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Nos dezoito processos judiciais encontrados a respeito da violência doméstica, apenas um refere-se ao crime de estupro. Certamente, isto não significa a inexistência de tais crimes, mas a ocultação deles.

Para compreender o porquê da tão baixa incidência do crime de estupro no marco temporal desta pesquisa, pôde-se encontrar na dissertação de Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa uma explicação que muito ajudou neste sentido. De acordo com ela:

Um ponto importante a ser destacado é que são poucos os estudos na área de violência sexual no Brasil que trabalham especificamente com processos judiciais abertos, cujo objeto é o crime de estupro. [...] um dos motivos que explicam essa reduzida ocorrência é o fato de o Sistema de Justiça Brasileiro voltar-se demasiadamente a aspectos burocráticos e técnicos, não desenvolvendo uma cultura de pesquisa e oferecendo certa resistência a quem se propõe desenvolver temáticas no âmbito dessa instituição113.

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COSTA, Patrícia Rosalba Salvador Moura. Entre o Fato e a Lei: Representação, Justiça e Gênero – Estupro em Aracaju/SE. Universidade Federal de Sergipe, 2006, p. 10.

O Código Criminal do Império de 1830 foi o primeiro código criminal que o Brasil teve. Nele, o crime de estupro é referenciado pelo artigo 222 e assim está disposto: “Ter copula carnal por meio de violência ou ameaça com qualquer mulher honesta. Penas de prisão por três anos a doze anos e de dotar a ofendida”.

No entanto, se a vítima fosse uma prostituta e o fato fosse comprovado, a pena variava de um mês a dois anos de prisão.

Essa distinção quantitativa em relação à pena aplicada ao infrator que estupra uma mulher honesta e o que estupra uma prostituta torna evidente que o artigo 222 do código criminal do Império de 1830 era ideologicamente moralista.

Patrícia Rosalba destaca:

Ainda que a legislação criminal se volte a aspectos que dizem respeito aos valores morais, como a necessidade por parte da vítima de comprovar sua condição de mulher honesta, o fato é que no intervalo de algumas décadas houve mudanças no conteúdo jurídico do crime de estupro que não estão dissociados das modificações ocorridas na sociedade. [...] o que devemos pontuar claramente, em relação às definições do estupro nos códigos de 1830 e 1890, é o objetivo de se controlar a sexualidade da mulher114.

Diferente do defloramento, que poderia ser um ato consentido – dessa forma, não seria considerada uma violência, mas um crime, por ser realizado com uma mulher virgem menor de dezessete anos – o estupro, no entanto, estava caracterizado pela violência com que seria consumado, uma vez que a vontade da vítima não era levada em consideração.

Assim, todo estupro era e é, em si mesmo, um ato violentador, no qual o agressor subjuga a vítima pela força física ou psicológica, com o objetivo de ter com ela conjunção carnal.

O Diário Oficial do Império do Brasil, na edição do dia 18 de janeiro de 1863, publicou uma matéria que teve origem numa dúvida a respeito de como deveriam proceder os operadores do Direito, no caso do defloramento em mulher virgem menor de dezessete anos, feito com violência ou ameaças. Nesta matéria, também foram discutidos os crimes contra a segurança da honra, preconizados no capítulo 2°, seção 1ª do título 2° do Código Criminal do Império. De acordo com o Diário Oficial do Império do Brasil,

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COSTA, Patrícia Rosalba Salvador Moura. Entre o Fato e a Lei: Representação, Justiça e Gênero – Estupro em Aracaju/SE. Universidade Federal de Sergipe, 2006, p. 24.

com violencia. E quando a Lei não distingue não podemos distinguir, diz o communicante, tanto mais quanto no estupro – sempre se presume violência. Esta ultima asserção é gratuita; que o estupro se não leve á effeito sem violência, admitimos, mas não é dessa violencia a que se refere o Legislador, e sim da que contraria a vontade da paciente. Ora, o simples bom senso está dizendo que se póde dar o estupro com ou sem o assenso da estuprada. Comparando as expressões do art. 219 do Codigo Criminal, com as do art. 224 que trata da seducção de mulher honesta menor de 17 annos, deduz-se a conclusão logica, de que o Legislador naquelle artigo somente tratou de prever o estupro, em que não havia lugar a violencia ou ameaças, por quanto nos dous casos impoz a mesma penalidade. As distincções de defloramento e copula, em vista da doutrina destes dous artigos, são aqui impertinentes e mal cabidas, pois que o legislador equiparou, os dous factos. Seduzir mulher honesta menor de 17 annos para copula, ou para deflorar – importa a mesma criminalidade. Por outro lado, tanto era esse o pensamento do legislador, que quando teve de punir esse factos, revestidos das circumstâncias de violencias ou ameaças prescindindo da idade, e da condição do estupro, punio o criminoso tão sómente pela copula acompanhanda de violencia ou ameaças, distinguindo para a maior ou menor penalidade a circumstancia de honestidade. Sob a expressão geral de copula, comprehendeu o crime praticado com a mulher virgem ou não, comtanto que fosse honesta. E muito judiciosamente procedeu o legislador estabelecendo essa generalidade, escusada a distincção de estupro e copula, visto como já havia equiparado esses factos, no caso de seducção, ou mutuo accordo do offensor e offendida. Se pois o legislador não previo no caso do art. 219 do Codigo Criminal, o estupro com violencia ou ameaças, como sujeitar á penalidade quasi illusoria desse artigo o réo de semelhante crime? Em vista por tanto destas considerações, parece-nos que o Sr. Ministro interino da Justiça, não abusou expedindo o Aviso de 5 de novembro do anno passado; e sua decisão está de conformidade com a letra e espírito de nossa legislação criminal, com os interesses a honra da Sociedade que convém muito resguardar e defender115.

Neste sentido, o estupro poderia ser efetivado sem agressão física, mas não deixaria de ser um ato violento, pois a vontade da vítima não teria sido respeitada.

A seguir, há a análise do único caso de violência doméstica de natureza sexual tipificado como estupro, existente no Arquivo Geral do poder judiciário de Sergipe, no marco temporal no qual se assenta esta pesquisa.

No dia 23 de janeiro de 1878, o Curador Geral dos Órfãos, dirigindo-se ao juiz da comarca, pediu:

Se digne ordenar sem perda de tempo o depósito judicial da órfã [...] que se acha segundo é voz publica estuprada por seo tutor [...], a fim de que as diligencias judiciais e policiais a que se estão procedendo não sejam dificultadas pelo desaparecimento da referida órfã: Este facto que tanto tem abalado o espírito público desta capital pela barbaridade com que seo autor o

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BRASIL, Diário Official do Império do Brasil, 18 de Janeiro de 1863, n. 14, p. 3 (Arquivo Público do Estado de Sergipe), 1883.

como também do criminal116.

A petição do curador, além de ter demonstrado sua preocupação com a gravidade do ato cometido contra a órfã, tornava evidente a existência de três fatos que se destacavam neste processo.

O primeiro fato prende-se à preocupação que o curador demonstrou ter com a órfã. Isto ficou evidente na sua solicitação ao juiz através do pedido de que o depósito judicial fosse feito sem perda de tempo, pois a ofendida poderia desaparecer e isto atrapalharia as diligências judiciais.

O temor do curador quanto ao desaparecimento da órfã ofendida não foi esclarecido durante a tramitação do processo, mas houve algumas evidências, tais como a pressa de se fazer o depósito judicial e a intensidade como o crime foi descrito, que apontavam na direção de um possível rapto da órfã ou, então, de sua morte.

O segundo fato refere-se à existência, já naquela época, da organização de um sistema de justiça destinado a cuidar da causa dos órfãos. Isto demonstra com clareza que, à medida que o processo civilizador se desenvolvia, a justiça, como poder controlador, ia se organizando, fazendo com que a violência em geral diminuísse.

O terceiro fato diz respeito ao modo como o agressor foi tratado. Embora o Curador se ocupasse em denunciar a gravidade do crime e se apressasse em acudir a vítima, em nenhum momento, houve sua solicitação para que o agressor fosse punido. Por outro lado, o juiz, no dia seguinte ao da petição, já havia nomeado uma pessoa como depositária da órfã ofendida, nos termos da solicitação que lhe fora feita pelo curador. Neste caso, o juiz, também, em nenhum momento da tramitação do processo, referiu-se ao agressor.

Neste processo, diferentemente dos demais, não houve exame de corpo de delito e, embora o curador tivesse dito que era voz pública o fato da órfã ter sido estuprada, nenhuma testemunha foi chamada para depor. Além disso, não houve corpo de jurados.

Na verdade, não se sabe a razão deste silêncio em relação ao agressor e nem por qual motivo a órfã não foi ouvida. Que mistérios envolveram agressor, vítima e operadores do Direito a ponto de, em apenas três dias, tudo ter sido resolvido no sentido de se atender à ofendida, ao mesmo tempo, ignorando-se o criminoso? Esta é uma

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ARQUIVO GERAL DO PODER JUDICIÁRIO DE SERGIPE. (Aracaju, SE). Processos Judiciais referentes ao crime de violência doméstica em Aracaju, na segunda metade do século XIX. Aracaju, (1855-1889), Aju/C. 2° Of. – Cx. 03-2477, 1878.

indagação cujo eco ainda continuará vibrando procurando fazer falar as vozes silenciadas na segunda metade do século XIX. Esta é uma das tarefas árduas da História, talvez a mais árdua: a busca da compreensão dos atos do homem no mundo.

De todas as leituras realizadas durante a elaboração do projeto desta pesquisa e no decorrer de sua escrita, o momento mais emocionante foi o de poder interagir com os dados coletados nos processos judiciais. Isto se deu no momento em que se quebraram as amarras que prendiam o pesquisador aos seus pressupostos – todos eles pré- concebidos – e se passou ao exercício de ouvir as fontes, procurar as evidências, permitindo que os documentos falassem.

3 VIOLÊNCIA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA PERSPECTIVA