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Eu no diário – narrador, personagem e determinante na consolidação do

Desde os primeiros estudos, as pesquisas dedicadas ao gênero de diário depararam-se com o problema da polissemia do termo diário. É por isso que, como bem expôs Isabela Trindade em sua dissertação de mestrado defendida em 201215, na França de começos do século XIX “acrescentou-se à palavra journal o

adjetivo intime para designar a relação quotidiana de eventos ou de reflexões pessoais privados e não destinados à publicação” (Trindade, 2012, pag. 40), que caracterizam a modalidade de diário que, tendo se originado na prática de fazer

14 “Essa é uma característica surpreendente do diário que o opõe a todos os outros textos[da memorialística]: nenhum leitor externo poderá fazer a mesma leitura que o autor, embora leia justamente para conhecer sua intimidade” (LEJEUNE, 2014, pag. 345).

15 Isabela da Hora Trindade defendeu a dissertação “Páginas íntimas – o diário extravagante de Lima Barreto” junto ao programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

42 anotações regulares com fins tais como o controle de atividades profissionais, abandonou a esfera pública para abrigar à expressão do eu. O chamado “diário íntimo” contém o relato de acontecimentos da vida cotidiana do autor, incluindo nesse registro tanto atividades realizadas, como reflexões pessoais, confissões, opiniões, pensamentos, etc. Desde essa perspectiva, o escopo do diário pode ser o mais amplo, mas, em virtude de seu conteúdo pessoal, diferencia-se do diário como publicação periódica de notícias ou como texto de registro de atividades profissionais. Esse tipo de diário foi amplamente praticado no século XIX, e consolidou-se como um gênero literário quando ultrapassou os limites do âmbito privado em que era redigido, e em que permanecera até então, para chegar massivamente ao público.

O pesquisador francês Alain Girard, pioneiro no estudo do diário como gênero literário, cujo trabalho Le Journal intime (1963) continua a ser uma das principais referências na matéria, aponta dois elementos essenciais para a consolidação do gênero moderno de diário: primeiro, a introdução do elemento íntimo como traço distintivo que transforma o diário comum em um novo gênero literário e, segundo, a decisão dos próprios autores de preparar e organizar seus textos pessoais não ficcionais para serem publicados.

De acordo com os trabalhos dos pesquisadores russos Olga Bobrova e Mikhail Mikhéiev, as variedades de diário que conhecemos hoje como um gênero literário têm suas raízes profundas nos gêneros de crônicas de viagem e de romarias da idade média. O diário teria aparecido como um texto de registro objetivo dos acontecimentos cotidianos, sem ênfase nas impressões do autor em

43 relação a esses acontecimentos. É muito mais tarde, durante a época do sentimentalismo do século XVIII, que o elemento pessoal se mistura ao relato de viagens ao estilo de Uma viagem sentimental através da França e da Itália de Laurence Sterne. Para Bobrova é claro que Sterne apenas aproveita os procedimentos típicos do relato de viagens, tais como o passeio por determinadas cidades e as descrições de paisagens para, na verdade, aprofundar-se em uma viagem para o universo interno da personagem. E é nessa viagem interior que se estabelece um vínculo entre a literatura de viagens e o desenvolvimento do diário íntimo: a voga do sentimentalismo (do qual Tolstói é herdeiro direto, como leitor assíduo que foi de Sterne e Rousseau) prepara o advento do romantismo que questionou o racionalismo e colocou o indivíduo no centro de atenção de artistas e pensadores. Como afirma Alain Girard:

A “revolução das mentalidades” acontece a finais do século XVIII e

começo do século XIX. Desde então, escreve Mauss, “cada um tem seu

eu” […] Entre todos os textos escritos, nenhum pode informar melhor

acerca da imagem do eu, do que os escritos em primeira pessoa [...] Hoje

sabemos, pela repercussão que suas anotações cotidianas tiveram ao vir

à luz, que os “intimistas” se adiantaram a seu tempo na maneira [...] em

que os homens assumem hoje seu destino, representam a si próprios,

sua pessoa ou seu eu16 (GIRARD, 1996, pag. 38. Tradução nossa).

16 A ideia de que os “intimistas” estavam adiantados a seu tempo em relação à maneira de representação do eu tem a ver com a compreensão de que o exercício cotidiano de autoanálise, auto-observação, autoavialiação e balanço que faz o diarista ao redigir seu texto, ajuda-lhe a desenvolver a habilidade de penetrar, compreender e depois colocar no papel o fenômeno do funcionamento do pensamento humano. A prática seria especialmente útil para os autores de diários que se tornariam escritores e que viriam a desenvolver o procedimento literário do “fluir da consciência” do qual Tolstói, por exemplo, foi pioneiro e mestre.

44 É assim como textos tais como as crônicas se transformam, gradativamente, de um mero relato objetivo de acontecimentos, muitas vezes destinado a servir como um relatório de certa atividade17 e, portanto, destinado a

um leitor determinado, em um tipo de texto íntimo que o autor escreve para si próprio, geralmente sem a intenção de publicá-lo. Com essas transformações importantes – a introdução do elemento íntimo e a mudança de destinatário e finalidade do texto –, podemos considerar que nasce a variedade de diário que conhecemos na modernidade como diário íntimo. Separado do gênero de crônicas que lhe deu origem, o diário continua sendo um gênero vivo, cuja capacidade de transformação permanente tem lhe garantido um lugar no universo literário contemporâneo.

Quando o diário é escrito sem intenção de ser publicado (seria o caso da grande massa de diários existentes, pois a maioria dos diários é escrita por pessoas comuns, e as pessoas comuns não têm normalmente intenções de tornar públicas suas anotações, conforme constatou Philippe Lejeune em sua já mencionada pesquisa do diário na França entre 1986 – 1996), o destinatário do texto é o próprio autor, que escreve para si, por motivos diversos18 (para se

autoanalisar, para se conhecer, para se formar, para desabafar).

A pesquisadora francesa Béatrice Didier, autora de um trabalho também intitulado Le Journal intime (1976)19, outro dos textos considerados canônicos no

17 Por exemplo, as crônicas das viagens de Cristóvão Colombo tinham o objetivo de registrar as novidades acontecidas no novo mundo não apenas para fixá-las, senão também para justificar, diante da coroa espanhola, o investimento na empresa da conquista.

18 Bobrova chamará essa característica do diário “autocomunicatividade”. 19 Mesmo título da já citada obra de Alain Girard.

45 estudo do diário, também atribui um papel essencial à expressão do eu para o gênero. Como já foi assinalado, para que fosse possível o nascimento do diário como gênero literário, foram importantes uma determinada concepção do eu, e a preocupação por seu lugar na vida social, histórica e para o próprio indivíduo. A mudança de perspectiva em relação a esse eu também trouxe consequências para a história do diário, mudando sua função e suas possibilidades de desenvolvimento ou de supervivência no futuro. Para a autora, todas as tendências filosóficas do século XX trouxeram um questionamento da entidade do eu que, na prática, vem afetar a existência do gênero de diário. Ela afirma que em um mundo em que as correntes psicanalíticas têm colocado a noção do eu em termos tão diferentes daqueles que foram conhecidos para os escritores de diários em épocas anteriores, surge a questão de se há tempo e existe ainda a necessidade de escrever diários, já que, se a noção de centralidade do eu desaparece, também desaparece uma das causas centrais que contribuíram ao surgimento e massificação da prática de escrita do diário. Didier cogita a possibilidade do desaparecimento do diário íntimo tal e como foi conhecido até a época de sua pesquisa, e alertou para os riscos que corria o gênero, caso leitores e autores não superassem a função do diário como mero depositário dos desabafos do eu. Contudo, a análise de Didier não por completo pessimista. A autora considera que o diário tem grandes possibilidades de sobrevivência na contemporaneidade, se tiver a capacidade de tornar-se fonte geradora de novos textos20:

20 Com certeza, é essa uma das funções principais atribuídas aos diários de escritores. Falaremos sobre isso um pouco mais adiante.

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Em nossa época, em que a noção de indivíduo e de “eu” recua, o diário íntimo, sob a forma que conheceu no século XIX e na primeira metade do século XX, não parece já possível [...] A vocação de matriz, própria do diário íntimo – bastante perigosa se o diário não for mais que um pretexto para o desabafo do eu – torna-se, pelo contrário, admiravelmente fecunda se o diário for um texto que gera outros textos, uma gênese permanente. (Didier, 1996, pag. 45 – 46. Tradução nossa).

Graças a já reconhecida flexibilidade do gênero, sabemos hoje, 40 anos depois do aparecimento do trabalho de Didier, que o diário tem conseguido reinventar-se. Tirando proveito das novas tecnologias, assistimos a uma nova massificação de publicações que, sob a forma de registros, já não com intervalos de um ou vários dias, mas muitas vezes, de apenas umas poucas horas ou minutos, cumprem ainda a função de fixar “os acontecimentos do dia a dia, os pensamentos, etc.”, por meio de um novo suporte: já não cadernos de anotações ou folhas avulsas, mas o universo virtual e das redes sociais com suas formas infinitas: blogs, facebook, livejournal, etc.

Apesar de terem perdido por completo o caráter reservado, secreto, muitas vezes oculto das anotações de diário íntimo, as novas formas de registro mantêm a espontaneidade, a flexibilidade formal e muitas vezes, paradoxalmente, o intimismo dos diários, não apenas no sentido do conteúdo íntimo pessoal dos textos, mas até no sentido, por assim dizer, da recepção: as novas variedades de diário têm uma capacidade inusitada de chegar a um público ilimitado. Com certeza, o universo da internet pode tornar infinita, mas não incontrolável a acessibilidade do texto porque, por um lado, as ferramentas proporcionadas pelos próprios programas para a confecção e publicação dos textos garante aos autores o controle de quem e como pode ter acesso a seu texto (se integral o parcialmente

47 se de forma permanente ou temporária) e, por outro, a massa de textos tipo diário flutuantes no ciberespácio , em meio a toda uma enorme massa de informação, é tal que as possibilidade de o texto permanecer oculto são até melhores e maiores do que nos tempos do velho diário íntimo escrito no papel. A nova forma do diário no século XXI é questão para outro trabalho. Contudo parece-nos importante reiterar que, de acordo com o estudo de Béatrice Didier, a centralidade do eu é essencial à forma do diário íntimo, e que sua ausência acarreta uma mudança radical na forma e no papel da função psicológica do mesmo.