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Ethos de Flaubert por ilustres

2. Flaubert e seus ethé

2.2. Flaubert sujeito-comunicante-autor

2.2.4. Ethos de Flaubert por ilustres

Selecionamos para essa seção um conjunto de fragmentos de opiniões de pessoas ilustres no universo da Literatura que nos ajudam a construir, eles também, o ethos de Flaubert sujeito-comunicante-autor. Comecemos por Sarraute (1996), teórica, crítica literária e escritora do Nouveau Roman francês, segundo a qual o nome de Flaubert traduz-se como unanimidade: ele é o mestre de todos os literatos, o precursor do romance atual, ponto indiscutível. Ainda segundo a escritora, Flaubert responde, com sua obra, às preocupações e às exigências dos escritores de hoje. Por se preocupar com o fazer literário, dar ênfase aos aspectos formais, estruturais do romance, dedicar-se à linguagem, ao discurso, Flaubert é tido, por Sarraute, como escritor pioneiro, avant-garde do romance moderno:

Livres sur rien, presque sans sujet, débarrassés des personnages, des intrigues et de tous les vieux accessoires, réduits à un pur mouvement qui les rapproche d’un art abstrait, n’est-ce pas là tout ce vers quoi tend le roman moderne? Et comment, après cela, douter que Flaubert en est le précurseur ? (SARRAUTE, 1996, p. 1640)120

Assim como para Sarraute, Flaubert é tido por Llosa como um precursor, sobretudo devido à sua reflexão sobre a importância absoluta da forma. Segundo Llosa (1979), que escreveu A Orgia Perpétua: Flaubert e Madame Bovary, Flaubert transformou em tema de romance o mundo dos homens medíocres e os espíritos desprezíveis e, concomitantemente, mostrou que na ficção tudo depende essencialmente da forma. Llosa, em um movimento catártico, constrói seu próprio ethos, ao construir os ethé de Flaubert e de sua obra. A Orgia Perpetua é uma crítica, e, ao mesmo tempo, uma autocrítica.

Se, por um lado, Llosa se identifica com o ethos de Flaubert autor, sobretudo no que diz respeito a forma de ver, ler e compor o romance, por outro lado, ele, ao criticar Gustave em sua forma de ver o mundo, acaba traçando seu ethos de sujeito-comunicante:

                                                                                                               

120 Livros sobre nada – quase sem assunto, sem personagens, intrigas e todos os velhos acessórios –, reduzidos a um puro movimento que os aproxima de uma arte abstrata; não apontaria tudo isso para o romance moderno? Daí, como duvidar que Flaubert seja o precursor do romance moderno?

Flaubert era um profundo egoísta no que diz respeito à injustiça social, e, ao longo de sua vida, não se preocupou senão com os problemas que diziam respeito a sua pessoa e à literatura. Com o pretexto de odiar o burguês, odiava e desprezava os homens; amava a literatura porque lhe parecia uma maneira de escapar à vida e de vingar-se dela, e no que se refere à história era terrivelmente pessimista: o futuro sempre seria pior que o presente, que era pior que o passado, e nada tinha remédio, fato que, ademais, não lhe parecia injusto, porque os homens não mereciam outra coisa. Este ceticismo catastrófico e arrogante sobre o destino humano é, talvez, a recôndita explicação de sua teoria da impassibilidade, sua defesa de uma arte indiferente e objetiva, na qual tudo acontece sem emoção nem intervenção alheia, de uma literatura sem moralidade. (LLOSA, 1979, p. 187)

Nos delineamentos dos ethé de Flaubert feitos por Sarraute e Llosa, constata-se que o autor é um talentoso escritor, que revolucionou a forma de escrever, que concebeu sua obra, tida como referência de literatura universal, harmonizando a estrutura e o tema composto de um universo sórdido, povoado por mediocridades e estupidez.

Cabe registrar que o posicionamento de Sarraute e Llosa não coincide completamente com o de Sartre (1971), que escreveu a obra inacabada, toda ela sobre Flaubert, em três volumes – L’Idiot de la famille –, na qual critica Flaubert de ter sistematicamente distorcido a realidade social de sua época, em uma escolha neurótica que obedece a todas as motivações pessoais assim como ideológico-literárias. Para Sartre, Flaubert teria se tornado o grande escritor do Segundo Império porque, em sua juventude, escolheu o devaneio e a misantropia universal.

Em entrevista concedida a Clément e a Pingaud, Sartre (1980a, p. 33-37), afirma que:

Flaubert se relisait fort mal. Il y avait des choses qu’il ne comprenait pas. On ne peut pas dire qu’il était bête, mais on ne peut pas dire qu’il était intelligent. C’était autre chose; c’était une intelligence très moyenne, avec, par moment, des vues d’une grande pénétration. […] Il n’était jamais vrai dans son rapport avec les autres, et les gens étaient gênés autour de lui sans savoir exactement pourquoi. […] Je suis très sévère avec lui, pourquoi ne le serai-je pas ? […] Il n’est pas sympathique, il est ridicule, mais il a écrit

Madame Bovary. […] Je n’aime pas Flaubert. […] Quand je disais là ce ne sont pas des

insultes, ce sont des regrets.”121

                                                                                                               

121 [...] Flaubert se relia muito mal. Haviam coisas que ele não entendia. Não podemos dizer que ele era estúpido, mas não podemos dizer que ele era inteligente. Era outra coisa; era uma inteligência mediana, com, em alguns momentos, visões de grande penetração.[...] Ele não era jamais verdadeiro em suas relações com os outros, e as pessoas eram incomodadas por ele sem saberem exatamente porque. [...] Sou muito severo com ele, porque não o seria? [...] Ele não é simpático, ele é ridículo, mas ele escreveu

Ainda que considere Madame Bovary uma obra prima, Sartre, nesse fragmento, (re)compõe o ethos de Flaubert sujeito-comunicante-cidadão amalgamado ao ethos de

sujeito-comunicante-autor, o ethos de uma pessoa antipática e desagradável.

Nessa mesma entrevista, Sartre liga a imagem de Flaubert à imagem de Emma Bovary. Para o autor:

En fait, [Flaubert] était sans aucun doute androgyne : Emma, c’est lui, mais pas au sens où on le dit d’après lui-même (‘Madame Bovary c’est moi.’) C’est dans les fantasmes, les images. C’est une chose particulière, une manière d’être, de concevoir le monde. […] Chez Flaubert, j’ai à faire a un vrai androgyne. Un drôle d’androgyne, tout est toujours tellement grossier chez lui […] Madame Bovary, c’est une vrai femme, malgré le machisme de Flaubert. […] Il y a là un sens de la femme chez un machiste. (SARTRE, 1980a, p. 34/37)122

Sartre, nesse excerto, liga os ethé de Flaubert sujeito-comunicante ao ethos da personagem Emma Bovary, mostrando suas semelhanças, as influências de um no outro. Antes de fecharmos esse capítulo sobre os ethé de Flaubert sujeito-comunicante, propomos tratar de mais uma faceta de sua identidade já anunciada por Sartre, aquela ligada ao ethos de Emma Bovary. Cabe ressaltar que não é nossa intenção nesse momento tratar do ethos de Emma propriamente dito. Para isso, dedicamos um outro capítulo.

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