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2. Flaubert e seus ethé

2.2. Flaubert sujeito-comunicante-autor

2.2.3. Flaubert e o Realismo

Nessa seção, discutimos o ethos de Flaubert, composto a partir de reflexões sobre a sua inscrição no movimento literário Realismo. Antes, porém, faz-se necessário apresentar, ainda que suscintamente, algumas questões sobre essa escola literária. Em primeiro lugar, cabe dizer que não é nossa intenção discutir questões relativas à problemática de gênero e subgêneros, seja ele discursivo, textual ou literário, e tampouco tratar das características específicas do gênero literatura e seus subgêneros. Em segundo lugar, acreditamos ser suficiente montar um panorama sobre a escola literária Realismo que atenda aos nossos objetivos, ou seja, que nos ajude a elucidar o ethos de Flaubert dentro desse gênero no qual os críticos geralmente o classificam.

É comum lermos que o Realismo é definido a partir de alguns traços temáticos comuns a um grupo de escritores, ligados a um momento histórico especifico (segunda metade do século XIX). Como exemplo desses traços, podemos citar: cientificismo, impessoalidade, imparcialidade, neutralidade, impassividade, descrições predominantemente detalhadas, objetivas e frias de personagens e cenários que demonstram desequilíbrios sociais e morais, reação ao Romantismo e suas imaginações, subjetividades e sentimentalismos, denúncia das injustiças sociais, desprezo pela burguesia, retrato fiel do cotidiano construído a partir da realidade circundante do autor, linguagem clara e equilibrada. Complementando essa lista já extensa, Llosa enumera aquilo que ele considera características próprias da escrita de Flaubert: “[...] o método flaubertiano: esta lenta, escrupulosa, sistemática, obsessiva, teimosa, documentada, fria e ardente construção de uma história. (LLOSA, 1979, p. 60) [...] Flaubert é um dos escritores mais lúcidos a respeito deste processo de conversão do real em fictício” (LLOSA, 1979, p. 73).

Em seu manual didático, Nicola (1993, p. 158) registra que “Madame Bovary, de Gustave Flaubert, é considerado o primeiro romance realista da literatura universal”. Faraco e Moura (1995, p. 219) coadunam com a visão de Nicola, ao afirmarem que “A publicação do romance Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert, na França, é um dos marcos importantes do realismo”. Para citarmos um exemplo de manual francês,

temos em Rincé & Lecherbonnier (1986, p. 427) o seguinte depoimento: “Flaubert

n’aura jamais vraiment fini avec ses fantasmes romantiques, parce que son réalisme n’est pas seulement l’antidote d’un romantisme ‘viscéral’: il en est aussi le paradoxal aboutissement”113.

Cabe ressaltar que Flaubert não gostava dos críticos e tampouco de ser classificado em escolas literárias. Em carta a Colet, o autor registra sua aversão por aqueles que “criticavam” sua obra: “Ses critiques (gens de lettres) sont des putains qui

finissent par ne plus jouir. Ils traitent l’art comme celle-ci les hommes, lui sourient tant qu’ils peuvent, mais ne l’aiment plus” 114 (FLAUBERT, 1980, p. 105). Flaubert registra,

em vários momentos, seu desgosto em ser “enquadrado” seja como escritor realista, seja como romântico. Fiquemos somente com dois desses momentos: “On me croit épris du

réel, tandis que je l’exècre; car c’est en haine du réalisme que j’ai entrepris ce roman”

(FLAUBERT, 1980, p. 643)115. “Mais je m’abîme le tempérament à tâcher de n’avoir pas d’école! A priori, je les repousse toutes. […] Je recherche, par-dessus tout, la Beauté, dont mes compagnons sont médiocrement en quête” (FLAUBERT, 1997, p. 1000)116.

Retomando todas essas características que definem o movimento Realismo e as “aplicando” à obra de Flaubert, não nos surpreende o fato de o autor ser tachado de

realista pelos críticos. Ainda que ele deteste o real e não aceite o título de “mestre do

realismo”, se seguirmos os manuais e a divisão da literatura em gêneros, percebemos que todas as características acima listadas definem perfeitamente a obra de Flaubert e, por conseguinte, seu ethos de sujeito-comunicante-autor.

Dando sequência ao delineamento do ethos de Flaubert a partir de seu pertencimento a uma escola literária, citamos Auerbach (1966, p. 132), segundo o qual,

                                                                                                               

113 Flaubert não acabou com seus fantasmas românticos, porque seu realismo não é apenas o antídoto de um romantismo ‘visceral’: ele é também o resultado paradoxal.

114 Esses críticos (homens das Letras) são como putas que não gozam mais. Eles tratam a arte como se ela fosse igual a eles, lhe sorriem enquanto podem, mas não a amam mais.

115 Dizem que sou apaixonado pelo real, enquanto que, na verdade, eu o execro, pois é somente por ódio ao realismo que escrevi esse romance.

116

Mas faço o possível para não ter escola! A priori, eu rejeito todas elas. [...] Estou procurando, acima de tudo, a beleza, pela qual meus companheiros estão procurando mal.

“In Flaubert realism becomes impartial, impersonal, and objective”117 ; e Aurégan (1991,

p. 17), que endossa a visão de Flaubert a respeito da relação entre autor e obra:

S’abstenant de juger les personnages ou les événements qu’il [Flaubert] présente, le récit acquiert une sorte d’objectivité impersonnelle, le fameux ‘regard clinique’ qu’évoquait Sainte-Beuve. Ainsi mis à distance, décrit en extériorité, privé de cette solidarité qui unissait le créateur à sa création, le monde est vidé de sa signification, exhibant sa laideur et son néant. C’est cette impartialité affectée, ce refus de juger ses personnages que le procureur Pinard reprochera à l’auteur de Madame Bovary en déclarant : ‘l’œuvre au fond n’est pas morale.’118

Com base nos fragmentos acima, vemos que há concordância entre vários críticos a respeito de Flaubert e sua forte ligação com o movimento literário Realismo, ou melhor dizendo, com o ethos de autor-realista. Ainda que o autor negue sua inserção na escola

realista, vemos, através da escrita do próprio autor, que o real é seu campo de pesquisa

literário e que a realidade se funde nele.

Finalizando essa seção, vale registrar mais um depoimento que nos possibilita retomar o paralelo entre o trabalho de escritura de Flaubert, ou seja, o do EUc autor, com sua insatisfação com o mundo, ou seja, o do EUc cidadão:

Flaubert n’a cessé de révéler la médiocrité et la laideur du réel ainsi que l’instinct d’imbécillité enraciné dans la société de son époque. […] La faillite de l’intelligence, les sottises individuelles et collectives ne sont plus alors situées historiquement mais acquièrent un aspect universel comme si la Bêtise constituait l’essence même de l’homme. Dans sa vision pessimiste et nihiliste qui a recours à l’humour grotesque, l’écrivain déshumanise l’être humain et désacralise l’existence.’ (EVRARD & VALETTE, 1999, p. 45)119

                                                                                                               

117 O realismo em Flaubert torna-se imparcial, impessoal e objetivo. 118

Abstendo-se de julgar as personagens ou os acontecimentos que ele [Flaubert] apresenta, a narrativa adquire uma espécie de objetividade impessoal, o famoso ‘olhar clínico’ evocado por Sainte-Beuve (1927). Assim, colocado à distância, descrito em sua exterioridade, privado dessa solidariedade que unia o criador à sua criação, o mundo é esvaziado de sua significação, exibindo sua feiura e seu niilismo. É essa imparcialidade afetada, essa recusa em julgar suas personagens que Pinard, procurador de justiça, acusou o autor de Madame Bovary, declarando: ‘a obra, no fundo, não é moral.’

119 Flaubert não parou de revelar a mediocridade e a feiura do real, assim como o instinto de imbecilidade enraizado na sociedade de sua época. [...] A falta de inteligência, as loucuras individuais e coletivas não são mais situadas historicamente, mas adquirem um aspecto universal como se a Estupidez constituísse a própria essência do homem. Em sua visão pessimista e niilista na qual usa o humor grotesco, o escritor desumaniza o ser humano e dessacraliza a existência.

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