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5.3 Imagens de si construídas no discurso

5.3.2 Ethos de solidariedade

O ethos de solidariedade no discurso político tem, entre suas principais características, o saber ouvir e ao mesmo tempo o saber fazer pelo grupo. No caso do discurso dos torcedores de futebol, esse ethos é representado pelas ações sociais promovidas pelas torcidas, muitas vezes, no intuito de substituir a imagem de violência. A solidariedade é evocada em todos os eixos. Quanto ao eixo de pertencimento, vejamos o depoimento a seguir:

[...] a gente tem essa::::/esse poder de tá lá... do mesmo jeito que eles também cantam... nós cantamos... do mesmo jeito que a bandeira tremula... nós tremulamos (TORCEDORA04, eixo de pertencimento).

[...] uma coisa importante... a gente leva nossos filhos pra estágio… ―será que tem um local para a gente poder ter a segurança do nosso filho?‖... ―será que na bancada a gente tem a segurança disso?‖ … cabe a nós fazermos essa segurança... e eu acho que hoje em dia... toda a torcida organizada... todo time tem que pensar um pouquinho no lado tanto feminino quanto no masculino (TORCEDORA04, eixo de denúncia).

[...] eu acho isso muito importante... é:::: esse encontro (...) quando a D. me convidou e falou desse encontro... achei muito bom porque é muito difícil ver mulheres de todas as torcidas juntas e sem rivalidade para um quesito tão importante... que é as mulheres/empoderamento das mulheres no futebol (TORCEDORA13, eixo de pertencimento).

A torcedora13 demonstra a importância do evento para as torcedoras de futebol, e além disso, o saber de revelação é acionado por ela para apresentar a importância das mulheres se unirem por uma causa em comum. Assim, o ethos de solidariedade é representado pela preocupação da torcedora com a dificuldade das mulheres de conseguirem se unir para falarem sobre as relações delas com o futebol. Como vimos, a torcedora13 é a única que se apresenta como não pertencente a alguma torcida em específico:

O ―não pertencer‖ não muda, segundo ela, os problemas de assédio e machismo. Em outras palavras, a torcedora13 evoca o ethos de solidariedade em relação à causa das torcedoras no geral, chamadas de torcedoras ―comuns‖. Dessa maneira, ela traz para pauta da assembleia um grupo que ainda não tinha sido citado explicitamente. Para comprovar a necessidade dessa atenção especial a esse público, ela evoca o saber de experiência, expressando uma opinião relativa, conforme observamos a seguir:

A torcedora faz uma denúncia, eixo importante para nossas análises, do que acontece nas arquibancadas fora do meio das organizadas. Para isso, ela apresenta uma imagem de indignação, relacionando o poder aquisitivo dos torcedores com o nível de machismo sofrido pelas torcedoras. Ela também constrói uma imagem de acolhimento para a torcida organizada, reforçando a ideia de que, nesse local, as mulheres são protegidas, como no depoimento da torcedora11:

[...] eu vim aqui falar porque eu acho importante vir uma/uma menina que não é de torcida organizada... vim aqui falar o que a gente sofre também fora da torcida organizada... (TORCEDORA13, eixo de pertencimento).

[...] e:: assim... como eu não sou de torcida organizada às vezes não vou na arquibancada norte... no setor da torcida organizada... vou nos outros setores e lá é::: o assédio contra a mulher é muito pior do que no setor da torcida organizada... porque lá é playboy... lá é gente que tem poder aquisitivo maior... lá não é gente que tá no dia-a- dia da torcida... então lá é muito pior... lá --- se você xinga se você reclama ―ah, você não entende de futebol‖... porra claro que eu entendo de futebol... não é porque eu tô aqui que eu não entendo lógico que eu entendo... eu ia fazer o quê no/vou fazer o quê no/no/no estádio se eu não gosto de futebol?... vou pra ver o jogador?... não... tô ali porque eu gosto (TORCEDORA13, eixo de denúncia).

[...] minha mãe me pôs pra fora de casa quando fiz minha tatuagem... entendeu?... e eu falei... tá bom... vou morar na sede (TORCEDORA11, eixo de pertencimento).

A torcedora11, quando foi expulsa de casa pela sua mãe, mudou para a sede da sua torcida. Para ela, esse é um local de acolhimento, cuja defesa se deve ao fato de esse espaço funcionar discursivamente como um ambiente solidário, reforçando o ethos de solidariedade não apenas de si, mas da instituição torcida. Além disso, essa também é uma imagem de resistência, pensando no que esse signo representa: ato de resistir. Ela resiste à proibição da mãe, posicionando a torcida como um espaço fraterno. Essa imagem de resistência também é retratada em outros trechos, como a seguir:

A retomada da fala é uma maneira de reforçar um pensamento. O sentimento de resiliência também é solidário, pois as torcedoras são solidárias às outras mulheres, que recebem denominações estereotipadas e reforçadas pelo imaginário de que arquibancada não é lugar para mulheres. A sororidade, conceito em voga nas discussões do feminismo, é uma maneira de combater a competição entre mulheres reforçada pela sociedade patriarcal. Essa rivalidade é reconstruída na luta pela igualdade em que a empatia passa a ser uma necessidade na busca por objetivos em comum.

A resiliência aparece na necessidade de reconstruir a imagem de solidariedade nas arquibancadas, principalmente na relação entre homens e mulheres. A torcedora faz isso a partir de uma imagem de repulsa em relação aos preconceitos sofridos pelas mulheres, imagem que também pode ser depreendida no e pelo ethos de caráter. Para isso, ela apresenta um imaginário de que a mulher ―não vagabunda‖ e ―não vadia‖ é a ―mulher de família‖ e essa, por sua vez, não merece ser tratada dessa forma.

No caso da torcedora08, como veremos no trecho a seguir, a afetividade é um sentimento utilizado para expressar a boa convivência na torcida, mas também entre as mulheres nas arquibancadas. Vejamos:

Para defender a boa convivência na sua torcida e na relação que esse grupo está construído com ―o restante da bancada‖, a torcedora evoca o saber de experiência. A

[...] e não é vadia... entendeu?... tem muita mulher de família na arquibancada e cada um faz o que quiser com seu corpo... certo? (TORCEORA11, eixo de denúncia).

[...] a gente tá com projeto feminino lá que tá englobando a torcida organizada e o restante da bancada... entende?... no nosso caso todas as esmeraldinas... e tá surgindo efeito enorme... porque a gente tá conseguindo... é::: abranger todo mundo e tá fazendo uma festa legal (TORCEDORA08, eixo de pertencimento).

partir da sua vivência, ela conclui que o projeto feminino é responsável pela festa e pela união da torcida organizada com os torcedores comuns. O ethos de solidariedade é atravessado pela imagem de responsabilidade, que a maioria das torcedoras evoca ao falar de suas entidades. Porém, algumas delas apontam a responsabilidade como critério para demonstrarem respeito aos papéis dentro da torcida, reforçando o ethos de autoafirmação, assunto do próximo tópico.