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Ao perceber a criança como um corpo produtivo, e era isso que mais interessava ao patronato, o discurso centrado na economia procurava alertar as autoridades no início da primeira metade do século XX a respeito da situação do desamparo da infância e a conseqüente mortalidade infantil. Neste sentido, entendia-se que somente com a atuação da ciência médica poderia haver assistência preventiva para a infância, cuidando que o país, no futuro, pudesse contar com um maior número de trabalhadores produtivos e sadios.

Por outro lado, este é também um discurso político. Ao dar assistência à saúde das crianças e se preocupar com sua proteção, o que se desejava também era evitar o surgimento e formação de grupos descontentes com o fato de meninos e meninas viverem pelas ruas, sujeitos a todo tipo de perigo.

Assim, no discurso do patronato,

[...] a função moralizadora do trabalho justifica a introdução de um vasto contingente de menores nas indústrias, especialmente nas têxteis. O trabalho nesta perspectiva aparece como uma maneira salutar de impedir a vagabundagem e o desperdício das energias das crianças. Não raro, os pais participam da ética puritana do trabalho, coniventes com a representação imaginária do trabalho como atividade redentora e enobrecedora, formadora do bom caráter do cidadão, ou seja, como uma virtude32.

Essas crianças trabalhadoras enfrentavam uma jornada de trabalho que invariavelmente se estendia de dez a doze horas por dia, ganhando salários ínfimos e expostas a situações de risco para suas vidas.

Os que defendiam o trabalho infantil alegavam que, além do dinheiro que ganhavam, estas crianças estavam adquirindo o hábito do trabalho desde cedo, aprendendo uma profissão e, o que era mais importante: estavam fora do alcance dos males da rua.

31

LAJOLO, Marisa. Infância de papel e tinta, p. 225-246. In: FREITAS, Marcos Cezar de. História Social da Infância no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, 1997, p. 225-226.

32

RAGO, Margareth. “Do cabaré ao Lar”: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 136.

A defesa no sentido de cuidar da vida das crianças, dando-lhes saúde e proteção, escondia por trás da fachada do seu discurso o interesse pela produção das fábricas a custo baixíssimo em função do sofrimento e comprometimento da vida das crianças.

O discurso que coloca o trabalho como salvação da infância brasileira, montado na ganância capitalista, perde sua força de argumentação ao ser confrontado com sua cegueira intencional de não querer perceber que criança precisa brincar, ir para escola e conviver com sua família. Mas como era possível que as crianças fizessem isso, se o seu dia era todo dedicado ao trabalho e o da sua mãe também?

De acordo com Margareth Rago:

O trabalho assalariado de “centenas de órfãos e crianças abandonadas” nos asilos, nas instituições de irmãs de caridade e nas sociedades beneficentes reduziria os encargos da sociedade para com esta população miserável. Um grupo de industriais afirmava, em 1870, que “não há empreendimento mais humanitário e filantrópico do que proporcionar emprego apropriado para essa grande e crescente parcela da comunidade.33

Neste caso, a infância miserável era um fardo financeiro que necessitava ser tirado dos ombros da sociedade. Os empresários seriam, então, “almas boas, generosas e altamente altruístas” que socorreriam estas crianças, dando-lhes emprego, cuidando da sua formação física e moral. Mais uma vez, o discurso privilegia a sociedade burguesa e os empresários, enquanto se penalizava as crianças.

Contrapondo-se ao discurso patronal orquestrado pela burguesia, A Voz do Trabalhador, periódico em circulação no início do século XX, insurgindo-se contra a situação na qual se encontravam as crianças na fábrica, exigia que os jornalistas burgueses:

[...]deixassem as belas confeitarias e fossem visitar as fábricas, onde poderiam constatar que ali trabalhavam crianças de seis a doze anos “em trabalhos superiores às suas forças e que muitas vezes inexperientes devido à sua idade, deixam-se fatalmente apanhar pelas máquinas”, ou que com medo dos castigos dos contra mestres limpavam as máquinas “com elas em movimento, do que resulta ficarem despedaçados nas engrenagens”34.

Além dos riscos que as crianças trabalhadoras corriam ao lidarem com máquinas para as quais não haviam sido treinadas, elas também estavam expostas à má alimentação e à vida insalubre no interior das fábricas. Elas se tornavam passíveis de todo tipo de doenças oportunistas e, em especial, da tuberculose, que causou a morte de muitas dessas crianças

33

STANLEY STEIN, op. cit, p. 64, apud RAGO, Margareth. 1985.

34

RAGO, Margareth. “Do cabaré ao Lar”: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 138.

trabalhadoras e que, além da imprensa operária, não tinham ninguém que por elas pudesse lutar.

Assim, os industriais burgueses, fundamentados num discurso moralista, passavam para a opinião pública a idéia de que estavam realizando um trabalho de grande valor social, afinal de contas, estas crianças viviam nas ruas, nos orfanatos, nos juizados e casas de caridade em condições muito piores.

Para agravar ainda mais a situação das crianças trabalhadoras, o discurso burguês do patronato industrial tinha conseguido inculcar no imaginário social, a idéia de que pelo trabalho elas seriam moralizadas e regeneradas. A partir dessa representação social, os pais operários, também necessitando de ter seu orçamento familiar acrescido pelo trabalho dos filhos, eram plenamente favoráveis ao trabalho infantil nas fábricas. Assim, o trabalho infantil, satisfazia os pais, porque ajudava no orçamento doméstico e era de grande valia para os donos das fábricas, porque era uma mão-de-obra não especializada e barata. De acordo com Margareth Rago:

A vida cotidiana do trabalhador infantil nas fábricas, retratada pela imprensa operária, dissipa qualquer ilusão rósea de um ambiente educativo, descontraído e saudável. Nada disso. As energias infantis se atrofiam, a falta de iluminação, a péssima ventilação, o odor fétido exalado pelos gases, óleos, vapores das máquinas e materiais industriais, a impossibilidade de uma boa alimentação, as longas horas de trabalho ininterrupto, tudo favorece a propagação de moléstias perigosas na fábrica, ameaçando dizimar esta geração de pequenos proletários35.

Assim, desde o ofício de jornaleiros aos trabalhos nas fábricas de vidros e indústrias têxteis, a infância brasileira, do final da segunda metade do século XIX ao início do século XX, foi em grande parte responsável pelo processo de industrialização do Brasil, trabalhando, muitas vezes, mais do que os adultos e ganhando menos por ser menor de idade.