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Eu e tu, narrador e narratário

3. Alguns desdobramentos teóricos: sujeitos

3.1. Nota introdutória

3.3.1. Eu e tu, narrador e narratário

Vejamos, ao começo, narrador como alguém que é “dono da voz”, o que é um entendimento muito corrente desde Genette. O narrador não é quem organiza o texto: ele é um sujeito responsável pelo enunciado (uma unidade do texto – então há ainda, nesse caso, alguém por trás do narrador que é responsável pelo texto). Investiguemos a possibilidade dos enunciados demandarem um sujeito “enunciador”, e o que isso significaria. Primeiro, para o caso de textos narrativos verbais, é bastante simples defender a existência de um narrador como enunciador e situá-lo teoricamente. Outros já forneceram boas bases: o linguista Émile Benveniste (1971, pp. 217-230), por exemplo, cujas reflexões tomaremos como ponto de partida.

Pensemos primeiro que um termo como “água” possui um significado mais ou menos objetivo e universal (dentro de uma certa comunidade ou sociedade): os falantes da língua irão todos compreender um conteúdo semelhante, é possível inclusive dar uma definição clara e fixa em um dicionário para “água”. Por outro lado, um termo como “estar” é relativo: depende de um pronome para adquirir seu sentido completo. É preciso dizer “eu estou” para que “estar” adquira sua significação. Ou é preciso conjugar o verbo como “estou”, de modo que, mesmo que o termo “eu” não apareça, a primeira-pessoa fique subentendida – isto é, “eu estou” não significa a mesma coisa que “ele está”, ou que “eu estava”, ou que “ela estaria”: cada pronome e conjugação faz o “estar” assumir uma significação diferente. Da mesma forma, “daqui a pouco” é também um termo definido conforme um tempo presente estabelecido a partir de um pronome, mas neste caso necessariamente do pronome “eu”. Pois justamente: colocações como “agora”, “aqui”, “daqui a pouco”, “amanhã”, precisam se relacionar com um tempo e espaço específicos para tornarem-se significantes, necessariamente um espaço e tempo que se encontra no presente de algum sujeito para quem esses termos apontam. Logo: “vem aqui”, mas “aqui” onde? Aqui onde eu, que digo “vem aqui”, me encontro. Termos que funcionam assim vêm sendo chamados de “dêiticos”. Concisamente, dêiticos são termos possuidores de uma dimensão vazia, cuja significação demanda o preenchimento pelo sujeito que enuncia o texto ou da situação em que essa

81 enunciação se dá58. Assim, em uma frase como “hoje acordei tarde”, o dêitico “hoje” só adquire sua significação em relação a quem organiza este texto: hoje em relação a quem? Em relação a quem diz “hoje”, logo fui “eu” quem acordei tarde. Enquanto um termo como “água” ou “casa” faz referência à noção de água ou de casa, dêiticos como “hoje” ou “aqui” fazem referência ao “eu” que enuncia esses dêiticos.

Ora, a noção de “eu” é extremamente egoísta. Isso chega ao ponto de que, por exemplo, em uma frase como “ele vai comer daqui a pouco”, o termo “daqui a pouco” não se define em relação ao termo “ele”, mas em relação ao “eu” que está organizando esta frase, ainda que o termo “eu” sequer apareça. O mesmo vale para “amanhã ele vai sair para passear”. Poderíamos entender ambas como “[eu digo que] ele vai comer daqui a pouco” e “[eu digo que] amanhã ela vai sair para passear”, de modo que o “daqui a pouco” é “daqui a pouco” em relação ao “eu” e não em relação ao “ele”, enquanto o “amanhã” é também “amanhã” em relação ao “eu” e não em relação ao “ela”. O “eu” está sempre presente nos enunciados dos textos narrativos verbais, explícita ou implicitamente; sem o “eu”, a significação não é possível. Não foi à toa que o Gérard Genette, quando atacou a terminologia de “ponto de vista” e propôs seu próprio conceito, o de “focalização”, para esclarecer algumas coisas, argumentou que falar de narrações sendo feitas “em primeira pessoa” ou “em segunda pessoa” não fazia sentido porque, primeiro, a presença da “pessoa” do narrador é “invariante porque o narrador pode estar em sua narrativa [. . .] apenas em ‘primeira pessoa’” (1980, p. 244; tradução nossa59) e, depois, “à medida em que o narrador pode a qualquer momento intervir enquanto tal na narrativa, toda narração é, por definição, para qualquer intenção e propósito apresentada em ‘primeira pessoa’” (1980, p. 244). Diríamos que em textos narrativos verbais há sempre um “eu” junto aos enunciados.

Assim, ainda nas colocações do Benveniste, o “eu” aparece como uma noção dupla: por um lado, “eu” como aquele que diz “eu” enquanto pessoa inserida na História (no “mundo real”), e por outro, “eu” como aquele de quem o discurso fala. É notável: o trecho “eu estou

58 Quando primeiro definimos enunciado, a noção apareceu como uma do texto narrativo, e não só do

texto. Aqui, ela permanece com o mesmo uso. Estamos pensando as palavras e frases sendo usadas como exemplo enquanto unidades de um texto narrativo que atualizam um enredo e ao mesmo tempo trazem uma fábula. Para nós, enunciado ainda é uma noção do texto narrativo e não do texto – o tópico, entretanto, merece mais investigação.

59 Do original: “the presence (explicit or implicit) of the "person" of the narrator. This presence is

invariant because the narrator can be in his narrative (like every subject of an enunciating in his enunciated statement) only in the "first person"- except for an enallage of convention as in”.

82 com fome; daqui a pouco vou comer alguma coisa” se caracteriza por ser simplesmente eu falando sobre eu. Eu é tanto quem diz “eu estou com fome” quanto o objeto do discurso enunciado por si próprio: eu falando sobre eu. Portanto, uma definição de “eu” seria algo como: “eu” é tanto o indivíduo enunciando um discurso contendo “eu” quanto a “referência” desse discurso”; é tanto quem fala quanto de quem se fala.

“Tu” também é fundamental – ainda com Benveniste. Só uso o termo “eu” com alguém que reconheço como “tu”. Cada uso do “eu” afirma o não-eu, ou então ninguém precisaria dizer nada. As estruturas da língua podem ser descritas e são identificadas por vários falantes: e todos eles, quando falam, assumem-se como “eu”; mas, se só um pode ser o “eu” de um dado discurso, então, ao mesmo tempo, o termo mantém uma abertura de poder ser preenchido por qualquer outro que o venha a proferir. Assim, quando alguém se refere a outro alguém como “tu”, afirma através deste pronunciamento também a possibilidade desse “tu” referir-se a si mesmo como “eu” e ao outro como “tu”: as posições são sempre alternáveis, mas usar um é afirmar o outro. Enquanto o “eu” se identifica como aquele que usa o “eu”, se identifica também como o oposto de todos aqueles que já não estão usando o “eu” mas que podem vir a usá-lo: e os chama de “tu”.

“Eu” e “tu” seriam chamados de bom grado por nós, dentro de uma teoria de Narratologia, respectivamente, por narrador e narratário: aquele que preenche o papel do eu nos enunciados e um texto narrativo e aquele que preenche o papel do tu, que também fica sempre implícito – ou ainda, o texto só é enunciado porque há alguém que não é seu narrador, alguém que é tomado como pressuposto por ele: o narratário. É notadamente um fenômeno dos textos narrativos que precisa ser explicado pela Narratologia – pelo menos dos textos narrativos verbais. Devemos verificar a validade dessas noções (dêitico, eu, tu, narrador, narratário) para descrever textos narrativos não-verbais também, ou então elas não têm lugar na Narratologia.

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