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O diário de juventude de Liev Tolstói – singularidades do diário de escritor.

O diário de juventude de Liev Tolstói, mesmo no curto período de sete anos que analisamos neste trabalho, constitui um caso singular da variedade do diário de escritor.

2.5 O diário de juventude de Liev Tolstói – singularidades do diário de escritor.

O diário de juventude de Liev Tolstói do período 1847 - 1854 é um caso interessante de diário de escritor, não apenas por colocar em evidência ideias fundamentais do pensamento Tolstoiano, mas também por desvendar os procedimentos que transformam a narrativa das impressões e experiências da vida cotidiana em um fenômeno artístico. Não se trata apenas de que as entradas de diário exponham a arte poética do autor russo, mas que as próprias anotações, em virtude da forma como são descritos as pessoas e espaços constituem uma amostra do talento artístico do autor que, na etapa inicial de escrita do diário, não tinha ainda se tornado escritor.

A impressão que temos ao ler determinadas passagens do diário de Tolstói é de estarmos diante de uma obra artística. Mas se conforme nossa ideia de pacto com o leitor, iniciamos a leitura do diário com a expectativa de deparar-nos com um texto que é uma narrativa não ficcional sem fins artísticos, por que determinadas passagens do diário de Tolstói parecem despertar a vivência do fenômeno estético? Por que, por exemplo, no caso desse diário, entre a

51 quantidade enorme de pessoas citadas, apenas umas poucas parecem ganhar o status de personagem?

Como afirma Lídia Guinzburg, a personagem na literatura documental pode ser um fenômeno de tanto significado artístico como no romance. Mesmo assim, intuitivamente, o leitor percebe que há uma diferença entre uma pessoa real e uma personagem. O que faz da pessoa uma personagem é, sem dúvida, o fato de que “a pessoa representada na literatura não é uma abstração, mas uma unidade concreta, com um significado simbólico crescente e, por isso mesmo, capaz de representar uma ideia (GUINZBURG, 1979, pag. 5).

Assim, por exemplo, o Liev Tolstói representado por si próprio no texto do diário, é uma pessoa que apesar de ser o protagonista da narrativa dos processos de autoaperfeiçoamento moral e de formação de um escritor, permanece, para o leitor, como a pessoa real que foi Liev Tolstói, apesar da habilidade ou até a vivacidade com que o autor descreve a si próprio. Já outras pessoas reais dentro da mesma narrativa do diário, ganham traços singulares devido à atenção que dá Tolstói a determinados detalhes cuja disposição singular provoca a vivência do fenômeno artístico. Isso acontece dentro do diário porque o autor, ao redigir seu texto, está já em um processo criativo. A pretensão de manter-se fiel a realidade dos seres e acontecimentos vistos que tenta “repassar” por meio de seu relato, não impede a ação criativa, especialmente porque é essa a intenção explícita de Tolstói em um determinado ponto da escrita de seu diário. A esse respeito, veremos o caso do oficial Knoring como um exemplo de representação artística dentro do diário de Tolstói.

52 Nina Bobrova insiste em que o que diferencia o diário comum com suas funções típicas de registrar os acontecimentos do dia, respeitando certa periodicidade, com intervalos de tempo de preferência curtos entre uma anotação e outra, narrado em primeira pessoa, e dedicado, em grande parte, à instrospecção, em relação ao diário de escritor é que esse último é, fundamentalmente, a oficina literária do autor. Mas, poderíamos considerar o diário como uma forma de literatura documental? Deveríamos, como sugere Eikhenbaum, não acreditar em nenhuma palavra escrita no diário, mas apenas ocupar-nos do “estojo” que é o aparato formal por ser esse o único material tangível e único que podemos analisar sem cair em suposições e autoenganos?

Se aceitarmos que no texto de diário existe um aparato formal, devemos aceitar também que esse aparato é a materialização intencionada das aspirações estéticas do autor. E se assumirmos que existe no diário uma aspiração estética, o diário, então, à diferença da análise do pesquisador russo Oleg Egórov, é resultado da composição feita pelo autor. Isso significa que estamos diante de uma obra em que, como em toda composição artística, há um processo de seleção tanto do material quanto da forma como esse material é disposto para compor essa obra – o diário.

E se, por outro lado, compreendermos também que uma das características fundamentais do diário é a aspiração a capturar os acontecimentos reais de um dia, transmitindo tanto ao autor quanto ao leitor a impressão de verdade, podemos afirmar que o diário é uma obra da literatura documental, como a entende Lídia

53 Guinzburg: uma obra que aspira à veracidade mas que não é e não pode ser, em forma alguma, a verdade mesma.

Líia Buchkanets propôs em seu ensaio dedicado aos diários de juventude de Tolstói que o diário do autor russo tem algumas linhas narrativas, e que essas linhas narrativas mudam em diversas épocas da vida dele. É evidente que a primeira linha narrativa do diário tolstoiano está constituída pelo processo de aperfeiçoamento moral que inicia na juventude e que haveria de ocupar o escritor até a morte. Outra linha narrativa evidente é a construção de uma arte poética representada nas análises das experiências narrativas e dos procedimentos literários, além das experiências literárias mesmas registradas no diário sob a forma de descrições de acontecimentos e de pessoas, versos ou músicas, e certos relatos que, mesmo sendo a narração de acontecimentos reais, entram no âmbito do literário artístico devido aos procedimentos narrativos usados pelo autor. Uma terceira linha narrativa poderia ser chamada de linha temática. No diário de Tolstói existem muitas linhas temáticas no sentido de tratar-se de assuntos que ocupam a análise tolstoiana ao longo de muitos anos, ganhando, dentro e fora do diário, diversas nuances e desdobramentos. Trata-se, por exemplo, do conceito de amor, a religião, os problemas sociais e muitos outros. Na etapa juvenil de Tolstói, parece-nos especialmente interessante o caso da experiência no Cáucaso e o significado que essa região adquire, mesmo com o passar dos anos, para o Tolstói escritor. O conjunto das personagens, acontecimentos, músicas, etc., por ele vistos nesse período, ultrapassa os limites da esfera documental e penetra o

54 universo ficcional do autor russo, desde a juventude (Os cossacos) até as obras do escritor maturo (Khadji-Murát), como mostraremos no seguinte capítulo.

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Capítulo 3

O diário de juventude de Liev Tolstói – Laboratório da criação

artística