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A questão da feminilidade ainda traz discussões controversas entre os estudiosos do feminismo. Não nos aprofundaremos na temática, no entanto, uma abordagem – mesmo breve – é necessária para pensarmos as representações das mulheres como torcedoras de futebol, um espaço em que as masculinidades e as feminilidades estão em constante conflito. De acordo com Beraldo (2014), existem definições naturalizadas que são advindas de uma sociedade patriarcal, das quais se definem o que é ser/parecer mulher. Nesse sentido, surgem discussões quanto ao aspecto natural ou social do feminino. O conflito da mulher enquanto sujeito e o ideal da mulher na sociedade surgem dentro de uma cultura patriarcal, da qual existem padrões para as vestimentas, os gestos, a ―etiqueta‖, entre outros padrões estéticos ligados à beleza.

Moraes (2017) pontua que o futebol é parte da vida dos brasileiros, seja por escolha, seja por imposição. Muitos meninos nascem e um dos primeiros presentes é a camisa do time do pai, do avô, do padrinho. O que, por vezes, é diferente entre as meninas; muitas delas não têm fotos de bebê com a camisa do time do coração, ou de qualquer outro time de futebol. Algumas torcedoras trazem em suas falas vestígios de rompimento com essa ideia, como em um dos depoimentos em nosso corpus, no qual a torcedora04, que está grávida, deixa em suas palavras e no nome da própria filha a marca de pertencimento à torcida organizada que ela representa (RaçaFla, do Flamengo). Ela diz:

[...] ―Eu estou aqui com seis meses, esperando a ―Raçaela‖, a Rafaela‖ (TORCEDORA04, eixo de pertencimento).

O imaginário do Brasil como ―país do futebol‖ é suficiente para que obviedades como o tradicional presente de futebol aconteça ainda quando o bebê está na barriga da mãe. Geralmente, para os bebês homens, reforçando a ideia de que este é um esporte para homens. Sendo assim, de acordo com Moraes (2017, p. 3, grifo do autor) ―representações de virilidade e masculinidade sobressaem como ferramentas centrais para impossibilitar o diferente‖. Contudo, pelos depoimentos, observamos, mais uma vez, a tentativa de romper com essa imagem de esporte para homens, seja nas arquibancadas, dentro do campo, ou ainda na arbitragem, narração, entre outros espaços em que nossos olhos e ouvidos foram acostumados com o ―homem‖ nesse papel social. Segundo Costa (2007, p.2),

[...] para os homens criados desde pequenos em contato com a bola e desde cedo fazendo dela assunto compartilhado em rodas de amigos, o interesse e o conhecimento acerca do futebol são tomados como auto- evidentes. Já as mulheres, quase sempre dissociadas do esporte mais popular do país, ainda precisam mostrar que não apenas gostam, mas que também são capazes de compreender o futebol em seus múltiplos aspectos. Elas carecem de credibilidade como torcedoras. Credibilidade que também se vê diminuída por conta da pouca experiência feminina na prática do jogo, afinal comparado aos homens não é grande o número de mulheres que praticam futebol como profissional ou mesmo amadoras.

As narrativas sobre futebol e masculinidades é o tema central da pesquisa etnográfica realizada por Bandeira e Sffner (2018). Para os autores, a construção identitária do masculino se confunde com a construção identitária torcedora (das práticas do torcer). Nesse contexto, as mulheres são invisibilizadas e as feminilidades não são questionadas com a mesma força da masculinidade — as hierarquias ainda estão bastante marcadas. Para os autores, o futebol é um espaço em que mídia, torcedores e clubes, basicamente grupos compostos apenas por homens, trabalham para que os valores e as representações do esporte sejam associados a masculinidades. Assim, nas arquibancadas, o que se faz é visto como ―cultura masculina‖, ―coisa de homem‖, um imaginário construído pela associação do esporte com a masculinidade — ―o gênero funciona como atravessador das instituições‖ (BANDEIRA; SFFNER, 2018, p.293). Sendo assim, quando se aprende a torcer os significados pré-existentes nesse espaço são predominantemente ligados ao masculino.

Bandeira e Sffner (2018, p. 293) acreditam que o aumento visível da presença das mulheres nos estádios

não significa uma imediata alteração nas construções generificadas que acontecem neste contexto cultural específico. Em alguma medida, tanto os corpos normativamente representados como masculinos, quanto aqueles representados como femininos, estariam envolvidos nessa produção de masculinidades.

A constituição do estádio como um espaço legitimado para homens é histórica, além disso, esse espaço representa para o torcedor um local de aprendizado, institucionalizando práticas e (re)produzindo masculinidades.

Diferentes conteúdos nos estádios são didaticamente ensinados através de cânticos, xingamentos e performances que acabam produzindo uma lógica de atitudes indispensáveis para a apreciação estética dos eventos nesse ambiente‖ (BANDEIRA; SFFNER, 2018, p. 293).

É ―bem visto‖, nesse espaço, aquele que (re)produz os imaginários do masculino. Dessa maneira, a participação das mulheres continua sendo vista de maneira caricata pelos homens, como apontou os pesquisadores em seus estudos.

Não se vê questionamentos quanto às práticas legitimadas ao masculino, elas são naturalizadas e, com isso, associadas aos homens. Por sua vez, eles são vistos como os conhecedores das regras, os entendedores do jogo, apontando o que pode e o que não pode ser feito por aqueles e aquelas que estão à margem, entre eles, as mulheres. Dessa maneira, como apontam Bandeira e Sffner (2018, p. 298)

esse conhecimento e essa legitimidade do lugar masculino nas práticas torcedoras nos estádios de futebol, do jornalismo esportivo e da atuação no futebol profissional lhes dá, também, a possibilidade de produzir representações sobre as mulheres que tentam atuar nesse espaço. A beleza feminina é naturalizada e poderá ser ‗positiva‘ quando embeleza o estádio ou quando é a única coisa que ‗salva‘ uma arbitragem ruim.

A comparação é marcada pelo conhecimento do homem; a mulher que entende de futebol, no máximo, pode saber o mesmo que um homem, mas sem credibilidade para saber mais. As masculinidades e as feminilidades são complementares, por isso, legitimar a presença das mulheres é como desestabilizar um lugar naturalizado dos homens, culminando em manifestações atravessadas de machismo e estereotipadas (BANDEIRA e SFFNER, 2018). Contudo, a presença das mulheres é o que coloca em questão a representação dessas masculinidades, sobretudo quando, timidamente, elas organizam espaços como o Encontro de Mulheres de Arquibancada, em que elas tomam

a palavra, criando uma possibilidade de trazer à tona representações das imagens de si — que elas acreditam representar no futebol.