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Flaubert e seu ethos ligado ao de Emma Bovary

2. Flaubert e seus ethé

2.2. Flaubert sujeito-comunicante-autor

2.2.5. Flaubert e seu ethos ligado ao de Emma Bovary

Para um grande número de críticos e biógrafos, é natural, sintomática, a confluência entre os ethé de Flaubert sujeito-comunicante e os de sua personagem Emma Bovary. Os ethé de ambos ecoam uns nos outros. Para Aurégan (1991, p. 45), por exemplo:

                                                                                                               

122 Na verdade, [Flaubert] era, sem dúvida, andrógino: Emma, é ele, mas não no sentido do que ele diz de si mesmo (‘Madame Bovary c'est moi’.) É nas fantasias, nas imagens. [...] É uma coisa particular, uma maneira de ser, de conceber o mundo. [...] Em Flaubert, vejo um verdadeiro andrógino. Um andrógino esquisito, tudo é, o tempo todo, tão grosseiro nele [...] Madame Bovary, é uma verdadeira mulher, apesar do machismo de Flaubert. [...] Há ali um sentido da mulher em um machista.

Emma est un double de son créateur. Comme l’artiste, elle cherche à dépasser par l’imagination les limites que lui impose le réel; comme lui, elle occupe une place marginale dans la vie sociale, dépouillée de tout pouvoir économique et politique. Mais le créateur donne forme à ses rêves, il les écrit et Emma n’est qu’une lectrice, simple consommatrice passive des rêves des autres. En cela elle est le contraire même de l’écrivain.123

Com base nessas comparações, Aurégan (1991) conclui que Flaubert, ao construir a personagem, criou Emma à sua imagem e semelhança, e que a vida de Emma, com seu fracasso e seu suicídio, é a forma como o autor se desprende de seu passado “romântico”. Em uma associação durável e reciprocamente proveitosa, os ethé de Flaubert e de Emma se (con)fundem.

Nessa mesma linha de raciocínio, Baudelaire (1948, p. 239), vê, na simbiose entre Flaubert e Emma, uma doação reciproca de sangue, fazendo com que Emma possua em seu corpo o sangue de Flaubert e, ao mesmo tempo, que Flaubert possua o sangue de Emma: “[Flaubert] n’a pas pu ne pas infuser un sang viril dans les veines de sa créature,

et … Madame Bovary, pour ce qu’il y a en elle de plus énergique et de plus ambitieux, et aussi de plus rêveur, Madame Bovary est restée un homme.”124 Tal simbiose é confirmada

pelo próprio Flaubert, ao afirmar que:

Les personnages imaginaires m’affolent, me poursuivent, - ou plutôt c’est moi qui suis dans leur peau. Quand j’écrivais l’empoisonnement de Mme Bovary j’avais si bien le goût d’arsenic dans la bouche, j’étais si bien empoisonné moi-même que je me suis donné deux indigestions coup sur coup, - deux indigestions réelles car j’ai vomi tout mon dîner.125 (FLAUBERT, 1991, p. 562)

Desse modo, percebemos uma via de mão dupla na escrita de Flaubert, o que nos ajuda a, mais uma vez, compor seus ethé. O autor se utiliza dos sintomas de suas personagens                                                                                                                

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Emma é um duplo de seu criador. Assim como o artista, ela procura ultrapassar, pela imaginação, os limites que o real lhe impõe; assim como ele, ela ocupa um lugar marginal na vida social, privada de todo o poder econômico e político. Seu criador, entretanto, dá forma aos seus sonhos, ele os escreve e Emma é somente uma leitora, mera consumidora passiva dos sonhos dos outros. Nisso, ela é o oposto do escritor. 124

[Flaubert] não foi capaz de deixar de injetar um sangue viril nas veias de sua criação, e ... Madame Bovary, pelo que há nela de mais enérgico, mais ambicioso e mais sonhador, Madame Bovary permaneceu um homem.

125 Meus personagens imaginários me afetam, me perseguem, ou melhor, eu é que estou neles. Enquanto descrevia o envenenamento de Emma Bovary, tinha o sabor de arsênico na boca, e estava eu próprio envenenado de tal modo que fui acometido de duas indigestões consecutivas muito reais, pois vomitei todo o meu jantar.

para justificar seus próprios, e, em um caminho inverso, se vale de seus próprios sintomas para compor os ethé de Emma, ainda que ele negue, textualmente, em uma carta a Leroyer de Chantepie, essa relação e diga exatamente o contrário:

Madame Bovary n’a rien de vrai. C’est une histoire totalement inventée; je n’y ai rien mis

ni de mes sentiments ni de mon existence. L’illusion (s’il y a en une) vient au contraire de l’impersonnalité de l’œuvre. C’est un de mes principes, qu’il ne faut pas s’écrire. (FLAUBERT, 1980, p. 691)126

Como podemos perceber, em uma espécie de circularidade, de espelhamento ou de eco, os ethé de Flaubert sujeito-comunicante dão vida aos ethé de Emma e essa, por sua vez, ajuda a delinear os ethé de Flaubert.

Em conformidade com todos os testemunhos colhidos nesse capítulo, constatamos que não há “um” Flaubert, mas vários Flaubert, que emergem de cada leitura de cada um dos que convidamos para compor esse capítulo, todas elas ligadas a uma conjuntura psico-sócio-histórica. Reiteramos, por fim, o que diz Pingaud (1980) a esse propósito:

[...] Rares sont ceux qui prennent Flaubert en bloc: pour Proust ou pour Kafka, Flaubert, c’était essentiellement L’éducation. Pour Sartre comme pour James, c’est Bovary. Aujourd’hui l’accent se déplacerait plutôt vers Bouvard et La Tentation. Ainsi, il y a des Flaubert qui se succèdent depuis un siècle.127 (PINGAUD, 1980, p. 1).

Vimos nesse capítulo que Flaubert é o EU-comunicante responsável pela elaboração do texto, pelas escolhas lexicais, pelas ideias propostas. É ele quem estabelece o contrato comunicativo e se utiliza de estratégias enunciativas para propor os sentidos de seus textos. Segundo Charaudeau (2008, p. 49),

[...] não há relação de transparência entre EUe e EUc. EUe é somente uma representação linguageira parcial de EUc. O EUe é apenas uma máscara de discurso usada por EUc. [Há] um EUe que mascara a intencionalidade do EUc [...] o EUe oculta o EUc em maior

                                                                                                               

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Madame Bovary não tem nada de verdadeiro. É uma história totalmente inventada; não coloquei na obra nada de meus sentimentos nem de minha existência. A ilusão (se existe alguma) vem, ao contrário, da impessoalidade da obra. Esse é um dos meus princípios, o de não me inscrever nela.

127 Raros são aqueles que tomam Flaubert em bloco: para Proust ou para Kafka, Flaubert era, essencialmente, A educação [sentimental]. Para Sartre, assim como para James, Flaubert era [Madame]

Bovary. Hoje, a ênfase se descolaria mais para Bouvard [et Pécuchet] e para A Tentação [de Saint-Antoine].

ou menor grau. [...] Em todo caso, nunca afirmaremos que Eue é totalmente transparente com relação a EUc.

Nossa proposta nesse capítulo foi o de retirar, ainda que parcialmente, essa máscara e revelar, ao menos um pouco, sua identidade, seu ethos para, com isso, mostrar seus desdobramentos e suas relações que essa instância enunciativa estabelece com as demais no romance Madame Bovary.

Valendo-nos mais uma vez da metáfora utilizada por Charaudeau, e aplicando-a a Flaubert, o sujeito-comunicante, ainda que coberto (e justamente utilizando-se dessa cobertura) pela máscara dos sujeitos-enunciadores (narrador e personagens), se revela. Dito de outra maneira, valendo-se da voz do narrador128e das demais personagens,

Flaubert profere seu discurso, escreve sua obra, registra sua visão de mundo e, ao fazer isso, se mostra, constrói seus ethé.

Ressaltamos, no final desse capítulo, o caráter plural, multifacetado e até mesmo, por vezes, contraditório de Flaubert: crítico, doente, melancólico, produtivo, pessimista, romântico, mas também realista, revoltado, incompreendido... eis algumas imagens que espelham Flaubert, ethé que ecoam suas múltiplas identidades.

                                                                                                               

128 Cabe registrar que, mesmo conscientes de sua importância na obra, por questões didáticas e estruturais, decidimos por não nos debruçarmos, nessa dissertação, sobre o complexo narrador do romance Madame

Bovary, sua constituição, suas funções, seus ethé. Sugerimos, para suprir essa falta, a leitura da obra de

CAPÍTULO III

Madame Bovary c’est moi!129

(FLAUBERT)                                                                                                                

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