.

Em Questões de literatura e de estética, Bakhtin também aborda o gênero romanesco como pano de fundo de suas discussões em torno do plurilinguismo12. Bakhtin ([1975], 2010) chama de plurilinguismo dialogizado o efeito de sentidos decorrente do encontro de diferentes vozes, discursos, linguagens sociais que ressoam no enunciado. Tais vozes se articulam formando uma espécie de andaime que sustenta o discurso, tendo em vista o momento social e histórico da enunciação. Aliás, segundo o viés bakhtiniano, é importante frisar a importância social que a linguagem desempenha, criando no locutor a capacidade de configurar-se numa cultura, numa ideologia (BAKHTIN [1975], 2010, p. 133).

Desse modo, podemos entender que o conceito de polifonia é pouco produtivo no que tange à análise de discursos das esferas cotidianas, se tornando mais adequada a aplicação do conceito de plurilinguismo para tratar do encontro de diferentes vozes nos discursos cotidianos. Na visão do Círculo de Bakhtin, a linguagem estaria sempre ligada à estratificação socioaxiológica, não sendo possível tratar de diferentes vozes sem considerar essa hierarquização de valores sociais no discurso (FARACO, 2009, p.71). A estratificação social é no sentido de que, na sociedade, os discursos convivem e divergem por conta das diferentes posições de poder e de hierarquias que possuem nas esferas da atividade humana. Podemos citar, como exemplo, o embate de vozes conflitantes e com diferentes posições axiológicas dentro de esferas bastante conhecidas, tais como a esfera política, a esfera acadêmica, a religiosa, a jurídica, entre outras. Em todas essas esferas, observamos o diálogo de distintas vozes e valores que

12 Em 2015, o livro “Teoria do romance I: A estilística (1930-1936) foi publicado sob a edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov, com tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. Na nova versão, o termo plurilinguismo foi traduzido como “heterodiscurso”. Não utilizamos o novo termo na tese, pois a tradução chegou após a elaboração da parte teórica.

não caminham harmoniosamente, pelo contrário, elas lutam, combatem se sobrepondo hierarquicamente umas às outras.

Ao pressupor essa estratificação, entendemos que os discursos que circulam na sociedade inevitavelmente têm poder social, político e econômico diferenciado e por isso essas vozes não poderiam dialogar em pé de igualdade, em polifonia conforme postulou Bakhtin a partir dos textos de Dostoiévski. Assim, é possível considerar que, quando Bakhtin ([1975], 2010) traz discussões concernentes ao plurilinguismo no romance, está realizando seu projeto de mostrar que a linguagem nasce e se desenvolve a partir de uma complexidade dialógica no terreno da diversidade de vozes, dos gêneros discursivos, das palavras alheias introduzidas nas nossas, dos discursos autoritários que convivem com discursos subversivos. Enfim, o filósofo russo quer nos mostrar que essa complexidade dialógica constitui a natureza da linguagem, constituindo também o sujeito e a sociedade que o engendra.

Diante dessas questões que envolvem o princípio dialógico da linguagem, podemos afirmar que a realidade da língua é esse encontro ininterrupto de vozes sociais, já ditos, valores que perpassam a história e a cultura de uma sociedade. A natureza dialógica da linguagem se estende para os sujeitos e para a vida. Nascemos numa sociedade marcada por diferentes posicionamentos valorativos e elaboramos nossos posicionamentos, nossos discursos, enfim elaboramos nossa vida sempre em direção ao diálogo tenso com a palavra ativa e responsiva do outro.

Na próxima seção, levantamos reflexões a respeito de um elemento indispensável na cadeia dialógica da comunicação: o signo ideológico verbal e não verbal. Tratamos ainda da palavra na obra bakhtiniana, atentando-nos para os aspectos sociais, históricos e valorativos que a constituem.