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Um sujeito que organiza o texto para outro sujeito

3. Alguns desdobramentos teóricos: sujeitos

3.1. Nota introdutória

3.2.1. Um sujeito que organiza o texto para outro sujeito

É, à medida em que aceitamos a evidente generalização que esse termo traz, consensual em Narratologia hoje – e desde Aristóteles, como vimos – que textos narrativos possuem algum tipo de sujeito produtor ou organizador50. Altera-se, é claro, a maneira que esse sujeito se insere dentro do sistema explicativo e como acredita-se que sua atuação de fato se dá. Geralmente fala-se em “narrador” (ver, por exemplo, FLUDERNIK, 2009), mas há alguma discussão com as noções de “autor” (e.g., CHATMAN, 1978), e ainda uma outra de “autor implícito”51 (que o BOOTH, 1983, sugere, mas o GENETTE, por exemplo, 1980,

não chega a adotar), ou a noção platônico-aristotélica de “poeta”, ou a de “cineasta

hipotético” (do ALBER, 2010), por aí vai: são muitos nomes. Cada termo possui seu

respectivo valor explicativo quando inserido dentro do sistema em que foi sugerido e assume lá uma grande capacidade explicativa. Entretanto, se por um lado alguns dos termos são apenas nomes diferentes para o mesmo fenômeno, outros nomeiam fenômenos diferentes e chegam a ser excludentes, de modo que ao aceitar um nega-se vários outros (por exemplo, a noção de cineasta hipotético nega a de autor implícito, mas a de autor não nega a de poeta –

50 Alguns pontos de resistência a esse alegado consenso – que é, como dissemos, simplificador de uma

questão cujo debate poderia ser alvo de um livro inteiro – seriam, por exemplo, as concepções de que as histórias contam a si mesmas. Esta ideia possui alguma relevância para a narratologia cinematográfica, sobretudo pelos estudos de David Bordwell (SANTIAGO JÚNIOR, 2004), mas não podemos citar tantos nomes nem dizer que a proposta convenceu muitos narratólogos; ela também não implica em abrir mão da noção de autor ou cineasta. Sobre o consenso do narrador, ver por exemplo, a discussão sobre a definição de “narrativa” que faz a Monika Fludernik no primeiro capítulo do Introduction to Narratology, 2009, pp. 1-7, pela qual passaremos imediatamente.

51 Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes preferem traduzir como “autor implicado”. Segundo eles, no

Dicionário de Teoria Narrativa, autor implicado é um “Conceito problemático e complexo, objeto de

discussão entre os estudiosos da teoria da narrativa, a começar pela expressão que em português o designa: vertida do inglês implied author, ela aparece normalmente traduzida por autor implícito, denominação ambígua a que Genette prefere autor implicado, por melhor corresponder ao pensamento de W. C. Booth, que propôs e descreveu este conceito, sem que com esta nova tradução se atraiçoe a expressão original em língua inglesa (particípio passado do verbo to imply, ‘implicar’, ‘insinuar’)” (1988, p. 17; grifos dos autores). Em outro texto, Carlos Reis também chega a dizer que a expressão do Booth, implied author, é “não raro defeituosamente traduzido por autor implícito” (2006, p. 32). Quando usamos, aqui, “autor implícito” ao invés de “autor implicado”, estamos portanto cientes desta crítica. É que preferimos traduções que encontrem termos que mais se aproximem da equivalência conforme seu uso contextual, a despeito de traduções literais. É verdade que “autor implicado” seria uma tradução literal melhor, mas quem é que fala que alguma coisa ficou “implicada” em português brasileiro? É muito mais comum dizer que uma coisa “ficou implícita”, e isso já dá conta do que queria dizer o Booth: a figura de um autor conforme construída no texto pelo próprio autor, que fica implícita para nós leitores a partir das escolhas que foram tomadas por ele e que podemos inferir dos elementos textuais.

73 conforme o uso dos autores citados acima). Nosso objetivo nesta seção é discutir sobre nossa hipótese de que textos narrativos, por serem textos, dão a entender que são organizados por algum sujeito, buscando conciliar o que essas diferentes propostas de conceitos já feitas por outros autores trazem quando inseridas dentro das noções que já sugerimos. Qual noção poderíamos usar para falar desse sujeito organizador?

Um importante debate que omitimos até aqui – apesar de ter sido aludido na Introdução – é o da tradição germânica de pensamentos sobre narrativas, muito marcada por Franz Stanzel e Eberhard Lämmert, e que difere significativamente da tradição francófona- anglófona com que viemos dialogando52. A Narratologia germânica (vulgo Erzähltheorie),

fundamentada na distinção do Goethe entre os gêneros dramático, épico e lírico, num movimento que remete ainda ao pensamento aristotélico, postula uma definição de “narrativa” muito fechada ao gênero épico – pois traz uma "intensa concentração na atividade do narrador ficcional" (Darby, 2001, p. 836): o conceito determinante para a narrativa, no caso germânico, é o de narrador. “Narrativa é portanto definida como ‘enredo mais narrador’,” coloca a Fludernik (2009, p. 5), enquanto o drama é definido como algo que possui enredo mas não narrador, e o lírico como não possuidor de enredo. Fludernik oferece um gráfico como esse e a descrição “narrativa conforme definida pela presença do narrador”:

Figura 1: Narrativa definida pela presença do narrador. Gráfico nosso.

Isso pode ser compreendido aos termos da poética aristotélica que descrevemos no primeiro capítulo.

Por outro lado, na tradição francófona-anglófona o conceito de narrativa logo se abriu, de acordo com a Fludernik, principalmente graças ao Chatman (no livro Story and

discourse, 1978 – ele depois muda muitos posicionamentos no Coming to Terms, 1990b) que

“definiu narrativa como uma junção entre enredo e texto, mas estendeu a definição de texto

52 Ver DARBY, 2001, para um ensaio sobre essa tradição e o porquê dela não ter se consolidado tanto

74 para cobrir várias mídias” (2009, p. 5). É muito similar à posição que alcançamos aqui, embora por meios diferentes: propusemos um conceito de texto que dá conta de várias mídias, e definimos um texto narrativo como uma junção entre (as propriedades que nomeamos como) um texto e uma narrativa, além de termos falado sobre o processo de atualização de uma fábula em um enredo.

Nota-se que para nossa noção de texto narrativo, bem como para a noção de narrativa no Chatman, a noção de narrador não é tão determinante para definir se algo é ou não uma narrativa ou um texto narrativo – não como é na tradição germânica ou na oposição diegesis- mimesis platônica ou na poética aristotélica, nem de longe; embora para o Chatman a figura do narrador seja muito importante e suas ideias mudem muito em relação a isso53, ele é,

inclusive, no seu trabalho mais influente, um importante nome para pensar os conceitos de “narrativas não-narradas” (isto é, sem narradores – ver 1978, pp. 146-195). Consideremos, ainda assim, a possibilidade de pensar a figura que organiza o texto narrativo a partir da noção de narrador. Essa possibilidade é coerente e traria algum valor explicativo para a Narratologia? E, se formos aceitar isso, qual seria a definição para “narrador”?

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