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Narrador e narratário como sujeitos em dialética

3. Alguns desdobramentos teóricos: sujeitos

3.1. Nota introdutória

3.3.4. Narrador e narratário como sujeitos em dialética

Digamos então que estamos analisando textos narrativos em busca dos processos narrativos de subjetivação que constróem o narrador e o narratário. Encontraremos muitos casos em que, como vimos no trecho “eu estou com fome; daqui a pouco vou comer alguma coisa”, narrador e narratário, quando um se marca, o outro por consequência também aparece. Dada a aparente primazia do “eu” na construção dos enunciados verbais, alguém poderia se sentir tentado a dizer que o “tu”, ou seja o narratário, só pode se construir como sujeito a partir da atuação do narrador, de modo que haveria uma certa hierarquia ontológica em que o narrador antecederia o narratário. Entretanto, sob análise, poderemos perceber que essa relação é criada por meio de uma dialética que tentaremos agora esclarecer.

Os estudos de narratologia feminista são muito reveladores neste aspecto e tomaremos um deles como ponto de partida. Susan S. Lanser (1986, p. 615) traz o exemplo de uma carta publicada em um jornal em 1832 para iniciar uma reflexão:

Uma jovem mulher, recém casada, sendo obrigada a mostrar para o marido todas as cartas que escrevia, enviou o seguinte para um amigo íntimo:

87 Não posso ficar satisfeita, meu querido amigo,

bem aventurada quanto sou em meu matrimônio, a não ser que eu derrame em seu amigável seio que sempre esteve em uníssono com o meu, as várias profundas sensações que fazem inchar com as mais vívidas emoções do prazer

meu turbulento coração. Conto a ti, meu querido marido é um dos mais amigáveis dos homens. Estive casada por sete semanas e

nunca encontrei nenhuma razão para dizer que me arrependo do dia que nos juntou, meu marido é, em sua pessoa e seus modos, longe de ser um feio, um grosso, um desagradável, um ciumento monstro que confina para proteger

sua esposa: é sua máxima tratar como

uma amiga do peito e sua confidente, e não como um brinquedo ou uma escrava subalterna, a mulher eleita como sua companheira. Nenhuma das partes, ele diz, deve obedecer cegamente;

mas cada um deve ceder ao outro alternadamente. Uma idosa donzela sua tia, próxima dos setenta,

uma alegre, venerável e agradável velha senhora, vive conosco na casa – ela é o de-

leite dos idosos e das crianças – é um patri- mônio para toda a vizinhança,

generosa e caridosa com os pobres. Eu sei que meu marido não ama nada mais do que ele ama a mim; ele me elogia mais do que jóias, e sua intoxicação

(pois assim eu chamo seu amor excessivo) sempre me faz avermelhar pelo não merecimento desse objeto, e eu só desejo ser mais digna do homem cujo nome eu carrego. Para

dizer tudo em uma palavra, meu querido, e para coroar tudo isso, meu antigo amante

é agora meu afetuoso marido, meu carinho retornou, e é possível que eu venha a ter

um príncipe, sem contar a felicidade que já tenho com ele. Adieu! Que você esteja bem como não sou capaz de me imaginar mais

feliz.

O segredo é ler uma linha e saltar a seguinte, alternando e lendo apenas as linhas ímpares (1, 3, 5...) até o fim do texto.

Lanser traz este texto para demonstrar que a Narratologia clássica era insuficiente para analisar textos femininos. Ela acaba sugerindo dois novos conceitos, o de “narração

pública” e “narração privada”, para lidar com o fato que um texto narrativo como este é, na

verdade, composto por dois enredos e duas fábulas, isto é, na terminologia que ela usa, por duas “narrações”, a depender de como se lê – diríamos duas narrativas: um texto narrativo com duas narrativas. A narrativa conforme se vê, pública, foi escrita para o marido – a narradora não fala senão o que ele deseja ouvir, mas há no subtexto uma narrativa privada que o marido não vê, por não ter sido endereçada a ele. Lanser defende que isso ajuda muito a compreender narrativas femininas porque “tradicionalmente falando, as sanções contra escritos de mulheres tomaram a forma não de uma proibição de escrever absolutamente, mas de escrever para uma audiência pública" (1986, p. 620), então as narrações privadas são uma forma de resistência desenvolvida a partir desta situação social.

88 Nós, por nossa vez, trazemos o exemplo para perguntar qual sujeito este texto constrói primeiro: a narradora ou o narratário? Breve nota que no inglês o termo “friend” pode ser traduzido tanto como “amigo” quanto como “amiga”, e optamos por traduzir aqui como “amigo” para que o jogo no trecho “meu querido marido...” / “meu querido estive casada...”, originalmente “my dear husband...” / “my dear I have been married...”, continuasse fazendo sentido em português, mas o original mantém essa ambivalência: pode ser tanto um narratário quanto uma narratária, e para os estudos feministas isso faz toda a diferença – é importante também notar como a presença desse/a narratário/a na narrativa privada dificulta a tradução do texto narrativo por causa da presença do outro narratário, o que compõe a narrativa pública.

O texto é rico no que diz respeito a construir a narradora, efetivamente as duas narradoras, uma que ama o marido e está feliz em seu casamento e outra que o odeia e participa de uma relação abusiva: possui vários elementos que desencadeiam estes processos narrativos de subjetivação. A presença de ambas as narradoras é muito forte e marcada, principalmente na narrativa privada e na releitura da narrativa pública que ela nos faz tomar. Mas, semanticamente, não fossem os/as narratários/as tanto da narrativa pública (neste caso, o marido) quanto da narração privada (aqui, o/a amigo/a), estes processos narrativos de subjetivação que se dão de modo diferente em cada texto não se dariam. E mais: talvez contraditoriamente, ao mesmo tempo é a própria narradora quem fornece os processos narrativos de subjetivação que nos permite construir o marido e o/a amigo/a enquanto sujeitos nestas narrativas. É quase paradoxal tentar entender quais processos de subjetivação têm primazia sobre quais sujeitos. Há entre eles, aparentemente, um vai-e-vém e um regresso que tende ao infinito. O eu se constrói a partir do tu, mas o tu se constrói a partir do eu. Tomamos esta narrativa particular como exemplo mas poderíamos tomar qualquer outra e chegar na mesma conclusão; independente de possuir a ambivalência pública-privada, enfim, independente de qualquer outra coisa específica desse texto narrativo, a questão se manteria: em textos narrativos, o narratário enquanto sujeito pode ser construído em função do narrador, mas o narrador enquanto sujeito também pode ser definido em função do narratário. Na prática, é impossível determinar. É impossível determinar, por exemplo, qual processo narrativo de subjetivação constrói um e não outro. Mais adequado seria dizer, então, que, interessantemente, são figuras independentes ontologicamente, ao mesmo tempo em que são mutuamente dependentes em seus fundamentos: novamente devemos recorrer à metáfora da

89 folha de papel. É como se de um lado da folha estivesse o narrador e do outro o narratário, de modo que pode-se escrever em um lado sem que palavras apareçam do outro lado, ao mesmo tempo em que um lado da folha só existe porque o outro também se mantém: mas a folha pode ser furada, atravessada, etc. Isto é, os mesmo processos de subjetivação que constróem a narradora também podem construir, ao mesmo tempo, a narratária, e, por outro lado, também podemos encontrar processos de subjetivação que definam apenas a narratária e não a narradora e vice-versa. Portanto, embora sejam sujeitos que frequentemente afetam- se mutuamente sem parar e que se atravessam em seus processos, não podemos dizer, em absoluto, que uma “dá origem” à outra.

Mas se narrador e narratário são elementos do texto construídos a partir de processos narrativos de subjetivação que podem ultrapassar as duas figuras, quem os organiza? É evidente que um gesto precisa colocar no texto narrativo o narrador e o narratário. No caso do texto trazido pela Susan Lanser acima, temos acesso a duas narradoras, e isso acaba contribuindo muito para a figura da mulher “real” que esteve por trás dessa construção; mas ela, a mulher real, não se confunde nem com a narradora pública e nem com a privada, visto que ela foi tanto a pessoa que organizou uma quanto a outra e portanto as antecede e atua sobre elas. Além do mais, essa carta está publicada em um jornal: suponhamos que o texto tenha sido escrito não para o narratário da narração privada, mas para autoridades competentes ou por leitores/as do jornal que pudessem vir a fazer alguma coisa – nesse caso, para além do/a narratário/a da narração privada, para quem essa segunda narração parece ser endereçada, existiria um outro sujeito que seria o endereço do texto. Voltamos à primeira definição de texto: mesmo que o texto narrativo implique um narrador e um narratário em uma relação de comunicação, o texto narrativo propriamente dito, por ser texto, demanda ainda um sujeito organizador e um sujeito para quem a organização é endereçada.

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